terça-feira, 31 de julho de 2012

Marguerite Duras

Excerto de "Yann Andréa Steiner"
Quando você começou a falar de livros, captei, por trás do olhar atento, do raciocínio lúcido, perfeito, uma espécie de urgência que você não conseguia moderar, como se precisasse agir depressa para chegar a dizer tudo o que decidira dizer e também tudo o que decidira não dizer. Tudo o que você queria dizer antes que subitamente «parecesse a evidência, a coisa, terrível, iluminadora, essa decisão que você tinha tomado: conhecer-me antes de se matar.
Naquele momento eu não soube de você mais do que isso.
Muito mais tarde, você falou. Disse que sem dúvida era verdade, sim, mesmo ficando obscuro, acrescentou: Como para você, de um outro modo. Você não pronunciou a palavra, mais tarde compreendi que mesmo por dentro você devia silenciar sobre ela, a palavra, essa palavra dita em seu sorriso: escrever.

E depois caiu a noite. Eu lhe disse: Você pode ficar aqui, pode dormir no quarto do meu filho, que dava para o mar, a cama estava feita.
Que se quisesse tomar um banho, também podia.
E da mesma forma, se preferisse sair.
E também, por exemplo, podia comprar um frango frio, uma lata de creme de castanhas, creme de leite para acompanhar, frutas e queijo e pão. Que era isso que eu comia todos os dias, para simplificar minha vida. Disse-lhe também que podia comprar uma garrafa de vinho para você.
Que eu bebia menos em certos dias. E nós dois rimos.

Logo depois de sair, você voltou. O dinheiro, disse, gastei com o ônibus, não tenho mais nada, tinha esquecido.

Você devorou tudo com apetite de criança, que então eu não sabia lhe ser habitual.
Muito depois você me disse que ainda tinha fome ao sair da mesa. Mesmo depois do creme de castanhas, que você comeu todo, com o creme de leite, sem reparar.

Foi talvez naquela noite, com você, que recomecei a beber. Bebemos as duas meias-garrafas de Côtes du Rhône que você comprara na Rue des Bains. Era falsificado, intragável. Bebemos as duas meias-garrafas desse vinho da Rue des Bains.

Na primeira noite você dormiu no quarto que dá para o mar. Nenhum ruído veio dali, como quando eu estava sozinha. Você devia estar muito cansado, depois de dias e dias, de meses, daqueles anos de chumbo talvez, aqueles, áridos, trágicos anos diante do emprego do futuro e também daqueles anos do calvário desta mesma solidão do desejo púbere.

[In Yann Andréa Steiner,tradução de  Maria Ignez Duque Estrada Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, pp. 14-15].

Miguel Jorge

NO MAR NENHUM BARCO 
Os amores são largos e longos e não cabem nas cartas.
A noite lenta fere de faca a luz cega do medo.
Indiferentes, as borboletas são anjos vestidos de prata.
Assim, os musgos vão cobrindo de vermelho os moluscos
dentro das caixas.
São do domingo os escargots, lentas flores, colocadas sobre
bandejas de prata.


Talvez não se possa evitar a falta de pão, reflexos da ira,

a dor que não se quer dar aos filhos.
Dormem as naves sobre as janelas do mar, talvez um barco,
igual a um barco, indo além do mar, brasa da alma.
(Baco num riso igual a um risco de língua nas bocas).


Igual a um casaco de frio que se pendura detrás da porta.
Igual às ondas a testemunhar as rosas se desfazendo no branco
laço das águas.
(A noite carrega os diamantes no impacto do chão que se faz cinza).


Se viam roucas as Américas, a constituição dos ventos cobrindo
lábios muito finos. Estrelas ostentam um festim ameno de
vozes. Os ratos, os gatos, o nojo anunciado. O gozo desfeito
em nada, se põem de lado, ainda mais quando do céu se
toma lei e posse de secretos códigos.

Marbrasa (2005)



Sobre o autor: Nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em 1933.

Poeta, contista e romancista, lecionou na Facul­dade de Farmácia da Universidade Federal de Goiás e no Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás. Livros de poesia publicados: Os frutos do rio (Goiânia: Oriente, 1974); Inhumas: nossa cidade (Goiânia: Edições Gaivota, 1978); Projugus (Goiânia: O Popular, 1990); Marbrasa (Goiânia: Agepel, 2005).

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 70, seleção e prefácio Afonso Henriques Neto, São Paulo: Global, 2009,




segunda-feira, 30 de julho de 2012

Augusto Frederico Schmidt

ESTRELA SOLITÁRIA
Ó Estrela solitária nos céus!
Ó Estrela que o mar parece convidar
Para um encontro impossível!
Ó Estrela impassível,
Estrela dos abismos, Estrela dos abismos!
Há quanto desafias o tempo!
Há quanto esperas o fim dos tempos!
Estrela, que o mar convida
Para um encontro fatal,
Por que nos olhas assim, tão tristemente?
A nós, tu pareces, solitária Estrela,
A imagem de um desespero sem forma,
A imagem de uma suprema tristeza.
Em torno de ti está o silêncio, o grande silêncio;
Em torno de ti está o frio irreparável.
Não descerás jamais aos móveis abismos,
Ó Estrela dos abismos!
Ficarás com a tua viva luz,
Enfeitando as estradas sem termo.
As frias flores, salvas da morte,
Estão dançando nos caminhos do céu.

Ó Estrela fonte da glória dos mundos,
Estrela dos abismos, Estrela dos abismos!

Poesia - Estrela solitária do meu céu!

In Coleção Melhores Poemas, seleção de Ivan Marques, Ed. Global: são Paulo, 2010, p. 83

Murilo Mendes

COISAS 
Coisas, e a morte que existe nelas,
Experiência de desconsolo e de fatalidade
Para as pálpebras que voltaram do amanhã:
Coisas do cristal e do pêssego,
Vacilações da onda fria do veludo;
Coisas sem ângulos e sem vértice 
Que no mesmo dia nascem e morrem;
Coisas da letra, não da combinação das letras,
Mas da letra em si;
Coisas do fogo que se transferem ao ar,
Coisas do fim que se transferem ao principio, 
Coisas que poderiam ser restos de roupagens de anjos,
Mas que em bastidores de teatro nem se usam.

Coisas da ligação de certos objetos
Que separadamente nada significam para nós; 
Coisas do céu que se encontram por antecipação, 
A chama de Pentecostes conservada
Para que o mundo não se entregue ao frio,
E a medalha com o olhar da minha mãe;
Coisas amadas que se atiram ao lixo 
E coisas sem valor que divinizamos. 
A cinza de todos os dias
Evocada somente na quarta-feira de cinzas:
Saber que todo este pó desce de Deus
Que no final dos tempos
Provará as coisas pelo fogo,
Tudo o que deixaremos no mundo
Para experimentar a prova do fogo:
Exceto nossa alma despojada de coisas
Que tateia nas trevas, 
Pesquisando o arquétipo de onde veio.

[In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.548]

domingo, 29 de julho de 2012

Hilda Hilst

A FEDERICO GARCIA LORCA 
Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi na tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: "amor de mis entrañas, viva muerte".
Ah se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
E cantar de repente: "os arados van e vén
desde a Santiago a Belén".
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas  ESTÁS MORTO. Sabes por que?
"El  pasado se pone 
su coraza de hierro y tapa sus oídos 
con algodon del viento. Nunca podrá arrancársele um secreto.

E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos 
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados 
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.

