terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Mariana Ianelli

O DIA FINAL
É véspera da passagem
do ano velho
e como os primos distantes
que se reconhecem
só nos dias de ceia
(mas calorosamente)
aqueles deveres vitais
de resolver as falhas
no amor e na moral,
por inteiro, reaparecem
(calorosamente)
prometendo a solução
que não há.
E como o peru grávido
de passas e de bom cheiro,
o peru da ceia
a que vão os primos,
chegam os projetos de hoje,
estelares,
na poesia, no suicídio,
e são tantos
que estão fora de pauta
em bombardeio
na mira da página branca
- é um salto ágil
para cima do muro
para as telhas de casa
para um rabo de nuvem
para os confins do céu
para além do mundo.
Esse ano terminando,
incandescemos:
como a chama de um dia
que treme até à tarde
e pousa rápida, grafite.

[In Trajetória de Antes (1999), pp. 73-74]




Margaret Atwood

DAGUERREÓTIPO EM IDADE ANTIGA
Sei das mudanças, sim
Sei que mudei

A quem pertence este rosto inexpressivo
Tristonho e largo, redondo
Suspenso no papel
como se avistado num telescópio

uma lua granulosa

Levanto-me da cadeira
Repudio a gravidade
Viro-me
e saio para o jardim

Revolvo os vegetais
A minha cabeça pesada
A reflectir o sol
Sombras nas cavadas ravinas
Abertas nas minhas faces, nas
Duas crateras dos meus olhos

Entre os caminhos
Traço a minha órbita
As macieiras brancas
Brancas estrelas
Revolteando em meu redor

A ser devorada
Pela luz.

Tradução: HelenaVasconcelos



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Dora Ferreira da Silva

ÚLTIMO DIA DE UM ANO QUALQUER
Eis a chuva do último dia.
Levados são todos os outros
neste ar de chuva,
mais que o sol, dissipador de imagens.
Mas quem é que tange as cordas de um instrumento
delicadamente desafinado,
sobressaltando objetos sobre a mesa
e a madeira polida?
Há uma nota imprevista: leve pisar de outrora.

A chuva cessa. O ano findou
com seu vestido sóbrio, quase elegante.

[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Ed. Topbooks, 1999, pp. 264-265]



domingo, 29 de dezembro de 2013

António Cabrita

OITO VARIAÇÕES DE UM MELRO SUFI
1
Essa voz que vem de dentro
É a voz do mar.
Ela pergunta-nos: onde está a morte?
Em que naufrágio se perdeu?
Em que banco de coral se dissimulou?
Dormem os seus olhos na boca do lúcio,
Ou sob o manto das medusas?
Onde está a morte, tão mínima
Que temos de a procurar no miolo das praias?
Reboam as ondas sobre os seixos
E, ouvidos os canários, perguntam-lhes:
Onde está a morte?
Essa voz que vem de dentro,
Que nos exalta e recoloca
No êxtase, como dentro de um vaso,
É a voz do mar.

2 
Quando vejo alguém encantado com o abajur
Percebo que cegou à luz,
Que um reposteiro se interpôs
Entre ele e o mar.

Eu felizmente tenho os teus ombros
Que não me deixam esquecer
Tenho a minha boca que os declina
Em colinas de jade.

Basta mordê-las e a luz jorra
Criva-se nos meus olhos,
Espasmódica, láctea: reflui.

3
Como pode haver uma ponte sem duas margens?
Olhou-a dentro, descontaminando
A fractura dos seus olhos?
Os mistérios são verdes, como o electrão,
Como a tua carne no duche.
O que permanece intocado
Cabe dentro das Suas mãos,
Mãos que seguram as tuas.
A saída do ar é Deus
Que te alambaza de vinho.
Sacia-te, antes de recomendar:
O gato comeu o Espírito Santo,
Sorve-lhe tu agora o coração.

4
É muito difícil pôr a cabeça
De lado. A cabeça
Do cravinho
É mais sã. Também à palavra
Às vezes é preciso cosê-la
Ou encapsulá-la no silêncio.

5
Só via tinta preta
Onde havia letras de um viço
Que atapetava o chão de miosótis.
Nesse verão amiúde

Raiou a caligrafia de Deus
Nos olhos da raposa.
Mas estava incréu
Como pão ázimo.

A sua alma ia com a crina
Daquele cavalo
Que refulgiu como um cometa
No incêndio do estábulo.

