quinta-feira, 31 de maio de 2012

Clarice Lispector

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la –, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me mesmo seja de novo a mentira que vivo.

In Clarice Lispector . A Paixão Segundo G.H.

Alexandre O´Neill

A Traição

quando do cavalo de troia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse



Alexandre O'Neill (1924-1986)
Poesias Completas

Adélia Prado

UMA VALSA PARA DANÇAR 
AMÉRICO, EU TE AMO, Américo. Você tem uma loja de tecidos e uma mulher que você vive querendo não enganar, um filho tão bonitinho, Américo, as mãos macias de medir tecido, de apalpar meu pescoço com intenções de quem vai assassinar. Você é um colosso, Améríco, tem tudo pra me agradar. Sua inteligência sem escolas é tão ignorante que eu me arrepio dos seus mundos novos. Dentes afiados, uma saúde enxuta você tem, não vai me pedir um chá. Quando eu te peço um metro de voal, você retruca pra espichar a conversa: "leva também um metro de amorim." Você fala amorim, de sabido ou de bobo, Américo? Antigamente se um homem falasse errado, descartava na hora. Hoje, não. Quero vinho de todos os barris. Você é pai extremoso, exemplar marido caseiro. Tens um livro, não tens? Uma coleção de marcas de cigarro e o retrato de sua mãe. Você fecha a loja aos domingos e feriados, incrível Américo, você não quer ficar rico, como te resistir? Sua mulher me pede açúcar emprestado, eu peço a ela é licença pra ver o álbum de retratos: você segurando seu filho, você pondo comida nra passarinho, brincando com o cachorro. Se você ficar quieto e parar de me espreitar desse modo invisível, eu pinto você, seus olhos bonitos de homem, mais que os de uma mulher, bonitos. Você é meu amor delicado, por você faço doce de leite, corto em pequenos losangos, ponho minha blusa bordada e fico no banco da praça te esperando no seu caminho, quando "cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor", pra te entregar o coração.
Você passa e eu digo: boa tarde, Américo.

In Solte os Cachorros,  Rio de Janeiro, Nova Fronteira,  1979, p. 101-102


Manoel de Barros


A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Tratado geral das grandezas do ínfimo, Manoel de Barros



Ana Martins Marques

10 VISITAS AO LUGAR COMUM

1

Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego

2

Pagar para ver
e receber
em troca
vistas parciais
uns cobres
de paisagem

3

Dobrar a língua
e ao desdobrá-la
deixar cair
uma a uma
palavras
não ditas

4

Perder a hora
e encontrá-la depois
num intervalo
de teatro
nos cantos empoeirados
do domingo
entre um telefonema e outro
dentro do táxi

5

Dar à luz
e então sondar
num átimo
de abismo
– como um espeleólogo
um cosmólogo
um cenógrafo
um guarda-noturno –
a própria
escuridão

6

Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
em que esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre suas coxas
mornas
ainda

7

Tirar fotografias
e depois devolvê-las
àqueles de quem as tiramos
à mulher fora de foco
em seu vestido violeta
à casa de janelas verdes
às paisagens
tomadas emprestadas
à casca
de cada coisa
aos vários ângulos
da Torre Eiffel
ao cachorro morto
na praia

8

Cortar relações
e depois voltar-se
verificar se o que restou
suporta
remendo
demorar-se
sobre a cicatriz
do corte

(guardar
por precaução
a tesourinha
para mais tarde)

9

Esperar
horas a fio
e então
desvencilhar-se
das coisas tecidas
na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento
que o outro
dos pelo menos
dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia


10

Quebrar promessas
e ao recolher os cacos
discerni-los
entre aqueles
do silêncio
quebrado

Fonte: Revista Piauí, ano 6, maio 2012, p. 79

Geraldo Holanda Cavalcanti

O SONHO DE CLARICE

 A luz da vela no basement
num lugar que não era o meu nem o dela
Clarice me disse, contou
o sonho que era meu e dela

O sonho narrado não perde
a clara neblina em que envolto nasce
e se é Clarice quem narra
antes mais veste e reveste

Inútil pensar que as imprecisas formas
que ora se chegam ou afastam do modelo
adquirem, faladas, o contorno exato
de Gala, da pedra, ou do pintor que as pinta

Por isso a palavra escolhe tanto
e várias, cada uma trazendo
um pedaço da imagem que se esquiva
e se trasmuda envelhecendo a frase

E as palavras têm de correr
atrás do sentido ou mágicas se tornam
para vestir a elusiva forma
que dos dedos se escapa ou da memória

E assim Clarice fala
que o meu caminho conhecera, tomou
de minha mulher o ventre apalpara, apalpou
dentro de mim se enluvou
e para Clarice aquele sonho no basement
ou o vinho no copo à luz da vela
ou as vinte pessoas na sala ou a noite
tinham todos a nítida fixação da névoa.

Geraldo Holanda Cavalcanti, Poesia Reunida, Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 1998, p. 151-152

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Henriqueta Lisboa

O TESOURO
Em pleno cristal reside o tesouro.
Orvalho cotidiano. Mãos de criança
poderiam tocá-lo.
Porém o homem buscou na distância
a névoa para os próprios olhos.
om a sombra caminhou sobre os mares,
com a noite regressou à terra.
E logo vislumbrava o tesouro
por entre as montanhas da lua.