[In: Palavra de Mulher, Rio de Janeiro: Fontana, 1979, p. 167]

sábado, 28 de julho de 2012

Lindolf Bell

REQUIEM
Para Hélcio Reis Fausto

Não escreverei sobre ausências,
Ausência é bandeira de nada.
É ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz de afeto.
E a dúvida é o poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Ausência é o lume do esquecimento.
É só o limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra.
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Pouco dizer, muito sentir.
Te lembro de algumas palavras poucas,
algumas entreditas,  escritas outras.
E agora encontras guarida
na fantásticas ficção da morte
que desperta o mar nos olhos de amigos
e incendeia desertos em gargantas
e bocas de espanto.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Ausência é pano sem fibra.
Não tem poder de celebração.
Se faz de terno poido no cabide.
Cartão postal de viagem
roído de traça.
Fotografia em portarretrato,
álbum de casamento,
instântaneos da infância
fingindo viver.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Nunca quis ver-te na morte, não te vi.
O rosto fechado,
os braços que envolveram mulher, filhas, sonhos,
estes braços sobre o peito cruzados
não quis ver,
nem quero este movimento (momento) clandestino,
destino, vespertino,
o ponto final de um gesto brando, reconhecido,
guardado entre os dedos o soluço dos que ficam
e a melancolia da sala de visitas.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

O espírito é livre: por isso deixas poemas.
A carne é forte
quando se despoja de presença
e se desfaz em desterro de eternidade.
Outros sentimentos, outro amanhecer,
escritos no ar da casa,
na cadeira de pensar,
no limpo sapato de inútil brilho.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Atravessaste a rua de tua casa
(quantas vezes, quantas manhãs),
as ruas de Blumenau,  incógnito,
sem alardes atravessando o fim do dia,
tanta travessia, tantos dias te vi à distância,
ligados pelo invisível, poema sob a pele,
te ouvi atravessando probabilidades, desafios,
desafetos, falsos arbítrios,
noticiários destorcidos,
palavras forjadas de mel e veneno,
palmas públicas, discursos vazios,
tapas nas costas, divergências,
tapumes, tambores de desfile,
sem queixas nem mágoas
defendendo água clara e pão da verdade
atravessaste a rua definitiva.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Homem: milagre perecível.
Mas todo homem é milagre de resistência:
conhecer o soluço, a esperança,
o súbito clarão da palavra solidária.
Entender o milagre vivo, aceso e vivo,
aceso e sobrevivo como o mar dentro das conchas
recolhidas na infância,
vivo entre as transversais da solidão,
aceso, vivo e sobrevivo
na seda da noite
que te acolhe
e te guarda dentro de uma estrela subterrânea.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Cedeste lugar: à mesa das refeições,
à transitória face, aos devaneios.
Mas acendes o lume da memória.
O tempo de cada homem
é tempo de metamorfose,
de circunstâncias efêmeras,
eis a flor, achada ao acaso,
eis a flor do tempo.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Deixar poemas escritos.
Deixar poemas por fazer, lapidar.
Deixar esta identidade real.
Deixar o nome em documentos precários,
deixar impressões na louça diária,
no trinco da porta,
no silêncio, na biografia,
na distribuição de afetos.

Deixar poemas: matéria da alma
que se estribe na solidariedade.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Pouco dizem os restos mortais.
E o que dizem teus princípios imortais
não decifra dúvidas
nem desfaz o nó de incertezas.
Mas sendo matéria de consolo
faz pensar
que o destino é suave.

Fonte: Suplemento Literário, "Minas Gerais", Belo Horizonte: Imprensa Oficial, n. 732, 11 de outubro de 1980, pp. 6-7.

Sobre o Autor


Daniel Lima

1. Cristo ressuscitou dos mortos
ao terceiro dia.
Eu me crucifiquei sem querer
e nem da cruz desci depois de morto.
Ainda estou lá pregado,
mais cômico que triste,
anônimo demais para ser chorado.

Um urubu pousado na cabeça
anuncia que nunca no terceiro dia
ressurgirei dos mortos.

Quero descer da cruz mas é proibido.

2. Eu que me faço a mim,
eu meu destino minha cruz, meus braços
pátria minha, desterro meu
me volto me significo
e me desfaço e me perco
no infinito das coisas
na distância dos braços estendidos
pátria minha, meu destino, minha cruz.

Na escura paisagem, lá no fundo,
Deus me espia.
E no frio de mim,
Deus tirita enervado
enquanto me entendio e calço meus sapatos.

Daniel Lima, poemas, Cepe: Recife, 2011, p. 194-195

Sobre o Autor

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Maria Gabriela Llansol


Fragmento de "Causa Amante"

Era impossível que o fogo ardesse além, portas adentro, não no palácio da Inquisição mas num convento. Jorge Anés tinha acabado apenas por sofrer a pena dos reconciliados
(sacrifício espiritual, prisão, ou desterro). Era impossível que o fogo ardesse ali até ao fim; era um conluio vegetal, nesse princípio da Primavera, enleado de verde de limoeiro, e de humidade; o sacrifício espiritual que lhe tinha sido dado como penitência fora o de lhe fazerem crer que ia ser queimado vivo; para que as plantas não fossem atingidas, devia arder num dia imprevisível em que não houvesse vento, ou o vento soprasse a leste, dispersando nessa direcção faúlhas e cinzas. Eu dizia a mim mesma que nesse lugar devia ser ainda mais estranho ver submetido fosse a que poder fosse um homem, ou ser vivo de qualquer espécie. Jardim de reflexão crescido lentamente, as plantas medicinais, legumes, os loureiros, haviam sido olhados, e cultivados, através do deslumbramento dos cegos: 
Alice, que dizia a si própria viver na cegueira do entendimento e eu, que chegara quase aos cinquenta anos para constatar, com muita pena, que vivia na cegueira da língua. 

Causa Amante, Lisboa: Relógio D´Água, 1996, p. 99


Sobre a autora

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Carlos Pintado

AUTORRETRATO EM AZUL

Morrer é impossível: bebemos
a cicuta, lentamente, como se fora vinho
e não morremos. Olho a pistola;
a coronha é que nem a noite.
Brinco com o gatilho e nada acontece.
Sozinho, sem ninguém, eu me odeio.
Penso que nada importo para o assassino.
Sou um tirano a mais. Ninguém conspira
às minhas costas. Renego minhas mulheres.
Sonho incendiar as casas desta cidade.
Abdico de meu nome e de minha história.
Morrer é impossível. Nada acontece.
Ninguém morre. Ninguém morre.
A morte nos escreve
os dias e as noites, pouco a pouco.

Tradução livre do original espanhol: Antonio Damásio Rego Filho e Alejandro Carvajal

Guerá Fernandes

PEDRA DE SER CANTO
Adélia vê na pedra de Drummond
O olhar generoso sobre as coisas
Ana C. diz que no meio do caminho
A pedra do poeta é o time
Que você tira de campo

Viver é uma espécie de cansaço
Ainda que Cabral a cante à palo seco
Sem lira sem romance sem vinho
De nascença uma pedra
A alma estranha de ser canto

E mesmo sem régua que sou vento
Eu olho para a pedra em silêncio
De ser pedra e não sentimento
Sei que da montanha carrega
Uma espécie de remanso

A pedra no meio do caminho
Como alguém em perdido descanso

Do livro Pedra de Ser Canto


Guerá Fernandes, poeta e educador mineiro, nasceu no dia 30 de julho, em Durandé, Minas Gerais.  Em 2001 lançou o livro independente de poesia "Na Antessala da Fala". Pela editora Multifoco,  em 2008, foi a vez de "Mares de Ilhas e de Cores se Chove", e em 2009, "Infinito Berrante". Em 2010 publicou seu primeiro romance "O Poço". Em 2012 publicou "Pedra de ser canto".

Visite o blog de Guerá Fernandes

Torquato da Luz



Mar de Enredos
Navegamos num mar de enredos:
mal a onda se esvai, logo outra vem
entre limos, enigmas e segredos
a que não escapa ninguém.
Por mais absurdo que o caso seja,
há sempre quem, por despeito ou inveja,
lhe dê sequência e atenção
para rapidamente o abandonar
em troca do que tome o seu lugar
na infindável sucessão.

E assim vamos gastando os dias
em novelos e ninharias.

Ainda e sempre
Ainda um dia hei-de contar-te as espantosas
coisas de que me lembro quando fico à tua espera
horas e horas, cada vez mais vagarosas,
e tu não chegas, meu amor, e tu demoras
mais do que a minha paciência. Quem me dera
aquele tempo em que era sempre primavera
e assistia indiferente à passagem das horas.
Mas, quando chegas, só me ocorre esquecer tudo
e ter-te uma vez mais como quem tem o mundo.

