sábado, 28 de fevereiro de 2015

Keats

MEG MERRILIES

I
Velha Meg era uma cigana,
Que vivia pelos descampados.
Sua cama a relva castanha,
E sua casa os caminhos.

II
Suas maçãs as negras amoras,
Suas passas as vagens de giesta;
Seu vinho o orvalho da rosa silvestre,
Seu livro a esteia das criptas.

III
Seus irmãos os troncos dos pinheiros,
Suas irmãs as pedras das encostas;
Só com esta grande família
Ela vivia como queria.

IV
Nenhum desjejum de manhã,
Sem almoço ao meio-dia.
Em vez de jantar contemplava
De olhos arregalados a lua.

V
A cada manhã com trepadeiras
Engendrou suas guirlandas,
Cada noite com o teixo do vale
Tecia, e cantava.

VI
Com seus dedos velhos e pardos
Trançava tapetes de junco,
E os dava aos camponeses
Que encontrava pelos arbustos.

VII
Tão valente quão a Rainha Margaret
E alta como uma Amazona.
Vestia velha capa vermelha;
E um barato chapéu.
Deus permita que seus ossos repousem
Há muito ela morreu!




Else Lasker-Schüler

Fuga do mundo
Vou-me embora pra lá de além,
De volta a mim,
Jacinto em flor terçã
No temporão de minha alma,
Quiçá já tarde — tarde demais!
Ah, vou morrendo entre vocês,
Que me sufocam com vocês!
Lios queria que me atassem —
Num vira e mexe que findasse!
Desconcertante,
Equívoco por um instante,
Para que enfim eu escapasse
No rumo de mim.

Fim do mundo
Há um lamento no mundo,
Como se não mais houvesse o bom Deus,
E a sombra que cai, cortina de chumbo,
Pesa mausoléus.
Vem, escondamo-nos mais de perto...
A vida jaz nos corações
Como nos féretros.
Ei, beijemo-nos até não mais poder —
Pulsa uma saudade no mundo,
E é disso que temos de morrer.

[Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo]


ángel descansando
carmen montesino



Mariana Ianelli

CANTO DE OFÍCIO
A cada dia, por ser hoje,
Eu te agradeço.
Por esse quarto à meia luz
E outros mundos,
Por esse gosto de amêndoa
E outros prazeres.

Quem quer que sejas tu
E onde estiveres,
Sob qualquer face
Que me apareças,
Assim é.

Pela incerteza essencial
Sobre mim mesma,
E estas palavras
Desde há pouco sem proveito,
Entranha, mistério, vereda
- Eu agradeço.

A cada noite inaugural
E derradeira,
Que me sustém
Não menos que o suficiente,
Bendito o fruto, o sal, o chão
E este silêncio.

Fundo de ravina o meu lugar,
Se já não creio.
Alto de um monte, se resisto.
E descrendo, resistindo,
Eu agradeço.

Que me possua o antro
Dos meus edifícios,
Como a pedra ordinária
É possuída
Por sóis e luas
Em seu tempo de maré.

Que eu me refaça
De quanto tenha desistido
Como a dizimação de um povo
No testemunho dos vivos.

E que eu envelheça
Par a par com esta casa,
Debaixo do musgo e da poeira,
O corpo palpitando ainda,
Mas num insensível batimento.

Por tudo o que se eleva
Numa onda
Logo se quebrando
Junto à espuma,
Pelo que no adeus se perpetua,
Sim, louvado seja.

Embora muito fique por saber
Das letras e dos números,
E tanto por dizer
Sobre o mal e a loucura,
Embora o rosto penso,
O grito, os pés inúteis.

Quão breve o momento
E quão vasto seu milagre.
Os favores da pele,
O céu de um poema,
A benção do pão e da água.

A benção, apesar
Do irremediável olho cego,
Das almas perseguidas
E do aborto solitário.

Porque aqui se chega,
A este dia e a esta luz
E é tão raro aceitá-lo.
Porque daqui se vai.

O adágio,
A flor do ourives,
O vermelho da China,
Um giro de bailarina,
Graças a ti, todas as artes.

Por esse vinho
E seus quinze outonos.
Pelo descanso da terra.
Por essa terra.

(In Almádena, São Paulo: Iluminuras, 2007)
Interior de igreja, Arcângelo Ianelli, óleo sobre tela, 1953


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Gastão Cruz

EM TARDES E CREPÚSCULOS 

Em tardes e crepúsculos marcados
por ferro que esmagava a esperança
revendo tempo como filme ou quadro

antes filme talvez porque continha
o movimento
do que acontece sem às vezes termos

consciência disso
em fins de tarde quando eu regressava
nem sei se do presente ou dum futuro

conhecido tu perguntavas como
seriam esses dias que pareciam
impossíveis mas, já não duvidávamos,

viriam
embora ainda fossem simplesmente
uma espécie de nuvem não direi

negra por ser o óbvio e não seria
porventura essa a cor do que viria,
esse tempo sem cor de que falávamos

quando do que virá  falamos convencidos
de que a vinda
tão temida já nada significa

e afinal é ainda possível
acreditar um pouco no sentido
de palavras ambíguas como  vida

O AR

recordando Fiama e Luís Miguel Nava
no jardim Gulbenkian

Numa tarde que excede já o inverno
busco o lugar de outrora no jardim
onde o ar recupera o dom eterno
de voltar a ser jovem quando o fim

do tempo que domou o seu desejo
o corpo lhe devolve e aquece, ao dia
o entregando; aqui num banco vejo
da mente transportados para a fria

superfície da pedra dois poetas
que sobre ela existiram, suas falas
no ar sobrevivente como rectas
perfeitas desenhando; agora cala-se

o jardim onde apenas a aragem
move a nova folhagem devagar

18 de março de 2011

[In Observação do Verão seguido de Fogo, Rio de Janeiro: Móbile, 2013, pp. 26-27]



terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

García Lorca

TRÊS HISTORIETAS DO VENTO

I
O vento vinha vermelho
pelo desfiladeiro encendido
e ficou verde, verde
pelo rio.
Logo ficará violeta,
amarelo e...
Será sobre as semeadas
um arco-íris estendido.

II
Vento estancado.
Em cima o sol.
Abaixo
as algas trêmulas
dos álamos.
E meu coração
tremendo.
Vento estancado
às cinco da tarde.
Sem pássaros.

III
A brisa
é ondulada
como os cabelos
de algumas raparigas.
Como os marzinhos
de alguns velhos mapas.
A brisa
brota como a água
e se derrama
- como um bálsamo branco -
pelas canhadas,
e desmaia
ao chocar-se com o duro
da montanha

1927

[In Poemas Esparsos, In Obra Poética Completa, Tradução Willian Angel de Mello, São Paulo, Martins Fontes, 1996,  pp. 627-629].