O tesouro é desnudo. O louco
o transporta ao reino dos sonhos
onde pervagam panejamentos.
Sopram os vendavais sobre as formas
a cada instante recriadas.
E em meio à conjura de mitos
o diamante se troca
pelas jóias de embuste.

Pronto para abastecer o universo
com a delicada flor dos trigais,
a todos pertence o tesouro.
Porém em torno da arca lavra
o pânico, lavra o fogo nos campos
guardados pelas foices recurvas.
E a um passo dos rufiões o tesouro
permanece inviolado.

Demasiado ardente é o hálito humano
sobre a camélia branca.


[Henriqueta Lisboa, Obras Completas, Vol. I, Poesia Geral,  Duas Cidades: São Paulo, 1985, p. 269]

António Ramos Rosa


Os anjos que conheço são de erva e de silêncio
Os anjos que conheço são de erva e de silêncio
nalgum jardim de tarde. Mas quais os mais ardentes?
Feitos de mar e sol, elevam-se nas ondas,
entre as mulheres de coxas tão fortes como touros

O meu luto é de mesas e de bandeiras sem paz
É estar sem corpo à espera, inconsolada boca,
o fogo ateia o peito, a cabeça perde a fronte,
o vazio rodopia, é o celeste inferno.

Desço ainda um degrau com o anjo infernal,
um turbilhão de ervas, um redemoinho de sangue
Quem me vale agora se perdi o meu cavalo?

[In Ciclo do Cavalo, Antologia Poética, Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, 1975]

 


 

Hilda Hilst

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi.

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras doiradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
 De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)

A criança que foi. Tão confundida.


Hilda Hilst, Exercícios, Globo: são Paulo, 2001, p. 169-170

terça-feira, 29 de maio de 2012

Daniel Lima

Chegarei lá, a utopia me espera.
Creio em Tomás Morus, imaginador do céu
e da terra,
do universo que inda não há agora,
mas que tem de haver,
pois o sonho é que o cria,
e o inexistente é apenas
o que não foi desejado.

E eu desejo a utopia,
é minha pátria e para lá caminho.
Pátria minha inexistente
onde irei nascer um dia, não sei como,
da minha morte, talvez,
talvez da vida.

Agora, absurdo, realidade adiante,
um dia acontecerás, pátria minha utopia
e pisarei no teu solo real
de absurdos e sonhos.


Daniel Lima, poemas, Cepe: Recife, 2011, p. 206

Júlio Castañon Guimarães

EMBORNAL

§
quantos passos rasuram
a rota da releitura?
quantas fraturas perfazem
a textura do mapa?

§
se devassa
o real e seus ermos
a história não isenta
as dobras da imaginação

§
um silêncio e seu repertório
operam a cena:
leve não é o olhar
se o espaço desenha o tempo


In Poemas [1975 - 2005], Cosacnaif: São Paulo, 2006, p. 119

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Yeda Prates Bernis


CONSCIÊNCIA


Faço e desfaço
o largo laço
do sentimento.
Mordo ou remordo
o alimento
que a vida doa à toa,
Rosto e desRosto de mel e fel.
Rompo ou corrompo a simetria
do dia.
Consinto, sinto
a insuficiência
na só regência
do coração,
mordido cão.
Relevo. E levo
alta alquimia
sobre meus ombros: poesia
e escombros.

(In “Pêndula”, Ed. Itatiaia: Belo Horizonte, 1986, p. 31)

Alejandra Pizarnik

A GAIOLA

Lá fora há sol
Nada mais que um sol mas os homens o olham e depois cantam.
Não sei do sol
Sei apenas a melodia do anjo e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até a aurora quando a morte pousa nua sobre minha sombra.
Choro debaixo de meu nome. Aceno lenços na noite
e navios sedentos de realidade dançam comigo.
Oculto pregos
para escarnecer meus sonhos doentios
Lá fora há sol.
Eu me visto de cinzas.

[Alejandra Pizarnik, Poesia Argentina, São Paulo, Iluminuras ,1990, p.183]

Alejandra Pizarnik


INFÂNCIA

Hora em que o capim cresce
na memória do cavalo.

O vento profere discursos ingênuos
em honra dos lilases,
e alguém penetra na morte
com os olhos arregalados
como Alice no país do já visto.

Alejandra Pizarnik, Poesia Argentina, Iluminuras: São Paulo, 1990, p. 184

Alejandra Pizarnik

SÓ A SEDE
Apenas a sede
o silêncio
nenhum encontro
cuidado comigo, meu amor,
cuidado com a silenciosa no deserto
a viajante de copo vazio
e a sombra de sua sombra
Alejandra Pizarnik, Poesia Argentina, Iluminuras: São Paulo, 1990, p. 187

SOMBRA DOS DIAS QUE VIRÃO
Amanhã
me vestirão com cinzas à aurora,
me encherão a boca de flores.
Aprenderei a dormir
na memória de um muro,
na respiração
de um animal que sonha.

In Poesía Completa, Barcelona: Editorial Lumen, 2000, p. 202.





Clarice Lispector

A ROSA BRANCA
Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem – crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito, espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória meu rude pensamento quer cantar.

Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuirte. Alço-me em direção de tua superfície que já é perfume.

Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina …

Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por um homem.