Fonte: Blog do autor - http://oficiodiario.blogspot.com.br/



Sobre o Autor 

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Fernando Pessoa

Nocturnos - 13
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa

Carlos Pintado

Quadras de Outono

Concederam-me o fogo do pecado.
Apenas o fogo; o amor jamais foi
em mim senão sombra. Sonhei
nas noites eternas do esquecimento,

que alguém me amava e sonhava comigo. Não pude
corresponder. Sou triste como o fado
que muda os destinos do amado.
Sou o amado; não quem ama. Fui

traidor e amigo. Agradei
aos deuses das trevas com o manjar sagrado.
Alguém na penumbra me buscou.
Alguém na penumbra me venceu.

Trad. livre para o português do Brasil: Antonio Damásio Rego Filho

terça-feira, 24 de julho de 2012

Arnaldo Antunes

As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz.

A vista daqui é linda. Ainda. Que não seja. Linda para outra.  Vista que a. Avista. Daqui é linda. Se não for vista a vista. Daqui ainda é. Linda. Ainda que não seja. Vista ainda. Que não se veja. Talvez assim seja. Mais linda. Ainda.

Eu coberto de pele coberta de pano coberto de ar e debaixo do cimento terra sob a terra petróleo correndo e o lento apagamento do sol por cima de tudo e depois do sol outras estrelas se apagando mais rapidamente que a chegada de sua luz até aqui.

Todas as coisas do mundo não cabem numa ideia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo.

Todos eles traziam sacolas, que pareciam muito pesadas. Amarraram bem seus cavalos e um deles adiantou-se em direção a uma rocha e gritou: “Abre-te, cérebro!

In As coisas, São Paulo: Iluminuras, 2002.
Transcrito de http://www.antoniomiranda.com.br



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Albano Martins

Pequenas Coisas
Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.

Albano Martins, in Escrito a vermelho,1999

Diálogo
Levarás
pela mão
o menino
até ao rio. Dir-lhe-ás
que a água é cega
e surda. Muda,
não. Que o digam
os peixes, que em silêncio
com ela sustentam
seu diálogo
líquido, de líquidas
sílabas
de submersas
vogais.

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"

Albano Martins nasceu em 1930 na aldeia do Telhado (e não, como consta do seu registo de nascimento, em Póvoa de Atalaia), concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, província da Beira Baixa, Portugal. Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi professor do Ensino Secundário de 1956 a 1976. Tendo ingressado, em 1980, nos quadros da Inspecção-Geral de Ensino, passou, em 1993, à situação de aposentado. 


Fonte: museuposmodernodeeducacao.blogspot.com

Daniel Faria

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vomito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a

Explicação da ausência
Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer – fosse abertura –
E a saudade é tudo ser igual.



















Daniel Augusto da Cunha Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de Abril de 1971. Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, tendo defendido a tese de licenciatura em 1996. Licenciou-se em Estudos Portugueses na faculdade de Letras da Universidade do Porto.  Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.
Recebeu vários prêmios literários relativos a inéditos de poesia e conto. Algumas publicações: Oxálida (Porto, Associação dos Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto, 1992), A Casa dos Ceifeiros (Porto, Associação dos Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto, 1993), Explicação das árvores e de outros animais (Porto, Fundação Manuel Leão, Colecção Fogo das Figuras, 1, 1998), Homens que são como lugares mal situados (Porto, Fundação Manuel Leão, Colecção Fogo das Figuras, 2, 1998) e o póstumo Dos Líquidos (Porto, Fundação Manuel Leão, Colecção Fogo das Figuras, 3, 2000). Colaborou nas revistas Atrium, Humanística e Teologia, Via Spiritus e Limiar.

domingo, 22 de julho de 2012

Marguerite Yourcenar

EXCERTO DE "FOGOS"