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Enrique Vila-Matas

A ARTE DE DESAPARECER

Até aquele dia, exatamente o dia de sua aposentadoria, a ideia de chegar a ter sucesso na vida sempre o aterrorizou. Volta e meia era visto a andar na ponta dos pés pela escola ou por sua casa, como se não quisesse incomodar ninguém. E sempre tinha existido nele uma recusa total do sentimento de protagonismo. Perder, por exemplo, era algo de que sempre gostou. Até no xadrez preferia jogar um tipo de jogo que se chama autômato, e que consiste em obrigar o adversário a vencer. Gostava de sentir-se protegido dos olhares indiscretos dos outros. E não era nada estranho, portanto, que tudo o que ao longo de quarenta anos vinha escrevendo — sete extensos romances sobre o tema do equilibrismo — permanecesse rigorosamente inédito, guardado a sete chaves no fundo de um baú que tinha herdado de seus discretos antepassados.

   Era um homem modesto, não voltado a si mesmo, mas a uma busca obscura, a uma preocupação essencial cuja importância não estava ligada à afirmação de sua pessoa; tratava-se de uma busca muito peculiar, em que estava empenhado com obstinação e força metódicas, e que só se dissimulava sob sua modéstia.

   Para que me exibir (raciocinava Anatol cinicamente) e por que dar os meus textos para impressão, se no que eu escrevo suspeito não haver mais que uma cerimônia íntima e egoísta, uma espécie de interminável e falsificada fofoca sobre mim mesmo, destinada, portanto, a uma utilização estritamente privada?

   Era um raciocínio absolutamente cínico que volta e meia ele fazia, para não sentir a tentação de publicar. Porque nada mais distante da realidade do que aquilo que dizia a si mesmo, para assim enganar-se e poder seguir na amada sombra do espaço fechado de seu estúdio.

   Entre as medidas para poder viver como escritor secreto, a mais curiosa era a que havia tomado há mais de quarenta anos: a de morar em seu próprio país, a pequena e sedutora, mesmo que terrivelmente mesquinha, ilha de Umbertha, fazendo-se passar por estrangeiro. Foi fácil enganar todo mundo, porque o trágico e brutal desaparecimento de toda sua família na guerra o ajudou na mudança de identidade. De repente, certa noite, todos mortos, Anatol compreendeu que estava só, completamente só no mundo, e sentiu essa sensação de extravio que se vive quando, no caminho, voltamos atrás e vemos o trecho percorrido, a via indiferente que se perde num horizonte que já não é o nosso. Acabada a guerra, Anatol disse a si mesmo que ao final só restava isso, o olhar para trás que percebia o nada, e ficou perambulando — extraviado — três longos anos pela Europa, e quando fez vinte anos regressou a Umbertha, e o fez exagerando enormemente os agás aspirados (em Umbertha não há palavra que não leve essa letra, que é pronunciada sempre de forma relativamente aspirada) e cometendo todo tipo de erros quando falava esse idioma. Todo mundo o tomou por forasteiro, e até riam de seu exagero ao aspirar os agás, o que deu a Anatol a garantia imediata de proteção como escritor secreto, pois em Umbertha os caçadores de talentos só estavam interessados em possíveis glórias nacionais e descartavam sistematicamente qualquer pista que pudesse conduzir a gênios forasteiros.

   Em quantos lugares deste mundo (pensava Anatol) não haverá neste instante gênios ocultos cujos pensamentos nunca chegarão às pessoas? O mundo é para os que nascem para conquistá-lo, não para os que preferem passar despercebidos, viver no anonimato.

   Vivendo nesse anonimato, tentando passar pela vida na ponta dos pés, protegido por sua falsa condição de estrangeiro e confiando em não ser nunca reconhecido como nativo da ilha nem como escritor, pôde desfrutar por quarenta anos de uma discreta e feliz existência. Sempre em companhia de sua esposa Yhma, uma umberthiana que lhe deu cinco filhos e foi sempre a cúmplice fiel de seus segredos literários. E trabalhando sempre na mesma coisa, como professor de idiomas e de educação física na escola da capital. Sempre na mesma coisa, sempre, até que chegou o dia de sua aposentadoria.

   Foi precisamente nesse dia quando, repercutindo ainda os ecos do emocionado aplauso de várias gerações de alunos que fizeram questão de assistir a sua última aula, viu estar em risco pela primeira vez em quarenta anos a total recusa que tinha pelo sentimento de protagonismo, pois notou que no fundo não lhe desagradavam nada todas aquelas demonstrações de afeto, e também o sentir-se (ainda que fosse apenas por algumas horas) o centro das atenções daquele instituto de ensino, no qual, sem pretender, tinha se transformado em uma instituição. Com seu peculiar sotaque estrangeiro e aspirando mais que de costume os agás — sem dúvida para rir um pouco de si mesmo —, brincou com seu amigo, o professor Bompharte, sobre a estima que tinha na escola.

Querido Bompharte, veja só: instituto, instituição — disse Anatol.

   Bompharte lhe dedicou um sorriso amável e condescendente (o que habitualmente dedicava quando não conseguia entender o que Anatol queria dizer) e comentou que se alegrava por vê-lo tão radiante:

Você está muito bem. Isso de se aposentar está sendo uma maravilha para você.

   Anatol se calou, porque pensou que se falasse teria de explicar — e aquilo era vergonhoso para ele — que se estava tão radiante era devido ao muito que estava desfrutando ao se sentir, entre tanta gente, o centro das atenções na escola.

   Veja só como são as coisas (pensava Anatol). Passo dias, meses, anos recusando qualquer tipo de protagonismo e quando de repente me torno o personagem principal da história fico muito contente.

Por que ficou tão calado? No que está pensando? — perguntou então Bompharte.
Em como todos nós, humanos, somos volúveis — respondeu-lhe. — E não me pergunte agora por que estava pensando nisso. Deixemos assim. De vez em quando gosto de ter algum segredo.
Tá certo — disse Bompharte com um ar um tanto misterioso. — Com certeza lhe falei da exposição de fotografias sobre o mundo do esporte que ando preparando...
Sim, me falou.
Mas não sei se disse que pensamos também em editar um livro sobre a exposição... 
Não.
É que pensei em você, dada a autoridade que lhe conferem tantos anos como professor de educação física, para escrever a introdução. O que acha? Suspeito, amigo Anatol, que o faria muito bem. Você sempre me pareceu um escritor secreto.

   Anatol, completamente lívido, acreditou que o fim do mundo havia chegado. Que tipo de piada infeliz era aquela? Toda ordem, harmonia e tranquilidade de sua vida cambalearam por instantes. Demorou a se dar conta de que não era para tanto, de que as palavras de Bompharte eram apenas uma forma convencional de instigá-lo a escrever quatro intranscendentes linhas, e nada mais. Mas até entender, passou um mau bocado. O pior de tudo era que sua lividez repentina e a expressão de pânico o estavam delatando.