E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.

Onde estivestes de noite, Rocco: Rio de Janeiro, 1999, p. 66

João Anzanello Carrascoza


DOMINGO


André seria o primeiro a chegar ao horto, viria com as crianças, todas com aqueles olhos azuis de doer os nossos ao mirá-los, a calmaria de lagos, mas no fundo o agito dos oceanos: os três já estavam na idade de perguntar tudo, e espalhavam, como conchas, o constrangimento por onde passavam. Depois, seria a vez de Pedro e a menina, os dois quase não falavam, às vezes doía ouvir o silêncio deles, se não fosse o ruído do motor do carro se acercando, ninguém diria que teriam vindo, mas sim se materializado de repente no meio da família. Logo saberíamos, pelo latido dos cachorros, que Marcos tinha chegado, trazia-os na caçamba da caminhonete e mal abria a portinhola, eles já saíam correndo, famintos pelas larguezas do campo. João viria em seguida, sempre solteiro, no seu carro esportivo, mas com alguma nova companhia, o que costumava gerar incômodo, apesar de ser um estímulo às boas maneiras. Não tardaria também para a moto de Madalena encostar à sombra do flamboaiã, e ela descer falando alto, enfiada numa daquelas calças jeans apertadíssimas, que nós reprovávamos, os óculos escuros nos refletindo na varanda, as crianças brincando sem saber que a vida nelas já ia envelhecendo, todos os meus filhos bebendo seus drinques, felizes pelo momento de leveza. Era um conforto tê-los por perto, com suas virtudes e seus defeitos, muitos dos quais herdados de nós mesmos. Tão logo fôssemos à mesa, Maria sentaria ao meu lado, e eu ocuparia a cabeceira e abriria um sorriso, como das outras vezes, um sorriso que dizia, Tudo termina. E era justamente por estar lá com eles, vivendo mais um encontro finito, que eu sorriria.

In: Amores Mínimos, Record: São Paulo, 2011, p. 79-80

Maria José de Queiroz


O CANTO DO CISNE
Não, o cisne não canta
ao aviso da morte.
Nenhuma voz anima.
o seu último silêncio
na solidão das águas.
No bico secreto,
com timbre preciso,
o peixe ágil,
o lodo, o verme.
No momento inacessível
em que os juncos adormecem, o seu pescoço se alonga
à procura de outra forma.
É o cisne o seu próprio canto no risco definitivo
do corpo sem metáfora.

In: Resgate do Real: Amor e Morte, Coimbra Ed. Ltda: Belo Horizonte, 1978, p. 68

Guillaume Apollinaire

A PONTE MIRABEAU
Sob esta ponte passa o rio Sena
e o nosso amor
lembrança tão pequena
sempre o prazer chegava após a pena
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
Mãos dadas nós fiquemos face a face
enquanto sob
a ponte dos braços passe
de eternas juras tédio que se enlace
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
E vai-se o amor como água corre atenta
e vai-se o amor
ai como a vida é tão lenta
e como só a esperança é violente
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
Dias semanas passam à desena
nem tempo volta
nem nosso amor nossa pena
sob esta ponte passa o rio Sena
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa

Tradução de Jorge de Sena






Elza Beatriz


A HORA LACRADA

Tempo de medo vivemos,
a alma em pedra,
a vida em muros,
exilados em nós mesmos
do asco de sentimentos
oxidados na garganta
como vômitos de noite
a engulhar as manhãs.
Tempo de peste, o resguardo
mais doente que a doença,
essa solidão lastrante
qual lacraia muItiandante
sobre seu próprio veneno.
Deus do céu, por que o homem
se esconde assim de si mesmo
se a alma é flor desdobrável
que só a ferros se fecha
e a vida um relógio de sol
morto se a sombra o assenhora?

In: Líquido e Certo, Vigília: Belo Horizonte, 1983,  p. 35

João Anzanello Carrascoza


A TERCEIRA MARGEM DE MIM


Então você saiu da cama como se de um rio, as pernas afastando as águas da cintura até chegar ao raso, e se enfiou quarto afora, molhando-me os olhos com as sombras do escuro. Percebi que recolhia suas roupas do caminho, a respiração áspera como o tecido de sua calça que eu desfolhara feito ramos de uma árvore, e me lembrei de quando você chegou pela primeira vez às minhas margens e me atravessou com o vento de seu negro silêncio. E, pressentindo que procurava ao meu redor o que era seu, igual um bicho voraz, lembrei-me do último ataque, minutos antes, em que arrancou as minhas camadas de verniz e tocou a minha trêmula nudez.

Quieto, à medida que escutava o rumor da vida vindo de suas narinas, revi cena por cena o enredo de nossas 1001 noites, cada uma com o seu aroma de perdas, cada uma com sua aura de conquistas, e os minutos todos que eram tão plenos quando a eles nos entregávamos, tangendo nossas diferenças, felizes por descobrir que aprender a viver é que era mesmo o viver.

Logo me lembrei, com o gosto de fome, dos tempos em que minha lenha acendia a sua fala, enquanto o linho de sua língua em meu falo me apagava os gritos de desejo – e refiz na memória a correnteza que eu era, me fluindo em sua boca, e a sede que você jorrava, me bebendo gota a gota, me sugando como o tempo suga um lenho ao relento, como a flor sorve o néctar da abelha, sem nenhum zumbido.

