segunda-feira, 20 de setembro de 2021

José Luis Peixoto


CERTEZA
 
Num momento, acerta-nos a certeza de tantas manhãs desperdiçadas.
De repente, este inverno é o último e os nossos braços
esticados não chegam
ao fim de março. A criança que transportamos debaixo de
tudo, dentro de tudo,
pergunta: e agora? Agora, não há mais respostas do que
esta grande resposta.
E não nos podemos queixar de falta de aviso, sempre
soubemos
que todos os objetos possuem sombra. Tivemos férias
de verão e idades,
tivemos terças-feiras, semanas que passaram demasiado
depressa. E agora?
Agora, agarramo-nos a cada minuto deste entardecer e,
num momento,
sabemos por fim que aquilo que importa é pouco e raro.
 
(Regresso a Casa, Porto Alegre: Dublinense, 2020, p. 30)
 
 
ODISSEIA
 
Eis Ulisses em seu longo caminho, avança pelas vagas,
como avança pelos versos, como avança pela espera
de quem olha o horizonte em ítaca. Eis Ulisses
com seu humano propósito.
A guerra de Troia é uma porta que fechou ao sair, saiu
desalmado; também pode ser uma idade, ou a pessoa
que Ulisses já não quer ser. Sim, a guerra de Troia é a
pessoa que Ulisses já não quer ser.
A embarcação de Ulisses pode ser uma bicicleta
ou um táxi, não importa, pode ser um passeio a pé,
de mãos nos bolsos.
Os dez anos de viagem até ítaca podem ser dez minutos,
podem ser um telefonema rápido, um vulto
que se distingue ao longe ou, mais provavelmente,
podem ser a vida inteira. Sim, os dez anos de viagem até ítaca
são a vida inteira.
E, claro, Ulisses és tu. Já tinhas percebido, não?
Ulisses és tu, a guerra de Troia és tu, és toda a viagem,
és ítaca também.
Haverás de chegar. Na hora certa, terás de chegar.
Já te esperam.
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Este navio dispensa o leme. Estes marinheiros dispensam o mapa. Foram contratados pela forma do nome e do rosto, com mínimas habilitações literárias, ironia máxima. O mar sabe conduzir o navio. As correntes e as tempestades são a sua verdadeira tripulação. Destes marinheiros, apenas se exige nomes bons de citar, rostos bons de esculpir e, claro, um comportamento adequado, que oscile entre o apolíneo e o dionisíaco. Todas as sílabas dos seus nomes devem ser pronunciadas, de modo a que poetas elevados e pessoas de bom gosto possam dizer Euríloco da mesma maneira que diriam torneira, possam dizer Perimedes e iluminar uma frase, dar elegância a uma ideia. Estes nobres marinheiros são sobretudo arquétipos, desempenham essa função com bravura, navegam com destreza na origem etimológica das palavras. Aquela nuvem podia ser um arquétipo, uma pena levada pelo vento podia ser um arquétipo, mas faltava-lhe o valor do tempo acumulado: uma espécie de condensação, comparável ao processo que forma diamantes nos secretos segredos da terra. O mar que rodeia o navio é literalmente feito de diamantes, mas não é por isso que se dispensa leme e mapa nesta viagem. Ao longo de cantos identificados com numeração romana, o percurso já está definido, é único e inevitável. Ulisses foi atado ao mastro apenas para causar efeito dramático.
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Quem espera depende de quem chega.
Mas quem chega, para saber que chegou,
depende de quem espera. Penélope é
Ulisses e, ao mesmo tempo, Ulisses é
Penélope. Quem passa dias a fiar e
noites a desfazer o que fiou cumpre
o mesmo caminho de quem passa dias
a navegar e noites também a navegar.
Penélope tem barba, Ulisses tem útero,
Penélope tem barba, Ulisses
também tem barba; Penélope tem útero, Ulisses
também tem útero. Orgulhamo-nos
do século XXI e, por isso, sabemos
que qualquer uma dessas opções é
válida, o que conta é o paradigma,
o que conta é a estrutura exemplar
oferecida pelo paradigma: alguém
venceu a guerra de Troia, alguém
pariu Telêmaco.
 
(Em Regresso a Casa, poemas, Porto Alegre: Dublinense, 2020)
 
 
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