Está acontecendo alguma coisa com você, Anatol?

   Finalmente reagiu a tempo e conseguiu mudar a expressão de seu rosto.

Não, nada. Por quê? — sorriu.

   Era muito melhor não se negar a escrever a introdução, pois isso sim equivaleria a levantar automaticamente todo tipo de suspeitas. Era melhor aceitar o encargo, escrever quatro linhas com negligência e torpeza, quatro besteiras, e acabar com aquele assunto desagradável.

Eu pensei — Bompharte já estava se desculpando — que tendo como vai ter a partir de agora mais tempo livre, eu pensei, disse a mim mesmo...
Nada! — brincou Anatol. — Instituto, instituição! Como poderia não escrever a introdução para você?

   Uma semana depois, chegavam as fotografias a sua casa de recém-aposentado. Eram imagens de tênis, futebol, esgrima, atletismo, natação... Acreditou apreciar de imediato nas fotografias dos saltos com vara uma beleza incomum, que se destacava das demais imagens que lhe haviam enviado. Uma beleza única. E quando começou a redigir a introdução, não demorou a se dar conta de como seria difícil escrever com negligência e torpeza. Mesmo que pudesse, teria sido incapaz de assinar um texto fraco; além disso, acreditava que cada homem tem escrita no próprio sangue a fidelidade de uma voz e que não faz mais do que obedecer a ela, por mais invalidações que a ocasião sugerisse.

   Disse a si mesmo ser incapaz de escrever mal e trair-se, e que, além disso, ali estava (não podia afastar dela seu fascinado e obsequioso olhar) a exagerada e singular beleza das fotos dos saltos com vara, que inevitavelmente acabou comparando em seu texto com as heroicas manobras dos equilibristas. E como conhecia estes à perfeição, pois não fora em vão que levara quarenta anos escrevendo sobre seu arriscado ofício, o resultado final foi um texto compacto e muito ousado, elegante e quase genial, uma bem equilibrada e espetacular reflexão sobre o equilíbrio humano e também sobre o mundo dos passos em falso no vazio do céu de Umbertha.

   A introdução chegou às mãos de Lampher EIvulac, o grande poeta e editor umberthiano, porém não por causa do brilhantismo e da força da prosa de Anatol ou da importância da exposição (que não existia, pois estava em princípio condenada a não ultrapassar os estreitos limites da escola), mas porque casualmente a sobrinha favorita do grande Hvulac aparecia muitas vezes em segundo plano nas fotografias dos duelos de esgrima, e fez chegar o livro ao seu amado tio, que ficou assombrado e vivamente intrigado diante do talento exibido por aquele desconhecido e modesto professor de educação física que assinava a equilibrística introdução.

Aqui, atrás destas linhas, se esconde um autor — sinalizou Hvulac quando terminou de ler a introdução. Disse isso com certo fanatismo e plenamente convencido de que seu olfato jamais havia falhado, seu tremendo olfato literário.

   E pouco depois — para que o ouvissem todos os hvulaquianos que o rodeavam naquele momento — repetiu-o gritando, cada vez mais fanático pelas linhas que havia lido e também por seu próprio faro.

Aqui há um autor!

   Pouco depois, todos seus seguidores estavam de acordo que atrás daquelas frases sobre o equilíbrio e a vara tinha de haver escondidas entre as prateleiras de um escritório páginas secretas e deliciosamente estrangeiras. Hvulac precisava descobrir, pois sabia que mereceriam ser editadas em sua bela coleção de prosas umberthianas.

   Podemos imaginar o estado de ânimo de Anatol, que em vão invocou sua condição de estrangeiro para que se desinteressassem dele, em vão, pois o círculo de Hvulac considerava que quarenta anos na ilha o haviam convertido em um verdadeiro umberthiano.

  De nada serviu que Anatol se defendesse, que negasse a existência de outros escritos. Tudo foi inútil. Assediado tenazmente pelo círculo de hvulaquianos, acabou confessando que, como era aficionado pela literatura, em certa ocasião tinha se atrevido a traduzir por sua conta Infância em Berlim, de Walter Benjamin, e ofereceu como fachada, para que não indagassem mais sobre seus possíveis trabalhos literários, sua versão do livro para o umberthiano, que assim começava: “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”.

— Publicaremos essa tradução — disseram em coro todos os hvulaquianos.

   Curioso dilema! (raciocinava Anatol naquela mesma noite, em companhia de sua mulher Yhma). “Há em mim dois estímulos de uma mesma ambição honesta, do mesmo desejo de mover as coisas, mas pudicamente, para poder dizer a eles que na verdade utilizei a tradução somente como fachada para não descobrirem que tenho escritos sete romances terríveis sobre esta maldita ilha de Umbertha. Por um lado, a íntima sensação de que no fundo morro de vontade de que me leiam. Mas por outro, e ainda mais forte, o pressentimento de que um eventual destino de escritor possa conter não sei que sementes de uma sinistra aventura. E além desse dilema, a impressão ou talvez a certeza de que na clandestinidade minha obra amadureceu mais e melhor do que se houvesse me apressado a publicá-la; e também a impressão ou ainda a certeza de que estou chegando à última etapa de uma viagem na qual fui aprendendo lentamente o difícil exercício de saber se perder no emaranhado mundo do impresso.”

   Nunca deixou que eu lesse seus papéis (disse Yhma), e por isso sempre vivi sem saber sobre o que você realmente escrevia. Mas devo dizer que sempre, está me ouvindo?, sempre me perguntei qual deve ser a história que se esconde sob todas as histórias que contou em seus romances.
E triste (disse Anatol desviando-se da questão) mas cada vez se glorifica menos a arte e mais o artista; cada vez se prefere mais o artista à obra. E triste, acredite em mim.
Mas não respondeu à minha pergunta (insistiu Yhma). Qual é a história que você deve estar repetindo continuamente em seus romances?

   No fundo, muito no fundo (respondeu-lhe então Anatol simulando uma confissão muito íntima e dolorosa), venho repetindo sempre a história de alguém que, disfarçado de forasteiro, jura morar em seu próprio país até que o reconheçam.

   Pois já o reconheceram (disse-lhe a mulher com um sorriso que, para Anatol, pareceu de uma estupidez e grosseria infinitas).

   Vou me arriscar a subir na corda e correr os riscos do equilibrista? Vou me arriscar a permitir a publicação do meu primeiro romance? (perguntava-se Anatol no dia seguinte, enquanto avançava com o manuscrito em direção à editora de Hvulac). Se entregar o romance, nunca mais vou poder recuperá-lo, vai pertencer ao mundo. Devo entregá-lo? Hvulac não sabe que existe. Nada me obriga a oferecê-lo. De repente, o poder das palavras me parece exorbitante; sua responsabilidade, insuportável. Vou me arriscar a subir na corda?