Aticei ainda mais as brasas da memória, remexendo os fatos que tínhamos provado juntos, as fagulhas de nossos vãos momentos, e então faiscaram os dias que vivemos no deserto de Atacama, o sol soldando nossos anseios, as pedras espetando nossos pés, a fina poeira de cobre maquiando nossa face em fogo, os entardeceres grandiosos vistos das montanhas, o luar queimando nossa solidão. Nesse revirar de centelhas, reluziram as nossas manhãs de dores e os nossos ardores, e, no ondular das chamas que eu recordava, surgiam e sumiam seus sorrisos, para depois surgirem de novo, e de novo sumirem.

Foi aí que, movendo-se na escuridão recém-nascida em meu olhar aberto, você se abeirou de novo em mim, como quem volta à cama, depois de fechar as janelas numa noite de temporal, e deslizou em minha pele, água com água, descendo o curso, eu rio espesso, você o sumo da viagem, a travessia, em suma.

In: Amores Mínimos, São Paulo: Record, 2011, p. 117-118

Adélia Prado

O TESOURO ESCONDIDO
Tanto mais perto quanto mais remoto,
o tempo burla as ciências.
Quantos milhões de anos tem o fóssil?
A mesma idade do meu sofrimento.
O amor se ri de vanglórias,
de homens insones nas calculadoras.
O inimigo invisível se atavia
pra que eu não diga o que me faz eterna:
te amo, ó mundo, desde quando irrebelados os querubins assistiam.
De pensamentos aos quais nada se segue,
a salvação vem de dizer: adoro-Vos,
com os joelhos em terra, adoro- Vos,
ó grão de mostarda aurífera,
coração diminuto na entranha dos minerais.
Em lama, excremento e secreção suspeitosa,
adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas.

In: Poesia Reunida, Siciliano: São Paulo, 2001, p. 435

Sándor Márai

EXCERTO DE "DE VERDADE"
Eu sabia de algo sobre ele que o mundo não sabia:
o homem brincava. Brincava com tudo, com as pessoas, com as situações, com os livros, e também com o fenômeno misterioso que em geral chamamos de literatura. Certa vez em que o acusei disso, ele respondeu, dando de ombros, que a arte, em segredo e no fundo, na alma do artista, não era mais que a manifestação do instinto de brincar. “E a literatura?”, perguntei. Afinal a literatura é mais que a arte, a literatura é resposta e postura ética … Ele me ouviu sério e educado, como sempre, quando eu me propunha a falar de seu ofício, e depois disse que era verdade, embora o instinto que alimentava a postura ética fosse um instinto lúdico, e, além disso, a finalidade última da literatura, como da religião, seria, a despeito de tudo, a forma, e a forma era também arte. Ele fugiu da pergunta. O grande público e os críticos naturalmente não podiam saber que o homem era capaz de se entreter igualmente com um gatinho que perseguisse um novelo de linha sob a luz do solou com um problema ético ou filosófico: com a mesma seriedade, ou seja, no íntimo com o mesmo descompromisso, com a atenção inteiramente voltada para o fenômeno ou para o pensamento, sem entregar o coração a nenhum dos dois. Ele era o meu parceiro de jogos. Disso os outros não sabiam … E era a testemunha da minha vida: falávamos muito nisso, com total franqueza. Você sabe, todas as pessoas têm alguém que é procurador, guardião, crítico e, ao mesmo tempo, um tanto cúmplice no processo misterioso e assustador que é a vida. Essa pessoa é a testemunha. Ela é quem nos vê e conhece por inteiro. Tudo o que fazemos, nós fazemos também um pouco para ela; quando temos sucesso, pensamos: “Será que ela vai acreditar?” … A testemunha fica atrás do cenário durante a nossa vida toda. Trata-se de uma parceira de jogos incômoda. Mas não conseguimos nos livrar dela, e talvez  nem desejemos.

Na minha vida essa pessoa era Lázár, o escritor, com quem joguei os jogos estranhos, para os outros incompreensíveis, da juventude e da idade adulta. Ele era o único que sabia, e de quem eu também sabia, somente eu, que era inútil aos olhos do mundo o fato de sermos adultos, industrial sério e escritor famoso, e, aos olhos das mulheres, homens excitados, magoados ou apaixonados … Na realidade, o máximo e o melhor que tínhamos conseguido preservar na vida era o desejo caprichoso, ousado e impiedoso de jogar, com que distorcíamos e, ao mesmo tempo, embelezávamos um para o outro o drama falso e pomposo da vida.

In: DE VERDADE, Companhia das Letras: São Paulo, 2008, pp. 191-192

Jorge Luis Borges

O ESPELHO
Quando menino, eu temia que o espelho
Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Em seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,
Lastimada de sombras e de culpas,
O que Deus vê e talvez vejam os homens.

Poesia, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, p. 282

Muriel Barbery


EXCERTO DE "A ELEGÂNCIA DO OURIÇO"

Para que serve a Arte?

Para nos dar a breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a Arte por nós? Ela dá fonna e toma visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, apõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos.