Lena ou o segredo
Lena era a concubina de Aristogiton e bem menos sua amante que sua serva. Eles habitavam numa casinha perto da capela de São Sotero. Ela cultivava tenras abobrinhas e abundantes berinjelas no pequeno jardim. Salgava as anchovas, cortava em quartos a polpa vermelha das melancias, descia para lavar a roupa no leito seco do Ilisso e zelava para que o seu amo usasse um lenço para proteger-se dos resfriados após os exercícios no Estádio. Como paga por tantos cuidados, ele se deixava amar. Saíam juntos e iam ouvir nos pequenos cafés as canções populares, ardentes e lamentosas como um sol  obscuro. Lena se sentia orgulhosa ao ver-lhe a fotografia na primeira página dos jornais esportivos. Ele se inscreveu no concurso de boxe de Olimpia e consentiu que ela tomasse parte na viagem. Ela suportou, sem se queixar, a poeira dos caminhos, a andadura fatigante das mulas e os albergues imundos onde a água era vendida mais caro que o melhor vinho das ilhas. Na estrada, o barulho dos carros era tão contínuo que não se podia ouvir nem mesmo o canto das cigarras. Certo dia, ao contornar uma colina por volta do meio-dia, ela descobriu aos seus pés o vale de Olímpia, cavado como a palma da mão de um deus que carregasse a estátua da Vitória. Um vapor quente flutuava sobre os altares, as cozinhas e as barracas da feira cujas jóias baratas Lena cobiçava com o olhar. Na multidão, para não se perder do amo, ela prendeu a ponta do seu manto entre os dentes. Havia ungido, ornado com fitas e lambuzado com beijos os ídolos bastante condescendentes para não repelirem os avanços de uma criada. Em intenção do sucesso do amo, recitou tudo que sabia de orações e despejou contra os rivais todas as maldições que conhecia. Separada dele durante as longas abstinências impostas aos atletas, dormiu sozinha sob a tenda, no reduto destinado às mulheres, fora do recinto reservado aos competidores. Repeliu as mãos que se estendiam no escuro, indiferente até mesmo aos cartuchos de sementes de girassol que lhe ofereciam suas vizinhas. A imaginação do boxeador enchia-se de torsos brilhantes de óleo e de cabeças raspadas nas quais as mãos não têm onde agarrar-se. Lena tinha a impressão de que Aristogiton a abandonava por seus adversários. Na noite dos jogos, ele surgiu carregado em triunfo através dos corredores do Estádio, arquejante como após o amor, presa dos fotógrafos e dos repórteres. Nesse momento ela teve a impressão de que ele a traía com a Glória. Sua vida de triunfador passava-se em comemorações com as pessoas da sociedade. Ela o viu sair do banquete ritual em companhia de um jovem da nobreza ateniense, ébrio de uma embriaguez que ela desejava atribuir ao álcool porque mais facilmente nos recuperamos do vinho do que da felicidade. Ele entrou em Atenas no carro de Harmódio. Abandonou Lena aos cuidados de uma de suas vizinhas e desapareceu numa nuvem de pó, arrebatado às carícias como um morto ou como um deus. A última imagem que ela guardou dele foi de uma echarpe flutuando sobre uma nuca morena. Como uma cadela que segue de longe seu dono que partiu sem ela, Lena retomou, no sentido inverso, a estrada montanhosa, em companhia das mulheres que se apressavam nos pontos mais desertos, temendo encontrar os sátiros. Em cada estalagem de aldeia em que entrava para comprar um pouco de sombra e um café acompanhado de um copo d'água, encontrava o proprietário ainda ocupado em contar as moedas de ouro caídas negligentemente dos bolsos dos dois homens. Por toda parte, eles haviam ocupado os melhores quartos, bebido os melhores vinhos e obrigado os cantores a cantarem até o romper do dia. O orgulho de Lena, que era ainda amor, curava as feridas do seu amor que era ainda orgulho. Pouco a pouco, o jovem deus arrebatador deixava de ser apenas um rosto para tornar-se para ela um nome, uma história, um breve passado. O garagista de Patras contou-lhe que ele se chamava Harmódio; o alquilador de Pyrgos falava sobre os seus cavalos de corrida; o barqueiro do Estige, cujas funções o obrigavam a frequentar os mortos, sabia que ele era órfão e que seu pai acabava de chegar à outra margem dos dias. Os ladrões de estradas não ignoravam que o tirano de Atenas o havia cumulado de riquezas e que as cortesãs de Corinto juravam que ele era belo. Todos, até mesmo os mendigos e os bobos da aldeia, sabiam que ele conduzia em seu carro de corrida o campeão de boxe dos Jogos Olímpicos. Aquele rapaz radiante não era senão a taça, o vaso ornado de fitas, a figura de longos cabelos da Vitória. Em Mêgara, o funcionário da alfândega municipal informou a Lena que Harmódio, tendo-se recusado a dar passagem ao carro do chefe do Estado, recebeu violenta reprovação de Hiparco por sua ingratidão e por suas relações plebéias. Milicianos apossaram-se à força do carro de fogo que ele não lhe havia dado, disse, para ser usado em companhia de um boxeador. Nos arredores de Atenas, Lena tremia ao som das aclamações sediciosas nas quais o nome de seu amo chegavalhe até os ouvidos pronunciado por dez mil pares de lábios. A juventude havia organizado desfiles com archotes em honra do vencedor, aos quais Hiparco se recusou a assistir. Os pinheiros arrancados com suas raizes choravam copiosamente sua resina sacrificada. Na pequena casa do bairro de  São Sotero, os bailarinos, batendo descompassadamente os saltos dos sapatos sobre as lajes do pátio, projetavam sobre a muralha um afresco móvel e nu. Para não perturbar ninguém, Lena introduziu-se silenciosamente pela entrada da cozinha. Os potes e caçarolas já não lhe falavam na antiga linguagem familiar. Mãos desajeitadas haviam preparado uma refeição. Ela se feriu no dedo juntando os cacos de um copo quebrado. Experimentou em vão afagar, com o auxílio de ossos e de carinhos, o lebréu de Harmódio deitado sob o guarda-comida. Havia esperado que o seu amo lhe trouxesse o menu dos jantares da alta sociedade aos quais comparecia, mas Aristogiton sequer notava os seus sorrisos. Para desembaraçar-se dela, mandou-a trabalhar na vindima de sua pequena fazenda de Decélia. Ela pressupõe um casamento entre seu amo e a irmã de Harmódio. Pensa, com horror, em uma esposa e, com angústia, na eventualidade dos filhos. Viu, na sombra projetada sobre o seu caminho, o belo Eros cercado de tochas. A ausência do casamento não tranquiliza senão medianamente essa inocente que se ilude sobre o tipo de perigo: Harmódio fez a desgraça entrar naquela casa como uma amante disfarçada. Lena sente-se preterida por essa mulher intangível. Certa noite, um homem de aspecto envelhecido, cujo rosto ela não reconhece, apesar de multiplicado ao infinito nos selos e nas moedas com a efígie de Hiparco, bate à porta de serviço e pede timidamente o pedaço de pão de uma verdade. Aristogiton, que entra por acaso, a encontra atarefada ao lado do mendigo de aparência suspeita. Ele desconfia demais dela para censurá-la: expulsa-a do quarto que se enche subitamente de gritos. Alguns dias mais tarde, Harmódio descobre seu amigo vítima de uma emboscada, junto à fonte de Clepsidra: grita por Lena para ajudá-lo a transportar o corpo do boxeador, tatuado a golpes de faca, para o único sofá da casa. Suas mãos escurecidas pelo iodo se encontram sobre o peito do ferido. Lena vê desenhar-se sobre a fronte curvada de Harmódio a rugazinha inquieta de Apolo, o encantador das feridas. Ela estende suas grandes mãos agitadas em direção ao jovem, suplicando-lhe que salve seu amo. Já não se admira de ouvi-lo censurar-se por cada ferimento como se fosse o único responsável pelos mesmos. Parece-lhe natural que um deus seja ao mesmo tempo assassino e salvador. Os passos de um policial em trajes civis, indo e vindo ao longo da rua deserta, faz estremecer o ferido deitado sobre o sofá. Só Harmódio continua a aventurar-se pela cidade como se nenhuma faca fosse capaz de abrir uma brecha em sua carne. Essa indiferença ao perigo confirma Lena na convicção de que ele é deus. Eles temem sua língua a ponto de procurar fazê-la tomar a agressão da véspera por uma rixa de homens embriagados. Temem sem dúvida que ela informe ao açougueiro ou ao merceeiro da esquina que ambos têm uma boa oportunidade para se vingarem. Lena percebe, horrorizada, que eles fazem os cães experimentarem os ensopados que ela lhes prepara, como se lhe atribuis sem boas razões para odiá-los. A fim de que os esqueça, eles partem com alguns amigos para acampar junto ao Parnato, à maneira cretense. Ocultam-lhe a posição da caverna onde dormem, mas a encarregam de lhes fornecer os alimentos que deve depositar sob uma pedra, como se se tratasse de mortos errando pelos confins do mundo. Como uma oferenda, ela leva para Aristogiton vinho negro e quartos de carne sangrenta, sem conseguir fazer falar o espectro exangue que não a beija mais. Aquele sonâmbulo do crime já não é mais que um morto caminhando em direção à sua sepultura, como os cadáveres dos judeus vão em peregrinação a Josafá. Toca timidamente em seus joelhos e em seus pés nus para assegurar-se de que não estão gelados. Julga ver na mão de Harmódio a varinha do feiticeiro Hermes, o condutor de almas. Seu regresso a Atenas se passa entre os cães do medo e os lobos da vingança. Figuras grotescas de pequenos fidalgos sem fortuna, advogados sem causa, soldados sem futuro se introduzem no quarto do amo como sombras projetadas pela presença de um deus. Desde que Harmódio obrigou-se, por prudência, a não mais dormir em sua casa, Lena, relegada à mansarda, já não pode velar cada noite o amo como se vela um enfermo, nem abraçá-lo cada noite como se abraça uma criança. Escondida no terraço, observa o abrir e fechar ininterrupto da porta da casa contaminada pela insônia. Assiste, sem nada compreender, às idas e vindas que servem de lançadeira para tecer a vingança. Às vésperas de uma festa esportiva, empregam-na para costurar cruzes aladas sobre vestidos de lã escura. Lâmpadas brilham nessa noite sob todos os tetos de Atenas: as donzelas nobres preparam seus vestidos de comungantes para a procissão do dia seguinte. No fundo do santuário, ajeitam-se os anéis dos cabelos ruivos da Virgem. Um milhão de grãos de incenso ardem sob as narinas de Atenas. Lena mantém no seu colo a pequena lrini que passou a viver na casa porque Harmódio teme que Hiparco vingue-se dele sequestrando sua jovem irmã. Sente-se tomada de piedade por essa mocinha que em outros dias havia receado ver entrar na casa sob a grinalda de esposa. Comove-se ao compreender que as esperanças de ambas haviam sido traídas. Passa a noite escolhendo as rosas vermelhas que a menina deve atirar à passagem da Virgem Puríssima. Harmódio mergulha as mãos impacientes ne interior da cesta, fazendo-as parecer molhadas em sangue. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons de· pérola, Lena toma pela mão a pequena Irini, que estremece sob o nacarado dos seus véus. Sobe com a criança muito compenetrada as rampas do Propileu. Dez mil chamas de círios brilham fracamente à claridade da madrugada como outros tantos fogos-fátuos que não tivessem tido tempo de regressar a seus túmulos. Hiparco, ainda bêbado de pesadelos, pisca os olhos ante tal brancura. Examina distraidamente a cândida fila azul das crianças de Atenas. Subitamente, percebe a semelhança detestada sobre o rosto impreciso da pequena lrini. Transtornado, sacode freneticamente o braço da jovem ladra que ousa apropriar-se daqueles olhos abomináveis e ordena que afastem para longe de sua vista a irmã do miserável que envenena seus sonhos. A criança cai de joelhos e o cesto tomba, espalhando seu conteúdo vermelho. Lágrimas tornam confusa a semelhança abominável e divina. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons de ouro como aquele coração inalterável, a boa Lena leva para casa a criança despenteada e privada de sua corbelha. Harmódio estoura de alegria ante a desejada humilhação. Lena, ajoelhada sobre o pavimento do pátio, balançando a cabeça como uma carpideira de funerais, sente pousar sobre sua fronte a mão do jovem impiedoso que se assemelha a Nêmesis. Os insultos do tirano, suas ameaças que repete sem tentar compreender, assumem em sua voz monocórdia a horrível monotonia dos veredictos sem apelo e dos fatos consumados. Cada ultraje imprime no rosto de Harmódio uma nova ruga ou um sorriso odioso. Diante da presença desse deus que nem mesmo quer saber o seu nome, ela se apaga, desinteressando-se até de existir, de ser útil e talvez mesmo de fazer sofrer. Auxilia Harmódio a mutilar os belos loureiros do pátio, como se o primeiro dever consistisse em suprimir toda sombra. Sai do jardim ao lado dos dois homens, ocultando os cutelos da cozinha dentro dos ramos de Páscoa. Fecha a porta para não perturbar a sesta de Irini. Fecha também a gaiola dos pombos, a caixa de papelão onde as cigarras se alimentam e, nesse instante, todo o passado torna-se profundo como um sonho. A multidão endomingada a separa dos seus amos. Já não os distingue. Empenha-se em segui-los ao longo dos canteiros do Pártenon, tropeçando no amontoado dos blocos mal desbastados que fazem o templo da Virgem assemelhar-se às suas ruínas futuras. A hora em que o céu de Atenas cobre-se de tons vermelhos, ela consegue vislumbrar os dois amigos que desaparecem entre a engrenagem das colunas como no fundo de uma máquina de triturar o coração humano para dele extrair um deus. Ouvem-se gritos. Bombas explodem. O irmão mais velho de Hiparco, estripado sobre o altar coberto de sangue e de brasa, parece oferecer suas entranhas ao exame dos padres. Hiparco, ferido de morte, continua a bradar suas ordens, enquanto se apóia a uma coluna para não cair vivo. As portas do Propileu se fecham para cortar aos rebeldes a única saída que não dá para o vazio. Os conjurados, apanhados nessa armadilha de mármore e de céu, correm de um lado para outro e acabam por cair sobre um amontoado de deuses. Arístogiton, ferido na perna, é capturado pelos batedores ao fundo das grutas de Pã.  O corpo linchado de Harmódio é esquartejado pela multidão como o de Baco durante as missas sangrentas. Adversários, ou fiéis talvez, passam entre si a espantosa hóstia. Lena ajoelha-se e recolhe no seu avental os anéis de cabelos de Harmódio, como se esse serviço fosse o mais urgente que ela pudesse prestar a seu amo. Agentes da polícia se lançam sobre ela e atam suas mãos, que perdem instantaneamente o aspecto gasto de utensílio doméstico para se transformarem em mãos de vitima, em falanges de mártir. Ela sobe no carro celular como os mortos sobem nas barcas. Atravessa uma Atenas estagnada e gelada pelo medo. Os rostos se ocultam por trás dos postigos fechados pelo receio de serem obrigados a julgar. Ela desce diante de uma casa cujo aspecto de hospital e de prisão a identifica como o palácio do chefe do Estado. Na entrada dos carros, cruza com Aristogiton oscilando sobre as pernas feridas. Deixa desfilar o pelotão de execução sem voltar para o amo os olhos que já se assemelham às pupilas vitrificadas dos mortos. O crepitar dos tiros no interior do pátio vizinho não soa para seus ouvidos senão como uma salva de honra sobre o túmulo de Harmódio. Empurram-na para dentro de uma sala caiada de branco, onde os torturados assumem imediatamente o aspecto de animais agonizantes e os carrascos, de vivisseccionistas. Hiparco, estendido sobre uma padiola, volta para ela a cabeça enfaixada e segura tateante aquelas mãos de mulher crispadas sobre a única verdade de que ele ainda tem fome. Fala-lhe tão baixo e de tão perto que o interrogatório tem o ar de uma confidência amorosa. Exige nomes e confissões. O que viu? Quais eram seus cúmplices? O mais velho dos dois teria servido de iniciador para o mais jovem nessa corrida para a morte? O boxeador não era senão um soco na mão de Harmódio? Teria sido o medo que levara o jovem a se desembaraçar de Hiparco? Teria sabido que seu superior já não o detestava e que O perdoara? Falava muitas vezes sobre ele? Sentia-se triste? Uma intimidade ·desesperada estabeleceu-se entre esse homem e essa mulher possuídos pelo mesmo deus, morrendo do mesmo mal, cujos olhares extintos voltavam-se em direção dos dois ausentes. Lena, submetida ao interrogatório, cerra os dentes e contrai os lábios. Seus amos ficavam calados quando ela servia os pratos. Ela havia permanecido na soleira das suas vidas como uma cadela junto às portas. Essa mulher vazia de lembranças esforça-se, por orgulho, em fazer crer que sabe tudo, que seus amos lhe abriram o coração como a uma confidente com quem se pode contar e de quem depende a revelação do passado. Os carrascos estendem-na sobre um cavalete para arrancá-la do seu silêncio. Ameaçam aquela flama com o suplício da água; falam em infligir o suplício do fogo àquela fonte. Ela teme a tortura que não arrancará de si senão a humilhante confissão de que foi apenas uma criada, jamais uma cúmplice. Uma golfada de sangue jorra de sua boca como durante uma crise de hemoptise. Lena arrancou a própria língua para não revelar os segredos que ela desconhecia.