Amigo Anatol — Hvulac lhe diria pouco depois ao receber o manuscrito —, queria que soubesse que minha experiência como autor reconhecido confirma seu pressentimento de tratar-se de uma aventura realmente sinistra. Entre outras coisas, porque o escritor que consegue um nome e o impõe sabe muito bem existirem outros homens que, até aquele momento, são puramente escritores, e precisamente por isso não podem conseguir um nome. Uma aventura realmente sinistra, mas o fato é que não se pode deixar de vivê-la, acredite, não se pode escapar de um destino semelhante.

Mas é que a mim, amigo Hvulac, sempre me horrorizou o sentimento de protagonismo. Sempre amei a discrição, o anonimato em tristeza, a glória sem fama, a grandeza sem brilho, a dignidade sem remuneração, o prestígio próprio. Desde menino o mundo da escrita me parecia precocemente apetecível e proibido, relacionado, em todo caso, com uma infração, com uma prática furtiva. E além disso, amigo Hvulac, nas coisas que escrevo suspeito uma operação de baixa luxúria, uma espécie de interminável e falsificada fofoca sobre mim mesmo. A quem poderia interessar algo semelhante?

Fofoca sobre si mesmo? Por acaso o senhor também é um equilibrista, como seu herói?
Bem que gostaria. Mas nunca me atrevi a ser, porque é um trabalho muito duro. Se você cai, merece a mais convencional das orações fúnebres. E não deve esperar nada além disso, porque o circo é assim, convencional. E seu público é descortês. Durante os movimentos mais perigosos, fecha os olhos. O público fecha os olhos quando você está roçando a morte para deslumbrá-lo! E um trabalho duro que nunca me atrevi a praticar. Tenho fugido sempre do menor risco, e é por isso, talvez, que nunca me decidi a publicar, a correr esse perigo infinito de uma aventura literária que pressentia poder conter não sei que sementes de uma peripécia realmente sinistra. Publicar era e é, para mim, algo assim como arriscar-se a dar um passo em falso no vazio. Se eu algum dia visse publicado meu romance, sofreria esse fato como uma afronta, me sentiria nu e humilhado como se diante de uma comissão médica militar.
E no entanto o senhor não negará, amigo Anatol, que acaba de me entregar seu romance para que o publique. E mais, sabe perfeitamente que vou publicá-lo.

   Em resposta, Anatol abaixou a cabeça, como se estivesse confuso e envergonhado por suas manifestas contradições. Mas na verdade se sentia intimamente satisfeito por ter-se atrevido a dar aquele passo decisivo sobre a corda bamba, sobre o arame circense da literatura.

   Depois, começou a perder-se. Imaginou-se num bosque de pinhos e faias, numa paisagem chuvosa, rodeada de esquilos que zombavam dele. O bosque era tenebroso, e na madeira das árvores havia lendas gravadas em letra impressa. Decidiu que tinha chegado a hora de retirar-se prudentemente, a hora de desaparecer. Despediu-se de Hvulac e voltou à rua, caminhando pensativo sob a chuva de Umbertha. Ficou remoendo a ideia de que seu romance já não podia ser recuperado, pois agora pertencia ao mundo, que saberia, afinal, através de uma voz estrangeira, da mesquinhez e da miséria moral que reinavam na ilha de Umbertha.

   Um sentimento de pânico o acompanhou até o portão de sua casa. Tratava-se, porém, de um pânico fingido, provocado artificialmente pelo próprio Anatol. Dispunha-se a entrar em casa quando de repente golpeou teatralmente a testa e simulou que tinha acabado de lembrar que estava sem fumo. E então, enquanto anoitecia, dirigiu seus passos ao café Asha, ali perto, em cuja antessala (Anatol nunca foi além dessa antessala) havia um luminoso quiosque com um velho cartaz onde se lia: Tabaco e jornais. Essas duas palavras unidas lhe produziam sempre uma imensa sensação de felicidade, porque ler e fumar eram suas duas atividades favoritas, e porque, além disso, aquela inscrição era como um sinal confortável no deserto da cidade, pois indicava que ele estava a dois passos de sua mulher, de seu cachimbo e de seus livros, seu lar.

   Contra seu mais elementar costume, Anatol se perdeu no interior da antessala. Tabaco e jornais em riste, abordou um garçom que lhe pareceu também andar perdido por ali, e perguntou a ele que tipo de segredo ocultavam atrás da porta do fundo do bar, e por que há muito tempo ela permanecia misteriosamente fechada. Anatol, que sabia perfeitamente que pela porta traseira passava diariamente uma verdadeira multidão, escutou com simulado interesse as explicações do garçom:
Por essa porta passa cada dia mais gente do que pela própria Via Vhico... Não vê que leva ao beco da China?
Não me diga — disse Anatol.
Pois, digo — respondeu irritado o garçom, enquanto o convidava a abandonar o local exatamente por aquela porta.

   Anatol saiu de boa vontade para o beco e pôs-se a caminhar como se estivesse perdido. Andando em deliberado zigue-zague sob a luz dos faróis, não fazia mais que treinar como se perder para mais tarde poder perder-se de verdade. E andando daquela forma, chegou finalmente, depois de não poucas vacilações, ao escritório de viagens marítimas que definhava junto à lavanderia chinesa que dava nome ao beco. Ali, um homem que parecia muito impaciente o saudou:
Finalmente! Já era hora, senhor... Faz tempo que deveria ter fechado. Achei que não viesse. Aqui está seu bilhete, e boa sorte... Perdão, não consigo lembrar seu nome, se bem que, se quer saber a verdade, sempre me soou falso.
Senhor Dom Ninguém — Anatol sorriu com imensa felicidade. E depois de deixar seu olhar vagar pelas estranhas pinturas de rebocadores balançando em águas manchadas de óleo que, junto a um calendário exaltando as férias na Europa, decoravam o poeirento escritório, Anatol pagou, saiu assobiando uma habanera e se perdeu na noite.

   Uma hora depois, entrou no bar do porto. Continuava fingindo estar perdido. Sabendo perfeitamente onde estava, perguntou se  ficava longe o cais da Europa. Disseram-lhe que estava nele. Então pediu um café e duas fichas, primeiro telefonou para Yhma.
Não se preocupe com meu atraso — disse. — Desci para comprar fumo.
Mas como desceu se você não subiu em casa? Às vezes não te entendo, Anatol.
Já vai entender — disse, e desligou.
Depois, ligou para Hvulac.
Inimigo Anatol — disse Hvulac, meio brincando, mas também bastante sério —, o senhor é um verdadeiro animal, permi- ta-me que lhe fale assim. Estou lendo seu romance, e nos deixa muito mal. Mas o que o senhor tem contra nós? A verdade é que nunca imaginei que o senhor fosse tão estrangeiro...