O selo da eternidade … Que vida ausente essas iguarias, essas taças, esses tapetes e esses copos sugerem ao nosso coração? Além das margens do quadro, sem dúvida, o tumulto e o tédio da vida, essa corrida incessante e vã, exausta de projetos – mas, dentro, a plenitude de um momento suspenso arrancado do tempo da cobiça humana. A cobiça humana! Somos incapazes de parar de desejar, e mesmo isso nos magnifica e nos mata. O desejo! Ele nos transporta e crucifica, levando-nos cada dia ao campo de batalha onde na véspera perdemos mas que, ao sol, nos parece novamente um terreno de conquistas, nos faz construir, quando na verdade amanhã morreremos, impérios fadados a se tornar pó, como se o conhecimento que temos dessa queda próxima não importasse à sede de edificá-los agora, nos insufla o recurso de querer também aquilo que não podemos possuir, e nos joga de manhãzinha na relva juncada de cadáveres, fornecendo-nos até a nossa morte projetos tão logo realizados e tão logo renascidos. Mas é tão extenuante desejar permanentemente … Breve aspiramos a um prazer sem busca, sonhamos com um estado bem-aventurado que não começaria nem acabaria e em que a beleza não seria mais um fim nem um projeto mas se tornaria a própria evidência de nossa natureza. Ora, esse estado é a Arte. Pois essa mesa, eu tive de arrumá-la? Essas iguarias, devo cobiçá-las para vê-las? Em algum lugar, alhures, alguém quis essa refeição, aspirou a essa transparência mineral e perseguiu o gozo de acariciar com a língua o sedoso salgado de uma ostra ao limão. Foi preciso esse projeto, encaixado dentro de cem outros, fazendo jorrar outros mil, essa intenção de preparar e saborear um ágape de mariscos – esse projeto do outro, na verdade, para que o quadro tomasse forma.

Mas, quando olhamos para uma natureza-morta, quando nos deliciamos, sem tê-la perseguido, com essa beleza que leva consigo a figuração magnificada e imóvel das coisas, gozamos daquilo que não tivemos de cobiçar, contemplamos o que não tivemos de querer, afagamos o que não tivemos de desejar. Então, a natureza-morta, por figurar uma beleza que fala ao nosso desejo mas nasce do desejo de outro, por convir ao nosso prazer sem entrar em nenhum de nossos planos, por se dar a nós sem o esforço com que a desejaríamos, encarna a quintessência da Arte, essa certeza do intemporal. Na cena muda, sem vida nem movimento, encarna-se um tempo isento de projetos, uma perfeição arrancada de uma duração e de sua exausta avidez – um prazer sem desejo, uma existência sem duração, uma beleza sem vontade.

Pois a Arte é a emoção sem o desejo.

A Elegância do Ouriço, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, pp. 218-219

Max de Figueiredo Portes


Confesso a deus

o tanto que é de mim porque sou todos
porque sou mais do que a mim mesmo
e tenho comigo o peso histórico
de látegos invisíveis
mastigando impossíveis palavras e -
antes das palavras -
a nossa desesperança
maior que a ansiedade

e em cada verso ( antes da poesia )
a nossa vida
e bem antes da nossa vida
a nossa morte
no trato do dia
que ostenta em casebres a herança vazia
amanhando os beirais dessas casas caiadas
arranhando esse escuro das gentes raiadas

In: Das Razões Inquietas, Imprensa Oficial de Minas Gerais: Belo Horizonte, 1988, p. 52

Mia Couto

INUNDAÇÃO

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escurasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutámos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficámos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só  suspirou:
- Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
- E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
- Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão . A ver se o rio do tempo  a levava, numa dessas invisivéis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando  todo seu volume.
- Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
- Durma na cama, mãe.
- Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
- Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
- Meupai?
- Seu pai está aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol.  Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
- Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

In: O Fio das Missangas, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, pp. 25-27

Augusto Frederico Schmidt

PELAS LARGAS JANELAS ENTRA A NOITE
Pelas largas janelas entra a noite quieta e um cheiro de frutos maduros,
Pelas janelas abertas chega até nós um perfume frio de estrelas.
Pelas janelas abertas penetra a mansa poesia dos caminhos, das
viagens noturnas com pássaros dormindo nas ramadas…
Oh!o sossego do lampião na mesa tosca,
E o sorriso do amor sobre os postais da parede!
Onde a música não chega, aí estaremos.
Onde o repouso se estender nascendo pelas madrugadas aí estaremos.
Estaremos confundidos pelos ramos virginais e pela nudez das campinas.
Estaremos misturados com os passarinhos das cercas.
Os ruídos dos trens cortarão nossos ouvidos.
Mas as nostalgias não estarão mais em nós,
Porque seremos simples como a noite,
Como a grande noite resinosa e infinita.

Coleção Melhores Poemas, seleção de Ivan Marques, Global Editora: São Paulo, 2010, p. 100

Renata Pallottini

MÃO E IMAGEM
Se EU pudesse encontrar palavras muito nítidas,
se eu pudesse acertar meu horizonte íntimo
com o teu horizonte, se eu conseguisse
vencer a mútua indiferença que nos une
quanto ao passado, se eu falasse em coisas mortas
mas de um modo vivo, e sem pedir o seu retorno
então talvez compreendesses a amarga distância
das mãos que a carne modela e do coração
que o sangue inunda à ilusão construída
e à imagem feita de frases suspensas,
e talvez sentisses que as mão são trêmulas demais
para inventar novos caminhos e o coração
é fraco, é muito fraco, e se dilui dentro de nós
como a neve ao calor das chamas,
e que a boca que se cala talvez pedisse um beijo
assim, cerrada e muda, e que os cabelos
(ah, os cabelos, o mistério do humano movimento
e a distância fluindo neles, e a ternura!)
e que os cabelos, assim deitados sobre os ombros
sugerem laços e dedos que se perdem na cálida penumbra.