6
Quando o estilhaço
Abre uma cratera na cabeça
Do soldado que estava ao teu lado,
Ter medo é uma demasia Inútil.

Quando acordas
Deslumbrado pela mão que poisada
No teu peito te desencordoa
O sangue, ter medo
É uma demasia Inútil.
Guarda as moedas
Para as atirares ao mar.

7
Há um náufrago nos teus cabelos,
Arrasta-te para cima.
O que é plausível
É que a cereja na sua boca
Faça de mim um homem diferente.
Há um náufrago na tua aorta,
Arrasta-te para o sol.

8
Nunca o meu coração foi tão verde
E vibra como a prancha da piscina que folgou.
Aflui a mim a paisagem,
Manancial, anelo, no sonho de despertar Contigo.

E sou quase feliz.
Só não sei onde cresce o ruibarbo.
Havia uma mulher que areava a lua,
Um plátano a abarrotar de estorninhos,
O teu medo estreme na ombreira
Da minha solidão. Confia.
Essa voz que vem de dentro É a voz do mar. 








sábado, 28 de dezembro de 2013

Emily Dickinson

Eu passei fome todos esses Anos - 
E enfim cheguei à Mesa
Para almoçar - e eu tremendo - o Vinho
Exótico toquei -

Era isso que eu vira à Mesa quando
Espiava às Janelas
A Riqueza que à míngua eu não ousava
Almejá-la sequer

Um Pão inteiro era tão diferente
Das Migalhas que tive
E que ao Ar Livre os Pássaros vieram
Comigo repartir -

Doía-me a Fartura - era algo novo -
Senti-me mal -  e estranha -
Qual Frutinha da Serra que na Rua
Fosse largada ao chão -

E eu já nem tinha fome - e me dei conta
Que a Fome era só algo
Que se tem do outro lado das Janelas -
E acaba-se ao entrar

[In A branca voz da solidão, tradução de José Lira, São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 299].


Nesis Elisheva





sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ruy Belo

POEMA DE NATAL
É dia de natal a festa da família um deus nasceu
não me sinto sozinho mas estou sozinho
toda a minha família sou só eu
Levo nas algibeiras alguns versos e caminho
quando sinto de súbito o desejo de reler o herculano
a única pessoa que nos livros e na vida hoje me faz falta
única companhia para o meu natal
Entro nas poucas livrarias de peniche
e gasto em livros de herculano o dinheiro que tenho
O herculano entre outras coisas bem sabia distinguir os tempos
sabia o que num tempo é distinto de outro tempo
tinha muitos amigos entre os seus e meus antepassados
e deu sempre à verdade o que os demais costumam dar à vida
Era casmurro abandonou um dia as casas de má nota
deixou o parlamento e a vida literária
e procurou no campo a companhia
de árvores bem mais que os homens verticais
Tinha muito mau génio fulminava com os olhos
franzia a testa e não havia nada que fazer
era teimoso o velho como antero lhe chamava
Penso nele e caminho pelas ruas de peniche
e só vão a meu lado uma má música daquelas
que ferem os ouvidos nestas quadras do natal
e a fotografia num jornal de um elevado dignitário da hierarquia
para quem o mistério do natal não sei bem que mistério ou que natal
encerra o verdadeiro humanismo novo
frase que me provoca comoções
porquanto as aliterações são dos meus pratos favoritos
Vou encerrar-me em casa a sós com herculano
que tanto quanto sei não era humanista
ou que se porventura o era o não sabia
ou não dizia ao menos ser tal coisa como
se duvidássemos que o fosse se é que o era
É dia de natal estou sozinho e penso ler o herculano
que há tanto ano já me não fazia
a falta que me faz precisamente neste dia
em que só me faz falta a sua companhia
Vamos pra minha casa ó herculano
vou fechar as janelas acender a luz
e aguardar contigo o fim do ano
Prefiro-te herculano a músicas e altos dignitários pois
nem talvez tenha já a convicção de quem anualmente
escreve pontual se não contente o seu poema de natal
(Transporte no Tempo)
[In Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 3a. edição, 2009, pp. 474-475]



quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Jorge de Lima

SABEREIS QUE CORRI ATRÁS DA ESTRELA
Sabereis que corri atrás da estrela como um Mago,
tropeçando nas cisternas e nos montes;
e li as inscrições das pedras dos antigos rios;
e consultei os áugures contra a vossa recomendação;
e aprendi a significação do meu sonho
porque os céus se desenrolaram como um livro santo.
Por isso chegai homens e ouvi;
e moças em flor escutai;
e povos atendei;
ouça a terra com todos os seus peixes e suas aves e seus
[luzeiros
e tudo o que ela produz:
quem subiu primeiro para a Arca foi a mulher de Noé
que levou casais de flores e de abelhas, e bordou quarenta dias e quarenta noites o catálogo geral
[da posteridade una;
as filhas da mulher salva das águas
conceberam debaixo dos capinzais do rio; e de raça de Esaú
houve mulheres lindas cabeludas nos seios, nos sexos e nas
[axilas
para que se resguardassem os lugares preferidos pela per-
[petuação;
e por isso a mulher será a última a expirar no último dia
e fechar as longas pestanas dos seus olhos amados;
as escravas egípcias e Sara, Tamar e a mulher de Lot e a
[mulher de Isaac
e a filha de Batuel e a nora de Abimelec e a viúva de Elon
[a de luto recente
nunca ficaram estéreis e pariram gerações como as estrelas
[no céu;
a filha mais nova de Labão era belíssima e Dina filha de
[Jacó
foi violada para perpetuar o exemplo dos violadores;
e aí termina o catálogo geral de Jacó e de Esaú; mas a
[mulher de Noé
que teceu quarenta dias e quarenta noites chuvosos, disse
que Onã é maldito porque se rebelou contra a lei de So-
[doma foi queimada
porque a mulher tinha sido demitida;
e eis que as mulheres escravas sempre ficaram rainhas,
e sempre os cânticos da terra acumulados no mundo de-
[flagraram na boca
dos moços denominados poetas;
e as posteriores gerações conheceram Judite que levou uma
[cabeça decepada
e segurando-a nos cabelos descobriu com a cabeça imolada
os inimigos da espécie imortal;
e do sangue de Judite um Rei assinou poemas da filha de
[Faraó e lhe deu escravas
já fecundadas pelo sangue de Deus;
e as filhas de Deus se queimaram de sol, e para diferir dos
[desertos de
areia ficaram negras para afastar o sol;
e passaram por vontade de Deus a outros mares e a outras
[ilhas
onde depois o Filho do Pai baixou e sagrou a aliança
com os povos amarelos, e com os povos dos gelos, e com os
[povos das montanhas
e com os povos mais distantes onde a Arca boiou.
A mulher de Noé abriu então a portinhola e soltou a flor
[de longo pistilo
e a açucena ainda virgem do ferrão das abelhas;
e a longa ventania de Deus tangeu pólen
desde o monte Sinai ao pomar de Canaã:
e houve jardins no mundo para as musas colherem;
e houve luares na terra para atrair os poetas;
e a geração de Judite aparece em Herodíades para
[inverter a
divina façanha e perpetuar os dois ramos da árvore do
[paraíso.
Então, o Senhor falou às gerações dizendo:
Cortai os ramos da árvore e construí o meu Tabernáculo
e as tábuas da tenda e o pau do altar; mas do lado do vento
protegereis o átrio com a madeira da árvore;
e depois de purificado o Tabernáculo,
aí uniremos as gerações: cada mulher com o oficiante que
[escolher;
então a mulher mais nova dessa geração acampou com o
[amado
nas margens do rio grande, e depois acampou nas margens
[do
grande lago, e depois acampou nas margens do grande mar;
e da banda do aquilão nasceu a geração das mulheres deno-
[minadas sabinas que foram violadas
para perpetuar outra vez a espécie das que são dominadas
[com força;
mas apareceu entre as sabinas um mancebo donzel
que era muito mais débil que elas, mas sabia poemas e
[usava capas belíssimas;
e nasceu da união uma menina franzina de coxas unidas e
[cintura esbelta
como nunca houve na raça humana da terra:
era a guerreira cuja bisneta brigou com os povos da ilha
[e foi queimada como feiticeira;
e porque era feiticeira sagrada,
das cinzas brotou uma santa para perpetuar as gerações
[de Deus;
e as gerações de Deus subiram para o plano divino;
e do plano divino desceram signos que os homens do
[tabernáculo entendem
 para se comunicarem entre si até a consumação dos séculos,
quando a mulher será a última a cerrar os longos cílios
 para abri-los de novo no começo da Vida.

[In Antologia Poética, Rio de Janeiro: Ed. Sabiá, 1969, pp85-88.]


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Maria do Sameiro Barroso

POEMA DE NATAL
Os pensamentos galgam as montanhas, a escuridão
e o silêncio.
Nas mãos, sulcadas de violetas e de pássaros, há navios
e espuma que se afastam,
cavalos, liras e grinaldas que seguem a lua branca
de montanhas e de renas.