In Fogos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, pp. 85-99, trad. Martha Calderaro

Carlos Pintado

TALVEZ NEM A LUZ ME SALVE
Distante da luz chamo minhas sombras.
Abraço-me à dor como quem sabe
que nenhum reino terá, além do esquecimento.                
Nada haverá senão  pegadas que outros deixam
sobre minha pegada. Distante de tudo,
nas tardes tranquilas de alguma cidade,
quem sabe alguém descobrirá meu rosto
no rosto sem vida de uma estátua.
Senti uma vez esse horror.
Sonhei a morte como sonha
uma criança em segredo com um brinquedo
muito alto para suas mãos. Abracei-me
a minha dor, a meu medo,
súbita sombra me abraçou.
Ninguém pode salvar-me da noite
nem dessas breves praias onde fomos
de certa forma o amado e o amante.
Senti a misteriosa espuma subindo-me
de alto a baixo, toda a friagem
da água, suas facas a devorar,
a arder nas trevas das águas.
Nada pode salvar-me dessa espuma, 
de seus cisnes de morte percorrendo-me.
Talvez já sem glória; despojado
de toda luz e brilho, silencioso
como um homem ciente de sua morte, 
recorro às paragens onde deixei
minha sombra a beber tua sombra
para depois sentar-me e ver tranquilo
como constroem torres em meu nome
como  ninguém escuta quando digo
sou mínimo, sou mínimo, e confesso
sou eu quem toca, às vezes, serenamente,
o coração insondável dos homens.
Tradução livre autorizada pelo autor, por Antonio Damásio Rego Filho

Omar Khayyám

RUBÁYÁT

VII
Enche a Taça de Vinho, e tua roupa severa
atira ao fogo acolhedor da Primavera!
Chega de contrição! O Pássaro do Tempo
abriu as asas rumo ao Fim que nos espera!
XII
Um Livro de Poesia sob a Rama Florida,
o Vinho e o Pão, ao lado a Mulher preferida,
cantando no deserto uma Canção singela,
fariam deste areal a Terra Prometida!
XXI
Amada, enche-me a Taça, vou deixar de lado
os medos de Amanhã e a mágoa do Passado!
Amanhã! Poderei considerar-me o mesmo,
com meus sete mil anos, sem estar cansado?
XXIV
Vamos gozar, Amor, cada breve Momento!
Logo seremos Pó, levado pelo Vento!
Pó jazendo no Pó, e sob o Pó da tumba,
sem Vinho, sem Cantor, sem Música ou lamento!
XXXV
Meu lábio degustou a sagrada Bebida
num Caneco de Argila, para entender a Vida.
Argila aconselhou: - "Contente-se em Beber,
não haverá mais Vinho após a Despedida!"
XLI
Sem mais interrogar o humano e o divino,
às mãos do Vento errante entrega teu Destino,
e teus dedos enlaça nas tranças do esbelto
jovem que oferta o Vinho - e viva o desatino!
XLII
Se o Vinho que bebes e os beijos de tua boca
têm Princípio e têm Fim, e tudo que nos toca,
morre, lembra que és Hoje o mesmo ser de Outrora,
e o mesmo de Amanhã nesta Existência louca!