[In: Obra Poética, Editora Hucitec: São Paulo, 1995, p. 69-70]


Renata Pallottini



O SANGUE

Não te  quero brutal, mas represado.
Quero teu curso, feito entre paredes
de carne. Quero teu caminho
azul e frágil quando vais, e quando
vermelho e novo pelo teu retorno.
Quero-te movimento entrecortado
e não fonte espantosa
Quero tatear no íntimo
do que és substancialmente
e ali surpreender-te vida.
Contigo latejar nos pulsos longos
e adivinhar contigo as emoções
das frontes imortais.
Assim te quero, sangue: musical,
com teu calor de sumo excelso
e essencial.

In: Obra Poética, Editora Hucitec: São Paulo, 1995, p. 72

João Cabral de Melo Neto


O FIM DO MUNDO


No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.
Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.
O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.

Fonte: Obra completa, Ed. Nova Aguillar S.A.: Rio de Janeiro, 1999, p. 71

Ivan Junqueira


O POEMA


Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?
Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que o algema?

Fonte: Poemas Reunidos, Editora Record: São Paulo, 1999, p. 215

Fernando Namora

TUDO NA VIDA ESTÁ EM ESQUECER O DIA QUE PASSA
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul*.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

* Palavra de pouco uso no Brasil. Pântano, brejo

Sobre Fernando Namora 

Dylan Thomas


A LUZ IRROMPE ONDE NENHUM SOL BRILHA

A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.
Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.
A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou proteção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.
A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

( tradução: Fernando Guimarães)

Guerá Fernandes

OS RATOS NÃO ESCONDEM SEU OLHAR

Acordou e estava sozinho. Abriu a janela. A cidade também abandonada. O lixo maior, invadindo as ruas. Não gostava de viver do lixo. Era pior se sentir parte dele. No espelho parou pela primeira vez. Estático. Onde estavam as palavras? Pouca coisa ele havia dito como se ainda rastejasse. Nada ouviu de fato. Ele não conhecia o mundo por mais terrível que ele fosse. Ele diria pra si mesmo. Desafiou-se e começou a experimentá-las.
– Medalha! Medalha…
Não era uma palavra assim tão bonita. Nunca tinha visto uma medalha. Nem um general. Conteve-se. Queria novas palavras. Refletida no espelho uma barata olhava em sua direção. Adivinhou os olhos dela. Atentamente. Ameaçada ela fugiu. Ele nem se mexeu.
– Uma barata nua voou desaparecendo…
Ele se perdeu. Não sabia como prosseguir. Não tinha tantas palavras para sair emendando umas nas outras. Ademais não gostava de baratas. A mãe orientava sobre a importância das baratas. As mais fortes. As últimas. Sobrevivendo a todos. Multiplicando-se nos caos. Elas sim veriam a queda dos edifícios suspensos. E mesmo depois elas estariam ali como se não tivessem fim. O fim é banquete dos urubus, aprendeu com o irmão.
– Urubu!
Disse com força. A própria palavra subia para as alturas. Aprendeu também a admirá-los entre os catadores. Alimentando-se dos catadores quando ao lixo se entregavam sem vida. Os urubus desafiam até mesmo o sol. E todos temiam o sol. Aproximando-se gigantescamente sobre o que sobrou da Terra. O urubu realmente tornava o céu mais bonito. O sol embora pulasse sempre de um lado para outro dava a impressão de estar sempre naquele mesmo lugar em que estava no exato momento.
– O urubu é lindo voando no céu!
Ficou triste de repente. O que seria do céu quando os urubus não existissem mais. As baratas viveriam mais que os urubus. Elas com seu vôo pequeno. De um ponto a outro sem nenhuma graça. Fugindo. Apenas isso.
– As baratas fogem mesmo quando estão voando.
Então ele entendeu o segredo das baratas. Elas nos ensinam a fugir.
- Ratos…
Riu. Pensou plural. Um atrás do outro. Ligados pela mesma direção. Sabiam aonde ir. Iam. Os ratos não voltavam. Viu que isso era seu e estava feliz. As baratas da mãe, os urubus do irmão. Seriam dele os ratos. Era.
- Os ratos são meus!
E ele possuiu o que lhe pertencia.
- Os ratos não escondem seu olhar.
Estava gostando do que estava dizendo. Bonito mesmo é quando tudo parece novo. As palavras repetidas aqui e ali. As mesmas. O que agora parecia tão novo! Até mesmo as ruas passaram a fazer sentido. Era preciso ir. E voltar como se fosse. É uma questão de olhar. As palavras. Então era isso. Estava descobrindo um mundo de coisas. E ele que esperou tanto tempo pelo irmão sempre catando entre os urubus. Como um urubu. Senhor da podridão. Altivo. Sagrado. E ele não era nada. Ele não sabia. Como não. Agora essa palavra indo atrás dos ratos. Pois bem. Seguiria os ratos pelas ruas. Riu de novo e mais forte. No silêncio seguinte se deu conta de que possuía uma imagem. Quem era? Estaria condenado a ser o irmão de alguém que já tinha partido?
Quando a mãe retornou, ele se voltou como quem queria saber. A pequena Diana dormia agarrada às suas pernas. Ela estranhou a atitude. Respondeu passando por ele como se pedisse silêncio. Ele esperaria. E desta vez a mãe não teria como fugir. Esteve o dia inteiro diante do espelho. Tinha palavras próprias. Ruas inteiras a sua espera. Seguiria os ratos.
O toque de recolher soou. O sol se pondo. Nem baratas nem urubus. Seguiria os ratos. Eles que vasculham as noites sem temer os caminhos que devem seguir. Ele que sempre esperou agora iria. Nem tão grande nem tão pequeno. Mas um piscar de olhos. Não enfrentaria gangues, mas jamais seria pego por elas. Sem temer os esgotos com seus mortos. Sem precisar de portas. A mãe que se demorasse. Ele agora já ia cheio de palavras descobrindo ruas. Ele já tinha um olhar. Mesmo dentro da noite. Sem medo. Iria. Estava decidido já existindo em si. Sozinho como a noite. E para dentro dela ele foi como um rato…