   Houve uma longa pausa, na qual talvez Hvulac estivesse esperando alguma justificativa séria por parte de Anatol, mas este permaneceu em rigoroso silêncio.
Mas enfim — prosseguiu Hvulac — não dá para negar que se trata de um texto valioso, e nós somos mais liberais do que o senhor acredita, portanto o publicaremos. E mais, o senhor tem que assinar um contrato de exclusividade comigo, quero me assegurar dos direitos de seus próximos livros. Esqueça a pensão com a qual achava que viveria depois de sua aposentadoria, e alegre essa cara, homem, assine o contrato de sua vida, e decida-se a ser feliz entre nós.

   Por um momento, foi como se Anatol tivesse previsto há muito tempo que Hvulac lhe falaria dessa forma, porque respondeu num tom muito cerimonioso, como se recitasse um papel aprendido de antemão:
Vai encontrar a porta de minha casa aberta, amigo Hvulac, minha mulher a abrirá com grande prazer; vai encontrar todos  os cômodos iluminados, e em um deles, no que até o dia de hoje foi meu escritório, vai encontrar a chave que abre o baú no qual descansa o resto de minha obra secreta. O baú é seu. A ilha é bela. Em minha escrivaninha, vai encontrar um documento que atesta que o baú é seu e da ilha inteira.

   Fez uma breve pausa, enquanto contemplava através da janela a fileira de palmeiras e de bancos de pedra do cais da Europa. E logo acrescentou, murmurando entre dentes e com voz muito baixa e quase imperceptível:
E que lhes sejam leves, porque lhes deixo seis verdadeiras bombas-relógio.
O que disse? Ainda está aí, Anatol?
Sim, mas por pouco tempo. Porque o autor vai embora. Deixo-lhes o baú, a única coisa que interessa.

   Anatol desligou o telefone. Pensou: a obrigação do autor é desaparecer. Tomou sem pressa o café, observou que tinha parado de chover, e pouco depois se perdeu na escuridão do cais da Europa. Pensou: há pessoas que sempre ficam bem em outro lugar.

   Ao meio-dia do dia seguinte, em alto-mar, o sol esquentava com cada vez mais violência, o alcatrão derretido escorria pelas paredes, o mar era azul, e a água usada para lavar a ponte evaporava rapidamente em direção ao céu também azul. O capitão apareceu sobre o passadiço, molhou um dedo, e comentou que já o imaginava, que a brisa estava descendente e que muito em breve o vento poderia mudar de direção. Anatol, ouvindo-o, blasfemou em uma longa e obscena frase contendo cinco agás, que ele pronunciou tão exageradamente aspirados quanto pôde, e depois sorriu. O capitão repetiu sobre a direção do vento, e Anatol então desceu, sem pressa, pela escada que conduzia à única zona refrigerada do barco, e ali se perdeu.

(In Suicídios Exemplares, São Paulo: MediaFashion [Coleção Folha. Literatura Ibero-Americana, v. 6], 2012, pp.71-84]



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Cristina Campo

DOBRANDO O TEMPO,
DOBRANDO UMA ESQUINA

What sorrow 
beside your sadness 
and what beauty
W.C. Williams

Demasiadas coisas receberam tuas pálpebras
a atenção consumiu-te as pestanas.
Demasiados caminhos te repetiram,
apertada, perseguida.

A cidade dos séculos te devora
para ti entrevê, sonho e destruição
de luzes e chuvas, lágrimas já senis
sobre a rapariga que passa
febril, indomável, dobrando o tempo, dobrando uma esquina.

Regressa! Gritam os velhos de Nossa Senhora do Pranto,
a ronda da piscina de Siloé
com os cães, os híbridos, os espectros
que não se conhecem mas que tu sabes
enraizados contigo
na glute azul do asfalto
e crentes em tua flor que arde, branca —

porque todos vivemos de estrelas extintas.

[O Passo do Adeus, Tradução José Tolentino Mendonça, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 59]. 


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Paul Auster

Noite, como que um gosto
por dentro. E de nós, cada mentira
que a língua saberia
quando se recolhe e afunda
em seu veneno.
Dormiríamos, lado a lado
com tal fome, e neste fruto,
nossa luta, viraríamos o nome
do que nomeamos. Como se um crime, sonhado
por nós, pudesse maturar a frio — e derrubar
as negras árvores, espinhos, 
que drenam a história dos astros.

[Todos os poemas, Tradução e prefácio de Caetano W. Galindo, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p.71].


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Miodrag Pávlovitch


EPITÁFIO DO BARDO ESLAVO

Nesta minha nova religião
chamaram-me de renegado e inimigo
por causa de nossas antigas cantigas

Para evitar a ira da igreja
arrancaram as velhas canções feito raízes
deitaram ódio contra mim

Afundei na miséria
enterrado nas trevas
sonham-me feiticeiro
mas não me ergui da tumba ainda

Quando agora me despertam não levanto
será o juízo final ou o que mais —
e meus ouvidos rotos gritam:
Ressuscita infiel recolhe o teu corpo
onde encontrar o meu corpo indago
Neste rumor que me arrebenta o crânio
é fácil rememorar o corpo

Anjos — guardem as trombetas
soldados celestes
não pisem minha cova com esporas

Ficarei onde estou
na terra de minha língua
não quero ser julgado em seus concílios
não quero ser atirado sobre a fria lápide da eternidade
não quero ser lançado contra o céu claro

Outros que feneçam
basta-me a minha fossa
a terra parece feita de lã
e a canção fertiliza os ossos em segredo.

[Miodrag Pávlovitch, Poetas do Mundo, Bosque da Maldição, Seleção, introdução e traduçãoAleksandar Jovanovic, Brasília: Editora UNB, 2003, p. 42-45]




domingo, 15 de fevereiro de 2015

Enrique Vila-Matas

EXCERTOS DE "DOUTOR PASAVENTO"

Depois de tudo, se hoje tenho alguma certeza, é a de que há uma grande injustiça no trabalho artístico. Escreve-se com a angústia de se ver desonrado por uma obra fracassada. O fracasso de uma obra supõe uma grande vergonha pessoal, porque o sujeito não pôde demonstrar nem sua inteligência nem seu talento. Ainda por cima o sujeito fica como um vulgar ambicioso, um arrivista de meia-tigela. A angústia domina, portanto, a realização da obra artística, mas o pior não é isso, o pior não é quando vem o fracasso, mas sim quando a obra resulta mais ou menos bem-sucedida e consegue aplausos e, mesmo assim, não se obtém de tudo isso nem sequer uma satisfação íntima. E que, na verdade, não há nada ali no reconhecimento, nada. Uma obra de sucesso vive sua própria vida, existe em alguma parte, à margem, e pouco pode fazer pela vida de seu autor. Ainda por cima, o cúmulo é que, de repente, sufocam o autor com felicitações superficiais, aplausos de uma honra duvidosa, grandes tapas nas costas, pedidos ridículos de autógrafos, cartas tétricas de amor, convites para amarrar uma corda no pescoço em qualquer prêmio nacional.