Trad. Luiz Antônio de Figueiredo

Sobre Omar Khayyám

Fonte: FSP, 22 de julho de 2012

sábado, 21 de julho de 2012

Javier Iglesias

HAVANA E EU

Esta cidade morre lentamente,
Há mortos que não fazem barulho,
a Fé foi ao passado,
extraviou-se entre as colunas
e o ar cheirando à política.
Esta cidade de música
só escuta seu réquiem
e o som de copos de rum
afogando vidas.
Esta cidade que amo,
porque ensinou-me a caminhar,
emprenhou-me de amor e ódio
fugiu de minhas mãos,
agora que os sonhos pesam.
Esta cidade morre
e eu me nego a abandoná-la.

(Tradução do autor)


Javier Iglesias Alfonso. Havana, Cuba, 1963. Poeta, narrador e roteirista, publicou o livro de poemas “Mapa de Solidão”. Traduziu o livro de Lúcio Costa “Registro de uma Vivência”, publicado em Cuba e no exterior. Tem textos publicados em revistas e jornais de Brasil, Argentina, Estados Unidos e outros países. 


Copiado de http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/cuba/javier_iglesias.html

Joca Reiners Torreon

Reflexões de Bárbara Cartland I


Há um ácaro num buraco
em meu peito. Surgiu como cravo,
assim, do lado direito. Às vezes
suspeito que habita meu coração,
então espremo. Sai aquela gordura
e o ácaro, nunca o coração.
Gosto de imaginá-la, saindo por
aquele poro largo de espinha,
uma lesma longa e mole, meu
coração. Cairia na escada dos fundos,
pulsando, degrau em degrau, até
a casinha de Vênus, minha cadela,
que acharia seu gosto igualzinho
ao da Purina de fígado que ela
putz!, odeia.

Animal Anônimo - 2002


In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 90, seleção e prefácio Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2011, p. 177


Sobre Joca Reiners Torreon

Blog do autor

Mariana Ianelli

IGNORO SE TU ÉS CAPAZ DE VOLTAR
Ignoro se tu és capaz de voltar.
Quero a novidade de tua ausência
Com uma paixão sem calor que mais aumenta
Quando tento vencer a realidade.
Sou a paz em que acredito inutilmente
E ainda sou a vertigem desta paz.
O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem,
Que tua forma irresponsável de mover-se,
E se despir e descansar no meu passado.
Tu permaneces aqui sem corpo
E, pensando no oculto, eu abondono a existência
Para me deitar no lago das carpas.
Teria sido o final de um verão
E não o tempo em que te foste
Se em vez de amando eu estivesse louco.
Tu vives no propósito de minhas ficções:
Uma terra deserta, estável e mansa.
Nesta hora em que despareces do meu sonho,
Também eu, predador da tua alma, vou com os mortos.

Do livro Passagens, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 67

Mariana Ianelli

Nada foi feito que revivesse a coisa morta

Mas no rosto do amante solitário
Uma tarde despontou dentre milhares
E quis do homem o seu prazer intenso
De sonhar o mesmo vulto sobre a cama,
O mesmo vínculo que se estabeleceu
Para ser rompido como os que o antecederam
E os que viriam raramente depois dele.
Cindiu a indiferença dos anos e voltou
Com sua fome, seu poder ambíguo de encantar
Pela eternidade do instante que floresce
Apenas quando a melancolia de tê-lo perdido
Também volta, agora com toda a sua beleza visionária.
Uma tarde cuja manhã já se esqueceu
No traço de tantas iguais que vêm e passam
Como para só cumprir o ato necessário;
Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado.
Estava ilhada, suspensa no fluxo do tempo,
Era a relíquia do amante, e era o seu trauma.

Do livro Passagens, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 59

Entrevista com Mariana Ianelli



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Renan Nuernberger

AS COISAS CLARAS

O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
(João Cabral de Melo Neto)


Suponha um copo d’água
e uma sala repleta de luz.
Sobre o tampo d’uma mesa
o copo translúcido atua
suando tranquilo
sua mancha na madeira teca
opaca. Os bichos ciscando
lá fora. Janelas enormes
que ocupam quase
toda a extensão das
paredes da sala. O sol
emanando seus raios
ao pulmão de vidro
em que estou contido.
Escrevo à prova de balas.

Renan Nuernberger nasceu em São Paulo, SP, em 1986. Poeta. Mestrando em Teoria Literária na Universidade de São Paulo com dissertação sobre a poesia brasileira dos anos 1970. Publicou Mesmo poemas (Selo Sebastião Grifo, 2010) com apoio do ProAC e organizou a antologia Armando Freitas Filho por Renan Nuernberger(EdUERJ, 2011) para a coleção Ciranda da Poesia.


Fonte: http://asescolhasafectivas.blogspot.com.br/

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Adélia Prado

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

 
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

Sobre Adélia Prado

In O Pelicano, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987, p. 63



quarta-feira, 18 de julho de 2012

Antônio Cícero


O PAÍS DAS MARAVILHAS
Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.
(A Cidade e os livros - 2002)

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 90, seleção e prefácio Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2011, p. 122

terça-feira, 17 de julho de 2012

Yasmina Reza

FRAGMENTO DE "UMA DESOLAÇÃO"

Notar a singularidade. Lionel, meu amigo, e o mais apaixonado dos homens, nunca parou de pesquisar a ausência de paixões. Aquilo de que sofro, meu filho, está contido nesse olhar que vejo. Um olhar que oscila entre a piedade e o aborrecimento. E a irritação talvez. Você me ouve, você se esforça para estar presente, e nada do que você ouve está em você, nada lhe interessa nem o toca. Você sabe que a falta do ser presente é o mais forte? Você sentiu isso? Mesmo quando você acredita ser ouvido e amado, o outro persiste em sua ausência. A sua, meu filho, é radical. Eu posso pegar sua mão, mas você está tão longe quanto possível. Nós não podemos fazer nada juntos. Em seus olhos leio leio sua incompreensão e minha velhice. Leia o abandono. Leio o testemunho da solidão.

In UMA DESOLAÇÃO, Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 71, trad. Sérgio Guimarães


Sobre Yasmina Reza

Marguerite Duras

TEXTOS DE APRESENTAÇÃO (Anexo ao roteiro do filme O CAMINHÃO)

Primeiro Projeto
Não vale mais a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Não vale mais a pena fazermos o de uma justiça a vir, social, vigilante ou outra. A dó trabalho. Do mérito. A das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos nativos de Mali. Dos intelectuais. Dos senegaleses.
Não vale mais a pena fazer o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos seus espantalhos. Do amor. Do sofrimento. Não vale mais a pena fazermos o cinema do cinema. Não se crê em mais nada. Crê-se. Alegria: crê-se: mais nada. Não se crê em mais nada. Não vale mais a pena fazer o seu cinema. Não vale mais a pena. É preciso fazer o cinema do conhecimento disso: não vale mais a pena. Que o cinema caminhe para sua perda, para a sua perda, é a única política.

