INUNDAÇÃO
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as
lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por
educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é
de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia.
Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam
o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz
de minha mãe em canto se escurasse para que, no mais lúcido meio-dia, se
fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos
meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutámos o pranto. Era um choro
delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficámos à
porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
- Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para
além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há
muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que
os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo
chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
- E agora – disse a mãe -,
olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa.
Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
- Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão . A ver
se o rio do tempo a levava, numa dessas invisivéis enxurradas. Assim
dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando
todo seu volume.
- Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
- Durma na cama, mãe.
- Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando,
numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental,
incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe
lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto
assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
- Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
- Meupai?
-
Seu pai está aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se
ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água.
Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
-
Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em
surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora,
olhando o chão da cozinha, ela dizia:
- Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na
igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria
demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta
do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me
aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos,
cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde
se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara
ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri.
Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei
pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a
contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita
que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse
instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa
esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.
In: O Fio das Missangas, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, pp. 25-27