***

Envelhecer talvez tenha sua graça, mas também é certo que envelhecer serve para comprovar que mudamos e que o tempo caminhou conosco, serve para comprovar que avançamos por dunas movediças que na aparência nos conduziram ao término de um trajeto e nos situaram na ponta avançada de um deserto onde, ao voltar a vista para trás (...) só podemos ver um velho caminho no qual o Tempo escreveu o fim abrupto de nosso mundo, do mundo. Sabemos que é o fim do mundo, se avançarmos. Sabemos que, se dermos um passo adiante, desapareceremos. E planejamos dá-lo, pois pensamos que é o melhor, recordamos que outros já deram esse passo antes, e esses outros foram sempre nossos exploradores favoritos, os que tanto admirávamos quando os víamos desvanecer-se nas tenazes sombras do vazio.

***

“Até quando durou sua juventude, doutor Pasavento?”, me perguntou Morante à queima-roupa, no dia de Natal, assim que me viu aparecer na residência. Parecia que tinha passado toda a noite da véspera preparando aquela pergunta. Eu ia responder alguma coisa quando ele mudou a pergunta, ainda que só muito ligeiramente: “Até quando durou sua juventude, doutor Fausto?”. E riu. Era, dessa vez, o riso de um louco.

[VILA-MATAS, Enrique, In Doutor Pasavento, Tradução José Geraldo Couto, São Paulo: Cosac Naify, 2009].




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Hébe Kouya Skandalakis

CÍCLICO
Pergunto à água — o que sou?
Água que entra pela terra e some.

Pergunto ao chão — o que sou?
Chão que esconde os ossos já desfeitos.

Pergunto ao vento — o que sou?
Vento, voz a lutar inutilmente
contra o silêncio e a neve.

Pergunto à luz — o que sou?
Luz que me devora e não se apaga.

Pergunto ao céu — o que sou?
Céu, refrigério da minha punição.
[De A barreira do silêncio]

JOANA D’ARC
Vinde, pois, chamas purificadoras
queimar, com a minha carne, as cadeias
que me prendem. Suportarei o martírio até
a fogueira tornar-se refrigério
e o terror meu êxtase.
[De Novos poemas]

SATYRICON
Perguntaram à baleia
se queria morrer
para transformar-se numa lépida
criatura do ar.
Ela respondeu: “Jamais!”
Queria mesmo era ficar para sempre
na segurança do seu líquido elemento,
uma baleia apenas, nada mais.
“Uma baleia por toda a eternidade! — exclamou alguém.
— Mas isso é monstruoso.
Se ao menos fosse, como eu,
um hipopótamo!”
[Idem]

[In PAES, José Paulo (seleção e tradução). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 251].

Hébe Koúyia Skandaláki, cujo nome literário era Melissânthi, nasceu em Atenas em 1910, onde fez os seus estudos. Passou algum tempo num sanatório da Suíça tratando-se de tuberculose, e de volta a Atenas dedicou-se ao magistério e ao jornalismo. Além da poesia, cultivou a música e a pintura. Traduziu para o grego poetas americanos (Robert Frost, Emily Dickinson) e franceses (Verlaine, Pierre Garnier). O seu livro de estreia, Vozes de Inseto [Fonés Entornou], é de 1930. A ele se seguiram, nos anos subsequentes, dez outros, entre os quais O Retorno do Pródigo [Gyrismós toü Asótou, 1936], Forma Humana [Anthrópino Sxíma, 1961], A Barreira do Silêncio [Tò Fragma tís Siopís, 1965] e Novos Poemas [Néa Poiímata, 1974]. Alguns desses livros — mais tarde reunidos todos em Os Poemas de Melissânthi [Tà Poiímata tís Melissánthis, 1975] — foram distinguidos com prêmios literários, inclusive O Irmãozinho [O Mikrós Adelfós, 1960], uma peça de teatro para crianças. Morreu em 1990. 



segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Maurício Ferreira

POTLATCH

Onde o espírito se satisfaz,
mede-se a grandeza de sua perda
HEGEL

Do que perdi, nada tinha.
Lenha de cansaço na fogueira das feras,
meu rosto do canário e a noite esperando a música chegar.

Isso tudo caiu do meu bolso ao dobrar a esquina.

Meus ouvidos doem: uma gravidade solar
vergou a espinha do mundo e já não existem mais
retas, nem rios, nem gotas d’águas perdidas
nos pontos de fuga.
Um homem repousa a cabeça em fluxos de ciclone.

Há que se encontrar um gesto que faça calar
o silêncio das árvores.
Entre seivas, frestas de cascas e o derramar de folhas,
descansam cigarras e mais nada se ouve
nos azuis de maio.

Não vejo a luz.
Por trás das sombras, esperança de cores.
Meu espírito brincando de passa-anel enquanto dormia.
Oceano batendo no quintal
e cumplicidade com o infinito
no café da manhã. 
Durmamos.
Os predadores foram devorados em fogueiras d’águas
aprisionadas.
Durmamos.
Os ossos das feras nos guardam em negros olhos
esbugalhados.

E não, não foram os gigantes.
Uma mão humana cravou o tempo nas entranhas das terras.
Posso assobiar horas nas linhas de eucalipto
mas é inútil vergar galhos quando o vento embala raízes.

Não reconhecer cicatrizes, não salivar feridas,
espreitar a dor. Trapacear.
Desfalecimento do espírito.

[In Inquietação-Guia 15 poetas em torno da Azougue, organização Sérgio Cohn, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2009, pp. 141-142]

domingo, 8 de fevereiro de 2015

T. S. Eliot

O ENTERRO DOS MORTOS

Abril é o mês mais cruel, gera
Lilases da terra morta, mistura
A memória e o desejo, agita
Raízes dormentes com chuva da Primavera.
O Inverno aconchegou-nos, cobriu
A terra com o esquecimento da neve, alimentou
Uma pequena vida com bolbos ressequidos.
O Verao apanhou-nos de surpresa, veio por sobre o Stambergersee
Com um aguaceiro súbito; parámos na colunata,
E seguimos, já com sol, para o Hofgarten,
E tomámos café e ficámos uma hora a conversar.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
E quando éramos pequenos, e ficámos em casa do meu primo,
O arquiduque, ele levou-me a andar de trenó
E eu apanhei um susto. Disse, Marie,
Marie, segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas montanhas, aí sim sentimo-nos livres.
Leio, quase toda a noite, e vou para o sul no Inverno.