Segundo Projeto
O cinema impede o texto, atinge mortalmente sua descendência: o imaginário. Nisso reside sua própria virtude: fechar. Impedir o imaginário. Esse impedimento, esse fechamento, chama-se: filme, Bom ou não, sublime ou execrável, o filme representa esse impedimento definitivo. A fixação da representação uma vez por todas e para sempre. O cinema sabe disso: ele jamais pôde substituir o texto. Apesar disso, procura substituí-lo. Ele sabe que só o texto é o portador ilimitado de imagens. Porém não pode mais retornar ao texto. Não sabe mais retornar. Não conhece mais o caminho da floresta, não sabe mais voltar ao potencial infindável do texto, à sua ilimitada proliferação de imagens. O cinema é amedrontado, debate-se, luta, se esforça para encontrar outros caminhos que o da palavra para responder à inteligência crescente de seu espectador, para apreendê-lo e mergulhá-lo mais uma vez nas salas de projeção, para que continue a consumir o seu produto. Isso está visível. O cinema já vê o deserto do cinema à sua frente. Opulento, milionário, o cinema tenta, a partir de meios financeiros que competem com os das transações petrolíferas e campanhas eleitorais, reencontrar seu espectador. Os filmes se banham seja na beleza, no crime, no sangue, nas matanças, na pureza, no exotismo proletário, em Proust, Balzac, nos escândalos financeiros, na paciência dos povos, no florescer da fome. Em vão. O cinema jamais chega a corresponder à sede crescente do conhecimento do seu espectador. O que o cinema não sabe é que o que acontece fora do cinema junta-se ao que se passa no interior do cinema. Que não se trata, por mais milionário que ele seja, que o cinema possa apreender a inteligência que tenha um espectador da confecção desse cinema. Que a inadequação fabulosa entre os meios do cinema e seu projeto atinja de morte daí em diante o produto que sai. Que é a mesma coisa. Que a fabricação do filme já é o filme. A recusa torna-se indivisível e total. O espectador cada vez mais deixa de entrar na sala. Sabe previamente que o produto que lhe oferecem está aferrolhado nos milhões, bastardo, poluído pelas próprias condições de sua confecção. A recusa surge como tal, saída da asfixia das palavras de ordem ativas de todo tipo. É livre. O espectador não quebra mais as vitrinas. Ele passa. Fica na rua, em vez de entrar. E nada mais. A multidão doente, sofrendo de calma, de digestão contínua, tornará a entrar no cinema, porém de agora em diante sozinha. Suportará o filme, sem repercussões, sem eco. Uma pedra atirada num poço. Já faz muito tempo que muitos abandonaram o cinema. E o fizeram por causa disso.

Terceiro Projeto
Não sei aonde vou em O caminhão. Ela, a mulher, também não sabe. E isso nos é, da mesma forma, igual. Eu não sabia quem era aquela mulher. Nada. Apenas isto: eu sabia que havia uma mulher na curva de uma estrada - eu via essa estrada na Mancha, na direção de Vauville - que esperava um caminhão e eu. Isso depois de várias semanas. Eu não trabalhava o texto. Eu sabia que o texto, qualquer que fosse, seria jogado fora pela filmagem. Que a mulher e o texto não coincidiriam antes do filme. Que a mulher só começaria a existir com o filme, ao mesmo tempo que o filme, e à medida do seu desenrolar. Mais ainda: que a mulher estava ansiosa para o filme começar a existir. Antes dele, só vejo dela a espera. Eu sei amála. Virei-me para ela. Ela, não, ela se virou para o exterior. Ela não sabe que a amo, não sabe ser amada, ignora o amor que é capaz de inspirar. Ela, virada para fora: Olha. Eu, virada para ela. Olhando-a. Projetadas, ambas, na direção do exterior. É por ela que eu vejo. Por ela que eu pego o exterior e que o submerjo em mim. Eu a amo. Ela me ignora. Sempre virada para o exterior. Desloco meu olhar. Olho o que ela olha: isso fica cada vez mais nítido. Eu não a vejo, eu nunca vejo seu rosto. Quando o filme acaba, nunca vi seu rosto. Porém o que ela olhava me deslumbrou: o filme. 

Quarto Projeto
Em lndia Song, tentei fazer com que a história de um amor transborde do seu território. Através de Michael Richardson, Anne-Marie Stretter gosta de Calcutá inteira. Em O caminhão a história, o pretexto para falar de amor desapareceu. A mulher do caminhão vive um amor de ordem geral. Ela ignora vivê-lo. Completamente virada para fora, ela entrou num processo de desaparecimento de identidade. Não apenas não sabe quem é, mas procura em todos os sentidos quem poderia ser. Em O caminhão não lhe resta nenhuma outra referência a uma possível identidade do que aquela prática da carona. Ela não passa de uma caroneira. Assim como me apareceu, vejo-a desaparecer, ela pára outro veículo e me abandona para sempre. Ela se mantém, assim, um tanto anulada, num constante estado de espera, de espera dela mesma, na esperança de ser tudo ao mesmo tempo. Seu movimento em direção ao tudo é, para mim, o do amor. A mulher do caminhão não me aborrece. Ela não procura nenhum sentido para sua vida. Descubro nela uma alegria de existir, sem procura de sentido. Uma verdadeira regressão, em curso, em progresso, fundamental. O único recurso sendo aqui esse conhecimento decisivo da inexistência do recurso.

[In O CAMINHÃO, trad. José Sanz, Rio de Janeiro: Record, 1977, pp. 57].







segunda-feira, 16 de julho de 2012

Marguerite Yourcenar

EXCERTO  DE "FOGOS"
Poderias mergulhar, como um só bloco, no nada para onde vão os mortos: eu me consolaria se me legasses tuas mãos. Tuas mãos. Apenas tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as mãos dos deuses de mármore transformados no pó e na cal das suas próprias sepulturas. Elas sobreviveriam aos teus atos e aos corpos miseráveis que acariciaram um dia. Entre as coisas e ti, elas já não serviriam de intermediárias: seriam transmudadas em coisas. Tornar-se-iam inocentes porque não estarias presente para convertê-las em cúmplices. Tristes como cães sem dono, desnorteadas como arcanjos a quem nenhum deus dá ordens, tuas mãos inúteis repousariam sobre os joelhos das trevas. Tuas mãos abertas, incapazes de proporcionar ou de receber qualquer alegria, me deixariam cair como uma boneca partida. Beijo, na altura do pulso, essas mãos indiferentes que tua vontade já não afasta das minhas. Acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora brotava ininterruptamente do solo do teu coração como o jato de uma fonte. Com pequenos soluços satisfeitos, tal uma criança, descanso minha cabeça entre essas palmas cheias de estrelas, cruzes e precipícios que um dia compuseram o meu destino.

In Fogos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, pp. 67-68, trad. Martha Calderar

domingo, 15 de julho de 2012

José Régio

SABEDORIA
Desde que tudo me cansa,
Comecei a viver.
Comecei a viver sem esperança ...
E venha a morte quando Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje,  é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar ...
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

[In A Chaga do Lado Sátiras e Epigramas de José Régio, Lisboa: Portugália Editora, 1954, pp. 49-50].


Carlos Pintado

A NOITE AVANÇA BREVE EM MEU CORPO

A noite avança breve em meu corpo.
Em seus braços tremo como um menino.
Ando nas sombras, enigmático,  temeroso,
perdido e desesperado para sempre.
Em mim a escuridão é um castigo
de deuses e anjos sombrios.
Meu destino é a noite. Uma penumbra
infinita ronda meus passos.
Nada além do silêncio me acompanha,
nada além de nada e de ninguém
nunca o amor, a glória do que foi
de musgo ou de ouro um frouxo anel
talvez encontrado na fonte,
pássaro de luz nas trevas, fulgurando.



Tradução livre do original espanhol, por Antonio Damásio Rego Filho (Com permissão do autor)

sábado, 14 de julho de 2012

Maria Gabriela Llansol


 O QUE APRENDI COM TERESA?

O que aprendi com Teresa? Que a ressurreição não é um acto de potência divina, mas a suprema manifestação de amor. Dar a vida não chega, não é um acorde consonante com a substância. Ressuscitar, sim, é o acorde perfeito.
            Mais adiante, o texto falar-nos-á de uma rapariga.
            Ele entra, e diz-me:
            – Sim – diz-me ela, pousando as mãos nos meus joelhos: – Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e que seja um homem.
            – Alguém que queira ressuscitar para ti?
­            – Sim. Alguém que tenha comigo essa memória.