No húmus fecundo da terra,
as horas tornam-se antigas, celebrando as mãos,
o inverno, o solstício,
entre harpas marinhas, corolas, cristais, leitos de giestas.
Um cântico de Natal ecoa.

O sangue negro das florestas desdobra a flor do âmbar,
os olhos abertos para a vida resumem o espaço,
possibilidade, respiração,
raiz secreta que se abre ao esplendor dos astros fulvos.
as mãos dando para o Eterno,
o céu e a púrpura espelhando as lareiras e o sol,
no seu fulgor de palavras inexactas, música primordial,
estendida na noite

que se desprende dos seus tálamos de estrelas.

Georges de la Tour


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Henriqueta Lisboa

NATAL
Vejo a estrela que percorre
a noite larga.
Vejo a estrela que perturba
fundos mares.
Vejo a estrela que revela
a eternidade.

Mas para onde foi a estrela
contemplada?
Para onde foi no momento
mais amargo?
Em que cimos ora habita
que debalde
nos olhos guardo constantes
orvalhadas?

Vejo a estrela — tão de súbito!
ao meu lado.
Vejo os olhos do Menino
desejado.

[Henriqueta Lisboa, Obras Completas, Vol. I, Poesia Geral,  Duas Cidades: São Paulo, 1985, p. 270]


Cecília Meireles

PASTORA DESCRIDA
Eu, PASTORA, que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento,

fui falar ao eco antigo,
a cuja voz fui criada,
e que supus meu amigo.

“Sou sempre a de antigamente”,
 murmurei-lhe, enternecida.
E ele anunciou longe: “Mente!”

Mas era a minha verdade
e, vendo-me assim descrida,
padeci com a falsidade.

“Eco amigo, eu não te iludo:
pastora sou destes prados
onde se confunde tudo;

mas sou de ontem e de agora,
dentro dos despedaçados
instantes de nenhuma hora. ..

A amargura não me aumentes..
E o eco antigo, infiel e exato,
repetiu-me perto: “Mentes...”

Vergada em móveis espelhos,
vi nas águas meu retrato,
chorei sobre mim, de joelhos.

Mas o gado que pascia
pelas colinas da aurora,
mascando as margens do dia,

veio a mim sem que o esperasse,
lambeu-me os olhos de outrora,
— reconheceu a minha face.

(Retrato Natural)
In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 362-363).

Heidi Malott





segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Luís Miguel Nava

VIRGÍNIA
Embora o sol fosse alto ainda, àquela
hora já dali desertara, as sombras iam
saindo aos poucos de debaixo dos armários.
De vez em quando as mãos, completamente absortas,
detinham-se no ferro, sobre a tábua, ao lado
do gigo agora esvaziado e dos pesados
tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa.
Tornavam-se mais nítidos, assim, os seus
contornos recortados contra a luz.
Dali podia-se avistar o mundo inteiro.
Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato
corria atrás das pombas, oscilava
ligeiramente a corda, onde a cidade, o céu
e os montes pareciam pendurados.



domingo, 22 de dezembro de 2013

Adélia Prado

O PRESÉPIO
Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai repetir este ano: ‘Nada como um frango com arroz depois da missa.’ Minha irmã chora porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda que quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, é muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da “luz que não fere os olhos” abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos, banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o vinho da alegria, porque deste lugar, onde “o leão come a palha com o boi”, esta certeza me toma: “um menino pequeno nos conduzirá”.

[In Filandras, São Paulo, Record, 2001, pp. 111-112]



           

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Luiza Neto Jorge

O POEMA ENSINA A CAIR
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

[In Poesia (1960-19879), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 140-141]





quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Elizabeth Bishop

SAGACIDADE
“Espere. Vou pensar um minuto.”
E no mesmo minuto vemos
Eva e Newton, maçãs na mão,
Moisés, com a Tábua erguida,
Cofiando a cachola Sócrates
E muitos outros helenos,
Todos acudindo em corrida
À sua testa franzida.
Então você faz um trocadilho brilhante
Rimos e aplaudimos, ruidosas.
Assustados, vão embora os ajudantes.
E no espaço onde vagueiam as conversas ociosas
Surpreendemos — lá atrás, muito distante —
O nascimento radioso de uma estrela petulante.
- Tradução de Carmen L. Oliveira - 

[Fonte: Jornal Rascunho, edição 162, outubro de 2013].