Que raízes se prendem, que ramos crescem
Neste entulho pedregoso? Filho do homem,
Não consegues dizer, nem adivinhar, pois conheces apenas
Um montão de imagens quebradas, onde bate o sol,
E a árvore morta não dá qualquer abrigo, nem o grilo alívio,
Nem a pedra seca qualquer ruído de água. Apenas
Há sombra debaixo desta rocha vermelha
(Anda, vem para a sombra desta rocha vermelha),
E vou mostrar-te uma coisa ao mesmo tempo diferente
Da tua sombra quando ao amanhecer te segue
E da tua sombra quando ao entardecer te enfrenta;
Vou mostrar-te o medo num punhado de poeira.

[In A terra devastada, tradução de Gualter Cunha]



sábado, 7 de fevereiro de 2015

Boris Vian

SE OS POETAS FOSSEM MENOS BESTAS
Se os poetas fossem menos bestas
E se fossem menos preguiçosos
Fariam todo o mundo feliz
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Levantariam casas douradas
Cercadas por enormes jardins
E árvores cheias de colibris
De rustiflautas e de aqualises
De pardongros e de luziverdes
De plumuchas e de picapratos
E de pequenos corvos vermelhos
Que soubessem tirar nossa sorte
Haveria grandes chafarizes
Jorrando luzes de zil matizes
Não faltariam duzentos peixes
Do crocantusco ao empedraqueixo
Do trilibelo ao falamumula
Da suazmina ao rara quirila
E do guardavela ao canifeixe
Provaríamos de um ar fresquíssimo
Perfumado pelo odor das folhas
Comeríamos quando quiséssemos
E trabalharíamos sem pressa
A arquitetar escadarias
De formas nunca dantes sonhadas
Com tábuas raiadas de lilás
Lisas como só ela sob os dedos
Mas os poetas são muito bestas
Para começar, eles escrevem
Ao invés de pôr a mão na massa
Isso lhes traz profundos remorsos
Que levam consigo até a morte
Radiantes por sofrerem tanto
O mundo os aclama com requinte
E os esquece no dia seguinte
Se a preguiça não fosse mania
Teriam fama por mais um dia.

QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um troço solitário
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de moringa
Em forma de sapato velho
Em forma de tiroliroliro
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra coberta de seixos
De cabeleireiro selvagem ou de edredom louco
Quero uma vida em forma de você
E a tenho, mas ainda não é o bastante
Nunca estou contente.

ELES QUEBRAM O MUNDO
Eles quebram o mundo
Em pedacinhos
Eles quebram o mundo
A marteladas
Para mim não faz diferença
Não faz diferença alguma
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Basta que eu ame
Uma pena azul
Uma trilha de areia
Uma ave assustada
Basta que eu ame
Um ramo frágil de erva
Uma gota de orvalho
Um grilo do campo
Eles podem quebrar o mundo
Em pedacinhos
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Terei sempre um pouco de ar
Um filete de vida
Uma nesga de luz no olhar
E o vento nas urtigas
E mesmo se, mesmo
se me prenderem
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Basta que eu ame
Esta pedra corroída
Estes ganchos de ferro
Onde um pouco de sangue se demora
Eu amo, eu amo
A madeira gasta da minha cama
O estrado e o colchão de palha
A poeira do sol
Amo o postigo que se abre
Os homens que entraram
Que avançam, que me levam
A reencontrar a vida do mundo
A reencontrar a cor
Amo este par de altas traves
Esta lâmina triangular
Estes senhores vestidos de preto
É minha festa e me orgulho
Eu amo, eu amo
Este cesto cheio de farelo
Onde vou pousar a cabeça
Oh, eu amo deveras
Basta que eu ame
Um raminho de erva azul
Uma gota de orvalho
Um amor de ave assustada
Eles quebram o mundo
Com seus maciços martelos
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito, meu coração.

(In Poemas e Canções, seleção e tradução Ruy Proença, São Paulo: Nankin, 2001)

SOBRE BORIS VIAN 

Por Vladimir Kush

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Danilo Alves

POETRY MUST DIE
(Um brinde no banquete das musas)

minha mãe me aconselhou
a não ler mais poesia
alegando que “às vezes a poesia
parece com a vida da gente”
achei um dos melhores conselhos
que um filho pode receber
mas infelizmente
eu me encontro num estágio
em que parecer não é suficiente
minha vida
precisa ser
o poema

(Fonte: Suplemento Literário de Minas Gerais,  Belo Horizonte,  edição 1.356, setembro/outubro 2014)























Sobre o poeta: Tem 20 anos, designer, nasceu em Poções (BA). e vive desde criança em São Paulo. Este é seu primeiro poema publicado. 

Manuel António Pina

TANTA TERRA
Tanta terra,
tantas palavras sob tantas palavras.
Regressa como um corpo o coração
à apenas existência,

lembrança de
alguma coisa lida:
o rosto da mãe, a trepadeira do jardim.
Mãe, afastei-me de mais, perdi-me

no meio de palavras minhas e palavras alheias,
quem, se eu gritar, me ouvirá entre as legiões dos anjos?
E nem isto me pertence,

a tua ausência e o meu medo;
nem estou na minha ausência,
fui como um vaso e quebrei-me ou qualquer coisa assim.

[In Nenhuma palavra e nenhuma lembrança,  In Todas as Palavras Poesia reunida, 3a. ed, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 235]. 


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Odysséas Elýtis

O TEMPO É A SOMBRA CÉLERE DOS PÁSSAROS
O tempo é a sombra célere dos pássaros
Meus olhos escancarados em meio às suas imagens

Por sobre o verde ditoso das folhas
As borboletas vivem grandes peripécias

Entrementes a inocência
Despe sua última mentira

Doce doce peripécia
A Vida.

MARINHA DAS ROCHAS
Tens um gosto de tormenta nos lábios — Mas por onde
andaste
O dia todo em duro devaneio a pedra e mar
Um vento portador de águias descalvou as colinas
Raspou até o osso teu desejo
E as meninas dos teus olhos tomaram o bastão à Quimera
Pautando com espumas a memória!
Onde a ladeira familiar de um breve setembro 
De rubra terra em que a brincar olhavas lá embaixo
Os densos ramalhetes de outras moças
As quinas onde os teus amigos depunham braçadas de
abrótano.
— Mas por onde andaste
A noite toda em duro devaneio a pedra e mar
Eu te dizia que contasses dentro da água despida seus
dias luminosos
Que de costas gozasses a alvorada das coisas
Ou que voltasses a correr campos de jalde
Com uma luz trifoliada em teu peito de iâmbica heroína.
Tens um gosto de tormenta nos lábios
E uma veste vermelha como sangue
Bem fundo no ouro do verão
E aroma de jacintos — Mas por onde andaste

Ao desceres às praias às baías com seu chão de calhaus
Havia ali algas marinhas frias e salinas
Porém mais fundo ainda um sentimento humano que
sangrava
E com surpresa abriste os braços dizendo o nome teu
Enquanto ascendias ligeira até a limpidez do fundo
Onde brilhava a tua estrela do mar.