Guerá Fernandes
Fragmento de “O POÇO”, 2010
In: guerafernandes.blogspot.com.br/

Murilo Mendes


CERTO MAR
O mar não me quer,
O mar não sei porque me abomina,
o mar autárquico:
Ele me atira barbatanas e algas podres,
Destroços de manequins e papéis velhos,
Arrastando para longe barco e sereia.
O mar tem idéias singulares sobre mim,
Manda-me recados insolentes

Em garrafas há muito esquecidas e sujas.
Suprime de repente o veleiro de 1752
Que vinha beirando o cais.
Suprime o veleiro e um bando de fantasmas
-Eu bem sei-
Únicos, polidos, um quase nada solenes.
Não tolero mais este safado,
Nem mesmo o admito no outro mundo:
Felizmente a eternidade é límpida,
Sem praia e sem lamentos.
Hei de espiá-lo da Grande rosácea,
Hei de vê-lo um dia lá embaixo,
Inútil: espremida esponja, carcaça de canoa,
Avesso de fotografia.

[Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, pp. 553-554]


Arnaldo Antunes


MANCHA

toda mancha
tem o desenho de uma
poça
com o contorno de uma
rocha
toda mancha
roxa
na pele
ou no papel
onde uma gota
de sangue
se derrama
no lenço
ou no lençol
da cama
como
mangue
ou ilha
numa foto
aérea
quase
esfera
filha
imprecisa
de orla
que o
acaso
forja
fora
do destino
sibilino
:
forma.

EXTRAIR

ex
trair
do tempo improvável, do improvável,
de suas maquinações, ações,
do ato regular que se dissipa em método, todo
hábito que habito, repito,
da meta inalcançável que me fita, cripta
do incontável número dos dias vividos, idos,
da inumerável cota dos dias por vir, ir,
da engrenagem que não pára, dispara,
sacode o chão que piso, piso
de um ônibus em movimento, momento
em que me agarro ao cilindro de metal do alto
-
a vida
-
não a que resta ainda, indo,
mas a que transborda de cada ar expirado, inspirado,
até que arrebente, vente.

Folha de são Paulo, Ilustrissima, 06 de maio de 2012

Mario Benedetti


A PONTE

Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país

trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar

venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra

nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco

eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país

(De Preguntas al azar – 1984-1985)

Fonte: ANTOLOGIA POÉTICA.  Rio de Janeiro: Record, 1988, Tradução de Julio Luís Gehlen

Hilda Hilst


LXVIII

Te penso.
E já não és o pensado.
És tu e mais alguém
No informe, nos guardados
Alguém
E tu mesmo sem nome, imaginado.
Te penso
Como quem quer pintar o pensamento
Colorir os muros do passado
De umas ramas finas, mergulhadas
Num luxo de tinturas.
Te penso novo e vasto.
E velho
Igual à fome que tenho das funduras.

In: Cantares, Ed. Globo: São Paulo, 2004, p. 105

Hilda Hilst


Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?

(Da Noite – 1992)

Augusto Frederico Schmidt

FOI A ESTRELA …
Foi a estrela, a última estrela no céu;
Foi o galo, foi a Rosa da Manhã,
Foi um cheiro de carne pálida,
Foi um perfume de cabelos em flor,
Foi o som de uma voz
Que de repente voltou de muito longe,
Foi um silêncio, uma pausa, um esquecimento,
Um abandono, uma janela aberta.
Foi o coração distraído,
Foi uma fraqueza, sem dúvida,
Foi um gesto perdido que se repetiu sem querer,
Foi o acaso, o imprevisível
Que permitiu à tímida esperança
Voltar por um momento,
Viver por um instante,
Respirar em mim de novo brandamente
Depois do exílio, do duro exílio para sempre!

In Coleção Melhores Poemas, seleção de Ivan Marques, Ed. Global: são Paulo, 2010, p. 168

Wislawa Szymborska

POSSIBILIDADES
Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro- me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.