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gérard de Nerval

A LOUISE D'OR... RAINHA
O velho pai tremendo abalava o universo,
Ísis, a mãe, então se ergueu sobre o seu leito,
Fez um gesto de ódio ao esposo contrafeito,
E ao verde olhar surgiu o antigo ardor imerso.

Disse ela: "Ei-lo que dorme, esse velho perverso,
Toda geada do mundo em sua boca achou preito.
Vigiai o seu pé, arriai o olho imperfeito,
Esse é o deus dos vulcões e o rei do inverno adverso!"

"A águia agora passou: Napoleão me impele;
Por ele, eu me vesti com as roupas de Cibele,
É Hermes meu esposo e meu irmão Osíris..."

A deusa já fugira em sua concha dourada;
O mar nos reenviava a sua forma adorada,
E brilhavam os céus por sob o manto de íris!

[In Alexei Bueno, Cinco Séculos de Poesia, Rio de Janeiro, Ed. Record Ltda., 2012, p. 103]






terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Adélia Prado

NEM UM VERSO EM DEZEMBRO
Não quero nunca desejar a morte,
a não ser por santidade,
como a chamou Francisco: ‘irmã’.
É quase 25 e nem um verso.
Movo as pernas sem conter meus quadris,
como deveria ter feito a vida toda,
pra conquistar o mundo.
Borboletinhas pardas, ciscos, seixos, gravetos,
água de sabão escapando do muro, duram ofertados
enquanto percorro o bairro,
a menina me olha do alpendre ladrilhado
e nem um verso.
Eu primo na minha obra porque é tudo que tenho.
Na casa de três cômodos, de terreirinho escorrido,
a vida é ruim, a alma Fica gemendo: ô vida.
Desguio dali uma ideia de suicídio
que paira sobre o telhado junto com a antena do rádio,
mas a ideia volta, e nem um verso.
Preciso me confessar ao homem de Deus:
cometi gula, ansiei pelo detalhe das fraquezas alheias
e mesmo tendo marido explorei meu corpo.
Nem um verso em dezembro, eu que para isso nasci e vim ao
[mundo.
Minha alma quer copular.
Os magos passam de jato,
a estrela se esconde,
chove torrencialmente no Brasil.

In Coração Disparado
[Poesia Reunida, São Paulo: Siciliano, 2001, p. 159]


Encontro de Folias de Reis
Helena Maria Boaretto Paula Vasconcelos

Ana Luísa Amaral

ESPADAS E ALGUNS MURMÚRIOS
As poucas vezes que te permito a entrada são vezes de fascínio e penitência. Abrir-te a porta, a alegria dorida da chegada, no mesmo instante arrepender-me do meu gesto, da minha cordialidade. O resto dessas vezes é quando chega a pergunta inevitável: o porquê de te ter permitido. Afasto-a, se consigo, mas quando não consigo, os ventos que a limitam não são zéfiros. A pergunta forma-se a partir de tornados a tomar-me, e o que me custa mais (mais repetido) é sempre a mesma cara, o mesmo olhar por fora - o ficado por ver: rompido, amachucado, milionésimas partes de mim mesma. As poucas vezes que te permito são vezes frágeis, são vezes de papel.

É todavia nessas alturas que mais me crio um espaço. Deixo-te entrar juntamente com música no corpo e nos ouvidos, olhando sem olhar coisas sem tempo. Milionésimas partes de ti que trago sempre hibernadas, acordo-as nessa altura. Junto-as com um cuidado de ourives, um cuidado de mãe coleccionando memórias. E só depois que posso permitir-te: quando o teu riso inteiro, o corpo inteiro, algum pequeno pormenor de braço ou fala passa a fazer sentido por estar na totalidade. Milionésimas partes reunidas todas na partitura.

[Excerto de Ara, Porto, Sextante Editora, 2013, p. 17].



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Hilda Hilst

Honra-me com teus nadas.
Traduz me passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreiteza e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.

[In Cascos & carícias & outras crônicas, São Paulo, Globo, 2013, pp. 266-267]. 



domingo, 15 de dezembro de 2013

Marina Tsvétaïeva

Nós - as crianças, somos os reis 
do mundo das visões nocturnas.
Caem sobre nós as alongadas sombras 
brilham as lanternas por detrás das janelas,
escurece o tecto do salão, 
os espelhos absorvem o seu rasto... 
Não há tempo a perder! 
Alguém sai do canto.