Ouve, a palavra é a prudência dos últimos
E o tempo frenético escultor dos homens
E alto paira o sol fero da esperança
E tu mais perto dele estreitas um amor
Que tem nos lábios um gosto amargo de tormenta.

Não há por que contares, azul até o osso, com outro verão
Com os rios mudarem de curso 
E levar-te à mãe deles
Para que possas outra vez beijar as cerejeiras
Ou cavalgar o vento noroeste

De pé nas rochas sem amanhã nem ontem
Sobre o perigo das rochas cabelos na tormenta
Irás dizer adeus ao teu enigma.

JÁ NÃO CONHEÇO A NOITE
Já não conheço a noite, terrível anonimato da morte
No porto de minha alma ancora uma frota de astros.
Estrela da tarde, sentinela a refulgir na brisa
Celeste de uma ilha que me sonha
A proclamar de seus altos rochedos a alvorada
Meus dois olhos num abraço te acolhem com ó astro
Do meu vero coração: Já não conheço a noite.

Já não conheço os nomes de um mundo que me nega
Leio as conchas, as folhas, os astros com clareza
Meu ódio é supérfluo nos caminhos do céu
A menos seja o sonho vendo-me cruzar de novo
com lágrimas o mar da imortalidade
Estrela do mar, sob o arco dourado de teus fogos
Já não conheço a noite que é só noite.

[In Poesia Moderna da Grécia, Seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1986. pp. 253-255]

SOBRE ODYSSÉAS ELÝTIS





quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Bartolomeu Campos de Queirós

EXCERTO DE "VERMELHO AMARGO"

Ah! Só meu amor me sabia! Se por descuido passei a amar, em cada instante ele se fazia mais indispensável. Meu coração escolheu e agora minha carne exigia sua presença. Ah! Como o corpo exige! Se o medo me invadia, se vago o horizonte, se fria a aragem, meu amor era minha moeda. Sob os juros do amor eu me enriquecia.

A mãe nos contava sobre nossos bens: uma casa com um quintal, uma horta sob mangueira, um pé de jabuticabas — que nos espiava com muitos olhos pretos. No mais, um regador para dar de beber às plantas. Nas tardes, quando o tempo se faz humano por parecer duvidar, minha mãe, sustentando o regador pela asa, benzia as flores. Exalava um perfume de terra molhada e a alma se fazia definitivamente telúrica. Viver tinha sabor de chão encharcado. Mas isso não leva importância.

A madrasta mantinha especial conversa também com o fogo. O tomate, comia-se cru, frio pelo aço da faca. Ao livrar-se dos pesados cobertores da noite, seus passos duros caminhavam para o fogão. Soprava as cinzas que pairavam sobre as brasas, desfazendo a mentira. Atiçava, e as chamas ressuscitavam, estralando em suspiros. Despertavam vermelhas como a fatia do tomate brilharia dentro dos pratos.

O fundo é frio e a terra úmida. A aragem não sopra no lá embaixo. No fundo, o peso da terra é definitivo véu. Não há carga que o corpo morto não suporte. Não há alma lá no fundo. A luz não desfaz o breu que arde no bem profundo. No bem fundo, não há palavra capaz de soar. Mas o silêncio não existe no fundo. O nada interrompe tudo. A mãe dorme no muito fundo.

Seu adeus me deu, como sina, ler o além das letras. Aprendi, com sua ausência, a decifrar o depois dos olhares, se de afagos ou de repulsa. Li os segredos das mãos, se abençoando ou repudiando. Decifrei a censura se manifestando na linha dos lábios, amargos ou doces. Lendo adaptei-me a corresponder ao projeto do outro sobre mim. Desviando-me de mim. e, ingênuo, desconhecia a impossibilidade de novamente viver o dia de ontem. Sua partida me legou, como herança, a habilidade de explorar meu tesouro em seu vazio.

(In Vermelho Amargo, São Paulo: CosacNaify, 2011, pp. 21-23)

SOBRE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS




terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Fernando Sernadas

Poema Crônico
Qualquer palavra serve para abrir o poema
Como rabo de lagartixa remexendo além da morte
Ou jorro de sangue antes da pedrada
O poema já esta escrito
Uma ferida irreconciliável com o mundo
Como quem e esmagado em forma de papel
E não sabe sequer que morre
Por ser ao fio das asas que o vento renasce
E nas arestas das pedras que a chuva perdura
O poema não cicatriza o caule que adorna a festa
Nem a oração da alma onde o corpo ferve
Cuidado com o poema
Depois de aberto não há como
31/1/2015

Poemeio
A linha que corta pelo centro do ser
Não é onde o corpo acaba e a morte começa
A Terra roda pela luz para que a noite se faça
Uma dialética da indiferença e de costas viradas
E ninguém sabe o que pode um corpo
Pensava Espinosa para lá dos limites desse corpo
Pois só a dor limita o corpo
Só a dor o encama e lhe tolhe os ramos
Pega-se numa pedra e a lagoa escuta
O coração das pedras e o crescimento do mundo
Enquanto o corpo cresce para dentro
E as árvores penteiam o vento
E com isto adormece o poema
2/2/2015

by Leonidafremov

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Ana Luísa Amaral

PASSOS DE VELUDO (título póstumo)

Do not go gently into that good night
Dylan Thomas
Não permitas que a noite se desabe,
habituada e negra. Antes confunde
as regras e as sombras que lhe obedecem,
cegas. Não descanses olhar sobre
o vazio, nem no silêncio seduzindo
em nada. Aqui: címbalo, pífaro, assobio,
ou tampas de barulho avesso a almofada.
Grita, blasfema, geme em timbre agudo,
mas não deixes a lua, com passos de veludo
entrar pela ombreira, sentar-se e conversar.
Nem lhe ofereças um lar de cabeceira
e penumbra doente. Argumenta-a de frente
e à seda roçagante dos seus passos;
numa filosofia de algibeira,
resiste-lhe o abraço cultivado. E rasga
a sua máscara ausente de suor. Não entres
docemente nessa noite. Não entres
tão depressa.

[In Inversos poesia 1990-2010, Lisboa: Dom Quixote, 2010, p. 209]


Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...