[In Poemas, Comnpanhia das Letras: são Paulo, 2011, p.p. 87-88, trad. Regina Przybycien]


Olga Orozco


LAMENTO DE JONAS


Este corpo tão denso com que fecho todas as saídas,
este saco de sombras, costurado às minhas duas asas
não impedem que eu vá até o fundo de mim:
uma noite cerrada onde vêm incidir todas as
miragens da noite,
algumas águas distraídas onde a esfinge de outro
mundo molha seus pés.
Aqui costumo encontrar vestígios de outra era,
fragmentos de panteões não destruídos pelo sal de meu
sangue,
oráculos e faunas aspirados pelas cinzas de meu
porvir.
Às vezes aparecem continentes em vôo,
plumas de outras roupagens submersas;
às vezes permanecem quase como o anúncio da
ressurreição.
Mas é melhor não estar.
Porque aqui há armadilhas.
Alguém brinca de não estar quando estou
ou me observa junto comigo por entre as guaridas de
cada solidão.
Alguém simula um fosso entre o sonho e a pele para
eu deslizar até o último abismo dos outros
ou me induz a cavoucar embaixo de minha sombra.

In Poesia Argentina (1940-1960), Iluminuras: São Paulo,1990, p. 101, seleção e tradução Bella Jozef

Hilda Hilst


LXXV

As maçãs ao relento. Duas. E o viscoso
Do Tempo sobre a boca e a hora. As maçãs
Deixei-as para quem devora esta agonia crua:
Meu instante de penumbra salivosa.
As maçãs comi-as como quem namora. Tocando
Longamente a pele nua.
Depois mordi a carne
De maçãs e sonhos: sua alvura porosa.
E deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho:
Brevidade de um passo no passeio.

In DO AMOR, Ed. Massao Ohno: São Paulo, 1999, p. 85

Adélia Prado

A TRANSLADAÇÃO DO CORPO
Eu amava o amor
e esperava-o sob árvores,
virgem entre lírios. Não prevariquei.
Hoje percebo em que fogueira equívoca
padeci meus tormentos.
A mesma em que padeceram
as mulheres duras que me precederam.
E não eram demônios o que me punha um halo
e provocava o furor de minha mãe.
Minha mãe morta,
minha pobre mãe,
tal qual mortalha seu vestido de noiva
e nem era preciso ser tão pálida
e nem salvava ser tão comedida.
Foi tudo um erro, cinza
o que se apregoou como um tesouro.
O que tinha na caixa era nada.
A alma, sim, era turva
e ninguém via.

By Rosamund Smith Bouve 

Eugénio de Andrade


ROSA DO MUNDO

Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.
Primeiro orvalho sobre o rosto.
que foi pétala
a pétala lenço de soluços.
Obscena rosa. Repartida
Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.
Quase nada.

O INOMINÁVEL

Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silencio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silencio
Nas próprias mãos
E nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome.

Fonte:  http://www.astormentas.com

SOBRE EUGÉNIO DE ANDRADE

Manoel de Barros


Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce
por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor
as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua
eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos,
perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe
que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azulo seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele
vagando por escórias …
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos,
se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer
parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter -
ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos enlanguescidos por estrelas,
quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância
científica – como andar de costas.


In O GUARDADOR DE ÁGUAS , Record: São Paulo, 2003, p. 40-41

Paulo Leminski

A LUA NO CINEMA
A lua foi ao cinema
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste
- Amanheça, por favor!

(Do livro Distraídos venceremos)
Fonte: lectusexlibris.blogspot.com.br/

Daniel Lima

A casa onde nasci tinha um jeito risonho.
Tinha um quintal com mangueiras
E alguns pés de pitangas
e um pequeno jardim
de cravos e roseiras
e uma cisterna cheia de água de chuva
e um alpendre com redes sempre armadas.
Na frente,um portão velho que rangia
como se dissesse coisas tristes a quem por ela passava.
E dentro da casa onde nasci
Um corredor sem fim corria não sei para onde
E nem sei por que corria
o corredor sem fim da casa onde nasci
nem sei para onde.

Letras às terças. Diário de Pernambuco, 22 de fevereiro de 2011

María Elena Walsh


OBJETOS NA SOLIDÃO


Entrar em uma casa, comer frio.
A ternura deixou suas chinelas
debaixo de uma sombra.
Desconfio do sigilo de lâmpadas e cadeiras
e de algumas condutas amarelas.
O que permanece quieto alarma, dói,
provoca pânico, derrama o canto.
Não há estatística que não revele
tesouras na fila do espanto,
um alfinete que se parece com o pranto.
Não haverá quem traga pálpebras lá de fora,
lapelas, fumaça, senhas enrijecidas.
Um ruído de recantos desespera
e somente móveis homicidas
falam de preparativos, despedidas.
Ganha-se gestos de suspeita,
envelhece-se de tamanho disparate.
Não há senão como remédio uma flor desfeita,
o vigiar um cigarro morto.
Sociedade bem anônima, com certeza.
E o pior é que o travesseiro incomoda
com lúcida iminência. Dormir
tem uma ambiguidade tão perigosa
que em tais noites nunca se deve dizer:
desta desolação não hei de morrer.

In: Poesia Argentina (1940-1960), Iluminuras: São Paulo, 1990, p. 155, seleção, prefácio e seleção de Bella Jozef

Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...