Debruçamo-nos os dois por cima do piano negro
e o medo chega-se a nós, 
embrulhados num xaile da mamã

nem respiramos, pálidos de terror.
Vamos lá ver o que se passa 
por baixo da cortina das trevas inimigas. 
Os rostos deles fundiram-se no escuro, 
-de novo saímos vencedores!

Somos os elos de uma mágica cadeia
e no fragor da batalha jamais desfalecemos.
Aproxima-se o combate derradeiro,

e com ele há-de perecer o reino das trevas. 
Os adultos inspiram-nos desprezo,
pela rotina adormecida dos seus dias...
Nós sabemos, sabemos muita coisa
do muito que eles não sabem.

[Marina Tsvétaïeva in E Cantou como Canta a Tempestade]


sábado, 14 de dezembro de 2013

Keats

VISITANDO A CRIPTA DE BURNS
A cidade, o cemitério e o sol poente,
As nuvens, as árvores, as curvas colinas semelham,
Embora belas, frias - estranhas - um sonho,
Que há muito sonhei, e à ele retorno.
O breve pálido verão triunfou
Sobre o calafrio do inverno, por uma hora de esplendor;
Cálidas qual safiras, jamais cintilam as estrelas.
Tudo é fria Beleza; e nunca finda a dor.
Pois quem pode apreciar, sábio como Minos,
A Verdadeira beleza, livre do matiz mortal
Que a imaginação e o orgulho doentios
Te abateram? Burns! Com honra
Muito te venerei. Grande alma, oculta
Tua face; peco contra teus céus nativos.

ESCRITO NA CABANA ONDE BURNS NASCEU
Este corpo mortal de mil dias
Abarca agora, Ó Burns, um espaço em teu quarto,
Onde sozinho sonhaste mirando os louros a brotar,
Feliz, sem pensar em teu dia derradeiro!
Meu pulso aquece com tua própria cerveja,
Minha cabeça leve brinda uma grande alma,
Meus olhos divagam sem vislumbrar,
A Imaginação se esvai ébria em seu intento;
Mas consigo bater meus pés sobre teu chão,
Mas posso abrir uma janela para entrever
O prado sobre o qual pisaste e pisaste, -
Mas posso pensar em ti até que cesse o pensamento, -
Mas posso tragar uma caneca de cerveja em teu nome, -
Oh, sorri em meio à treva, pois isto é fama!

[In Nas invisíveis asas da poesia, tradução Alberto Marsicano e John Milton, São Paulo, Iluminuras, 1998, pp. 55-57]. 

Sobre John Keats

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Paul Auster

Ébrio, o branco guarda sua força,
Quando dormes, ébrio de sol, qual semente
Que perde o alento
Sob o solo. Sonhar no cio
Todo o calor
Que infesta o equilíbrio
De uma mão, que germina
O milagre do seco...
Em cada ponto que deixaste
Os lobos enlouquecem
Com as folhas que não falam.
Morrer. Acolher fulvos lobos
Que arranham as portas: uivos
Na folha — ou dormes, e o sol
Jamais verá seu fim.
É verde onde respiram sementes negras.

[Fonte: Todos os poemas, Tradução e prefácio de Caetano W. Galindo, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 43].

Sobre Paul Auster

Jennifer Smith Greene

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Luís Filipe Castro Mendes

DIÁLOGOS DE POETAS
Quando eram os dois estudantes em Oxford disse uma vez Auden a Spender:
«a arte é o que resulta de uma persistente humilhação»;
e ficou deitado no quarto a fumar,
enquanto ouvia os passos envergonhados do outro
a afastar-se pelo corredor fora. A arte
pode durar no sangue, mas nada conta
face aos tumultos, ao insaciável e brutal conhecimento.
Assim ficaremos, sós e divididos,
a respirar no silêncio dos quartos
a perdida invenção da juventude
— até encontrarmos noutros frios corredores
a música voraz do esquecimento.

PAISAGEM SUBURBANA
Pequenas árvores torcidas
sob a chuva; o verde pouco;
e casas onde o céu não tem como findar.

Se esta paisagem fosse só
amor ausente, vidro fosco,
miséria sem halo
(como o real que sobra da canção),
contrafeitos à chuva e transviados
saberíamos perder o coração.

POÉTICA MÍNIMA
Considera o peso de uma alma,
o cheiro a pó-de-arroz
atrás de tanta chama,

a seda amarrotada,
o cetim que não brilha,
a boneca no fundo
da quinquilharia.