In O jogo da liberdade da alma, Lisboa: Relógio d’Água, 2003

(Teresa é Thérèse de Lisieux, de quem Maria Gabriela Llansol traduziu O alto voo da cotovia)

Marguerite Yourcenar

EXCERTO DE "COMO A ÁGUA QUE CORRE"
A história de Ana adquiriu daí em diante a monotonia de uma prova longamente suportada. O senhor de Wirquin cedo abandonara o lado espanhol para reincorporar-se à França, o que aumentou o desdém que Ana lhe votava. Muitas vezes, a guerra saqueara suas terras; foi preciso salvaguardar tanto quanto possível os camponeses, o gado, os bens móveis, mas tais preocupações em comum não os reaproximaramo De seu lado, o marido de Ana não perdoava ao sogro o fato de haver dispersado sua fortuna em fundações piedosas; os bens quase fabulosos em razão dos quais, ao menos em parte, contratara essa aliança, nada mais eram que miragens. Entre Ana e ele, a polidez substituía a ternura, sentimento que ele não julgava, aliás, necessário em suas relações com uma mulher. De início, Ana suportara suas atenções noturnas com repulsa; depois, o prazer vez por outra nela se insinuara à sua revelia, mas limitado a uma parte baixa e estreita de sua carne, jamais lhe fazendo vibrar todo o ser. Foi de bom grado que Ana soube em seguida ter o marido arranjado amantes que dela o afastaram.

Algumas gravidezes, toleradas com resignação, deixaram-lhe sobretudo a lembrança de longas náuse-as. Contudo, ela amava os filhos, mas com um amor animal que diminuía quando estes dela não tinham necessidade. Dois meninos morreram em tenra idade; ela lamentou sobretudo a mais jovem, cujos traços infantis recordavam-lhe os de Miguel, mas com o tempo esse desgosto também passou. O mais velho, homem de guerra e de corte, debatia-se com os credores que lhe deixara o pai, morto em duelo após uma nebulosa questão de honra. Sua filha era religiosa em Douai. Poucos meses após a morte do senhor de Wirquin, um amigo do defunto que escoltava Ana d'Arr as a Paris, onde se encontrava seu filho, aproveitou-se de uma parada ocasional da viagem para assediar a viúva ainda bela; muito cansada para lutar, ou talvez solicitada pela própria carne, Ana o recebeu nem com mais nem com menos emoção do que experimentara no leito conjugal. Ele não deu nenhuma importância ao ocorrido, e partiu para reincorporar-se a seu regimento na Alemanha; na verdade, nada disso importava. Durante as raras permanências de Ana no Louvre, a rainha se entusiasmou por aquela espanhola de alta estirpe, com a qual lhe agradava entreter-se em seu idioma natal. Mas a viúva de Egmont de Wirquin recusou um lugar de açafata. A pompa francesa e o luxo de Flandres, sob seus céus sempre sombrios, nada eram se comparados à lembrança dos faustos de Nápoles e a seu límpido céu.

Com os anos, o isolamento, a fadiga, uma espécie de estupor a prostrou. O consolo das lágrimas lhe era recusado; ela se consumia nessa secura como no interior de um árido deserto. Em certos instantes, delicados fragmentos do passado se inseriam inexplicavelmente no presente, sem que se soubesse de onde vinham: um gesto de dona Valentina, uma gavinha de videira ao redor da polia de um velho poço no pátio de Acropoli, uma luva de dom Miguel esquecida sobre a mesa e ainda quente de sua mão. Parecia então que uma tépida brisa soprava: ela quase desfalecia. Depois, durante longos meses, o ar lhe faltava. O ofício dos mortos, entoado toda noite ao longo de quase quarenta anos, à força de repetido, perdia de repente todo o sentido. O rosto do bem amado lhe aparecia às vezes em sonho, nítido até o menor detalhe do buço acima dos lábios; o tempo restante jazia decomposto em sua memória como o próprio dom Miguel em sua tumba, e ora lhe parecia que este jamais existira a não ser nela, ora ela impunha a um morto, de maneira quase sacrílega, que continuasse a viver. Assim como outros se fustigam para reanimar seus sentidos, Ana se flagelava para reavivar o seu luto, mas sua dor exaurida nada mais era que uma lassidão. Esse coração mortificado recusava-se a sangrar.

Ao alcançar a casa dos sessenta, dona Ana deixou o domínio ao filho e entrou como pensionista para o convento de Douai, onde a filha tomara o hábito. Outras damas da nobreza aí terminavam seus dias. Pouco após a chegada de Ana, preparou-se um quarto para urha tal madame de Borsêle, uma das amantes pelas quais se arruinara Egrnont de Wirquin. O tempo que essas senhoras não consagravam aos ofícios religiosos era consumido em bordados, em leitura em voz alta de cartas que lhes enviavam os filhos, em pequenas refeições ou finas ceias que ofereciam umas às outras. A conversa girava em torno dos costumes e maneiras de sua juventude, dos respectivos méritos dos maridos defuntos ou dos atuais confessores e dos amantes que gabavam ter tido, ou não tê-los tido. Mas todas voltavam sempre, com uma insistência repugnante e quase grotesca, a seus males corpóreos visíveis ou ocultos. Era quase como se o fato de exibir assim suas doenças se tornasse para elas uma nova forma de impudicícia. Uma certa surdez impedia que dona Ana lhes ouvisse as frases, permitindo-lhe furtar-se àquela promiscuidade. Cada uma tinha sua serviçal, mas ocorria que essas moças eram negligentes ou que, por uma ou outra razão, as despedissem, e as irmãs conversas nem sempre eram suficientes para atender às pensionistas. Madame de Borsêle era obesa e quase inválida; Ana ajudava-a por vezes a pentear-se, e a beldade de outrora batia palmas quando se lhe aproximavam o rosto do espelho. Ou, então, se lastimava ridiculamente porque se tinham esquecido de deixar-lhe ao alcance a caixinha de confeitos. Ana se erguia então do lugar onde estava, o que não fazia senão com esforço, achava a caixinha e deixava que madame de Borsêle se entupisse de doçuras. Certa vez, uma velha pensionista, ao voltar do refeitório, vomitou no corredor. Nenhuma servente lá se encontrava no momento; Ana lavou as lajes.

As religiosas admiravam a mansidão de Ana para com sua antiga e escandalosa rival, sua austeridade, sua humildade, sua paciência. Mas nela não havia nem mansidão, nem austeridade, nem humildade, nem paciência. Ana estava, muito simplesmente, alhures.

Ela voltara à leitura dos místicos: Luis de León, frei Juan de la Cruz, a santa madre Teresa, os mesmos que lhe lia outrora, ao sol dos meios-dias, um jovem cavaleiro todo de negro. O livro ficava aberto sobre o vão da janela; sentada sob o pálido sol de outono, Ana pousava de quando em vez sobre uma linha os olhos fatigados. Ela não tentava decifrar o sentido, mas aquelas longas frases ardentes faziam parte da música amorosa e fúnebre que acompanhara sua vida. As imagens de outrora raiavam de novo em sua juventude imóvel, como se dona Ana, em seu declínio insensível, começasse a esperar o sítio onde tudo se reúne. Dona Valentina não estava longe; dom Miguel resplandecia no clarão de seus vinte anos; estava muito próximo. Uma Ana de uma vintena de anos ardia e vivia, ela também a mesma, no interior daquele corpo de mulher gasto e envelhecido. O tempo derrubara suas barreiras e rompera seus grilhões. Cinco dias e cinco noites de uma violenta felicidade outra vez inundavam com seus ecos e reflexos todos os confins da eternidade.

Sua agonia, contudo, foi longa e penosa. Ela esquecera o francês; o capelão, que se gabava de saber algumas palavras de espanhol e um pouco de italiano dos livros, vinha às vezes exortá-la em um desses dois idiomas. Mas a agonizante não o escutava nem o compreendia senão a custo. O padre, conquanto ela não o visse mais, continuava a apresentar-lhe um crucifixo. Por fim, o rosto devastado de Ana se distendeu; ela baixou lentamente as pálpebras. Ouviram-na murmurar:

- Mi amado ...

Julgaram que ela falasse a Deus. Talvez ela falasse a Deus.


In YOURCENAR, M. Como a Água que Corre, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1983, pp. 72-76, trad. Ivan Junqueira

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...