Nada pesa no limbo
que há dentro da memória:
considera na alma
o avesso da História.

[In Modos de Música, In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Topbooks, 2001, pp. 289-291]

Sobre Luís Filipe Castro Mendes

Joseph Mallord William Turner

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Jorge Luis Borges

O DESERTO
Antes de adentrarem o deserto 
os soldados beberam longamente da água do poço. 
Hiérocles entornou sobre a terra 
a água de seu cântaro e disse:
“Se havemos de entrar no deserto, 
já estou no deserto.
Se a sede vai me abrasar, 
que me abrase já”.
Esta é uma parábola.
Antes de me abismarem no inferno
os lictores do deus concederam que eu olhasse uma rosa. 
Essa rosa é agora meu tormento 
no obscuro reino.
Um homem foi deixado pela mulher.
Resolveram fingir um último encontro.
O homem disse:
“Se devo entrar na solidão, 
já estou só.
Se a sede vai me abrasar, 
que me abrase já”.
Esta é outra parábola.
Ninguém na terra
tem a coragem de ser aquele homem.

[In Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 349]

Renato Casaro

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Ana Luísa Amaral

O TEMPO DAS ESTRELAS
Um compasso de espera
tão longo e musical
por estrelas destas
a tocar-me o rosto
E aprender a aceitá-las,
e eu ser um céu imenso
onde elas se pudessem passear,
encontrar uma casa,
um pequeno silêncio
de folhas,
de poeiras e cometas
Na desordem mais cósmica
das coisas,
organizar inteiro:
o coração
Porque, a tocar-me o rosto,
o tempo das estrelas
será sempre,
mesmo que tombem astros,
ou outras dimensões se lancem
em vazio,
ou raízes de luz se precipitem
no nada mais atônito
Terá valido tudo
a desordem do sol, terá valido tudo
este lugar incandescente
e azul
Porque, a tocar-me o rosto,
agora,
e em silêncio tão terreno:
paraíso de fogo:
estas estrelas
Transportadas em luz
nas tuas mãos —

[In Imagias, Lisboa, Gótica, 2001]



segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Stéphane Mallarmé

APARIÇÃO
A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
— Era o dia feliz do teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.

Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando, trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde aparecesse rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonhos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.

(Trad. de Guilherme de Almeida)

In Obras Primas da Poesia Universal, São Paulo, Livraria Martins Editora, seleção e notas de Sérgio Millet, 1963, p. 89). 

Marc Chagall


domingo, 8 de dezembro de 2013

Marianne Moore

PROPRIEDADE
é palavra conforme
aquele acorde
que a ave emitiu
e Brahms ouviu,
executado à base da garganta;
é o miúdo pica-pau penugento
que sobe a árvore em espirais —
qual mercúrio, mais e mais;

um canto breve
de pardal que é
no mais pequeno
um grão de feno —
reticência afinada com o rigor
da força na fonte. Propriedade
é o Solfegietto de Bach —
e gaita-de-boca e baixo.

Espinhas em
abetos, em
negro arvoredo
junto ao penedo
à beira-mar batido pelas ondas —
têm-na; e um halo de lua e a firmeza
alegre de Bach, só que em tom
menor. É um entendimento
gato-e-coruja-
aos-dois-lambuja.
Vem, vem. É o dito
dado por dito;
não graciosa desdita. É resistência
humilde, como a da espiga da cauda-
de-raposa. Brahms e Bach, não;
Bach e Brahms. Ter gratidão

antes a Bach
por tudo, bah!
Peço perdão;
pois ambos são
involuntários amores-perfeitos
isentos de auto-exame; enegrecidos
porque assim nasceram.

[In Poemas, seleção João Moura Jr.; tradução e posfácio José Antonio Arantes. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, pp. 125-127].


Barbara Kelley


sábado, 7 de dezembro de 2013

Ingeborg Bachmann

UMA ESPÉCIE DE PERDA

Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

In O tempo aprazado  (Últimos Poemas 1957-1967) tradução de Judite Berkemeier e João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992.




sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Fiama Hasse Pais Brandão

DEZEMBRO 1985
O nevoeiro que atravesso em Dezembro
é um meio de me lançar nas metáforas.
É como ir através dos meus poemas antigos
que têm raros conflitos interiores.

Mas lembro-me nitidamente do terror
de Fedra. Tão abstracto, distante e clássico.

O NADA. SOBRETUDO NA FASE DE EXALTAÇÃO
Os ramos de árvores despidos que nos lembram
o nada. Sobretudo na fase de exaltação
do espírito. Com a cabeça encostada
aos vidros altos.

Simultaneamente procurar o centro
da irradiação. O Sol matinal com os seus hiatos
preenchidos por casas. Ameias onde se
invertem os vértices do horizonte.
Sol magnânimo

fixo sobre as árvores abençoadas sem
folhas. Infinitos pormenores visíveis e
espaços audíveis preenchem a hora exaltada.
Ponto profusamente cheio. Um fino
silêncio exterior

sinal do nada circundante. Graveto
junto de graveto cruzados para além do fim
da perspectiva. Um significado diverso
naquelas ameias em outros planos. O nada
sempre coeso. Uma respiração intangível
e sem sombras.

In Obra Breve Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 465-466.






quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Edna St. Vincent Millay

O AMOR NÃO É TUDO....
O amor não é tudo: não é comida nem bebida
Nem sonho, nem um teto para proteger sua cabeça da chuva;
Não é um mastro flutuante para os homens que se afundam
E boiam  e  afundam, boiam e afundam de novo;
O amor não pode encher de ar o pulmão ferido
Nem limpar o sangue ou colar o osso quebrado;
No entanto, neste momento em que te falo
Muitos homens estão perto da morte apenas por falta de amor.
Poderia ser que num momento difícil,
Presa à dor e implorando para ser libertada
Ou levada por uma necessidade superior à minha vontade,
Eu tivesse que vender teu amor por um pouco de paz,
Ou trocar a memória desta noite por comida.
Poderia ser. Mas acho que não o faria.

[In Rockland, Maine, 1892-Austerlitz, New York, 1950), Collected Poems, HarperCollins, New York, 1981]

Sobre Edna St. Vincent Millay


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Antonio Gamoneda

A MEMÓRIA é mortal. Nalgumas tardes, 
Billie Holyday põe sua rosa enferma em meus ouvidos.
Nalgumas tardes me surpreendo
distante de mim, chorando. 

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UMA paixão fria endurece minhas lágrimas.
Pesam as pedras em meus olhos: alguém
me destrói ou me ama. 

In Esta luz, Poesía Reunida (1947-2004), Barcelona, Círculo de Lectores, S.A./ Galaxia Gutenberg, 2010, pp. 422-423. 



terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Weydson Barros Leal

Divitiae
No princípio era a festa,
depois do fim, o orgulho.

Com o tempo,
com o passar dos anos e dos retratos
de seus novos amores, a distância esqueceu os reflexos
daquelas falsas bandeiras, e seu convés era mais nulo
do que o silêncio do morto,
mais devassável do que sua rouca escultura.

As velhas carências permitiam que a cidade fosse tomada
[por qualquer salteador,
e todos os nomes diziam que suas conquistas
foram ordenações de degredados.
Seu riso era apenas a solidão
que sob os olhos ela não conseguia povoar.

Como a luz que se dissolve na noite, seu orgulho deu lugar
a uma comiseração que também era sua pena,
e tudo, então, foi só a lembrança de uma antiga alegria,
ou algo que já não reflete a beleza que para sempre
será sua inverídica ressurreição.

[In A Quarta Cruz, Rio de Janeiro: Topbooks, 2009, pp. 60-61]

Sobre Weydson Barros Leal

Stephen Chaplin



segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Jorge de Sena

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,e foram sacrificados, torturados,
[espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto
[haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia -
mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruiram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardamos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Lisboa, 25/6/1959

[JORGE DE SENA, in Metamorfoses]

Sobre Jorge de Sena

Copiado de barcosflores.blogspot.com.br
In memoriam Amélia Pais

Os fuzilamentos de 3 de Maio de 1808
(Goya)

domingo, 1 de dezembro de 2013

Antonio Gamoneda

Lancei no abismo o osso da misericórdia; não é necessário quando a dor faz parte da serenidade, mas a lucidez trabalha em mim como um álcool enlouquecido.

Sei que as unhas crescem na morte. Ninguém

desce ao coração. Despojamo-nos de nós mesmos ao 
expulsar a falsidade, desolamo-nos e

ninguém vem. Não

há sombras nem agonia. Bem:

não haja mais que luz. Assim é

a última embriaguez: partes iguais

de vertigem e esquecimento.

[In Oração Fria, Antologia. Sel., trad., introd. e posf. de João Moita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 221].

Ben Nicholson


Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...