sábado, 28 de março de 2015

Ingeborg Bachmann

DIZER TREVAS

Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.

Não te esqueças que também tu, subitamente,
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda úmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro
passar por ti.

Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.

E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.

Mas, como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
dos teus olhos fechados para sempre.


[In O tempo Aprazado, Seleção, tradução e introdução João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, pp. 27-29]




quinta-feira, 26 de março de 2015

Álvaro de Campos

ESTOU CANSADO, É CLARO

Estou cansado, é claro

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto-

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo…

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente: eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO

O que há em mim é sobretudo cansaço –

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.


A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas –

Essas e o que falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.


Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada –

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser…


E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço…


NÃO, NÃO É CANSAÇO

Não, não é cansaço…

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

E um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo…


Não, cansaço não é…

É eu estar existindo

E também o mundo,

Com tudo aquilo que contém,

Como tudo aquilo que nele se desdobra

E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.


Não. Cansaço por quê?

É uma sensação abstracta

Da vida concreta –

Qualquer coisa como um grito

Por dar,

Qualquer coisa como uma angústia

Por sofrer,

Ou por sofrer completamente,

Ou por sofrer como…

Sim, ou por sofrer como…

Isso mesmo, como…


Como quê?…

Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.


(Ai, cegos que cantam na rua,

Que formidável realejo

Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)


Porque oiço, vejo.

Confesso: é cansaço!…


segunda-feira, 23 de março de 2015

Ruy Belo

PRIMEIRO POEMA DO OUTONO
Mais uma vez é preciso
reaprender o outono -
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração

E sabe deus a minha humana mão

SEGUNDO POEMA DO OUTONO
Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode um homem vê-las
cair e conseguir viver
(e cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver
cair as folhas e viver

[In Aquele Grande Rio Eufrates, Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 3a. edição, 2009, pp. 106-107].

CLAUDE MONET

quinta-feira, 19 de março de 2015

Enrique Vila-Matas

Leio as palavras do poeta Ullán sobre Marguerite Duras e é como se a estivesse vendo agora: “Marguerite perguntava sem parar. E era o eco e o filtro do que ela mesma se perguntava. Enfiava nisso cizânia e persuasão, melodrama e comicidade. Exigia de viva voz que lhe desse a razão, quando na verdade náo a desejava. Ia do copo ao cigarro, da tosse espasmódica às intermináveis pausas. Retorcia suas mãos carregadas de anéis, brincava com os óculos ou improvisava algum agrado leve com a ajuda do foulard. Ria e chorava amiúde. Com facilidade? Quem sabe! De fato, ali se sabia cada vez menos. Menos, de qualquer modo, do que ela queria saber”.

Eu a recordarei sempre como uma mulher violentamente livre e audaz, que encarnava em si mesma e com sentido de urgência — com seu inteligente uso, por exemplo, da libertinagem verbal, que em seu caso consistia em sentar-se numa poltrona de sua casa e, com verdadeira ferocidade, despachar com gosto — todas as monstruosas contradições que reúne o ser humano, todas essas dúvidas, fragilidade e desamparo, individualidade feroz e busca do desconsolo compartilhado, enfim, toda essa grande angústia que somos capazes de desdobrar frente à realidade do mundo, essa desolação da qual são feitos os escritores menos exemplares, os menos acadêmicos e edificantes, os que não estão propensos a dar uma correta e boa imagem de si mesmos, os únicos de quem não aprendemos nada, porém também os únicos que têm a rara coragem de se expor literalmente nos seus escritos - onde despacham com gosto - e que admiro profundamente porque somente eles vão fundo e me parecem escritores de verdade.

(Enrique Vila-Matas, Excerto de "Paris não tem fim")

quarta-feira, 18 de março de 2015

Eugénio de Andrade


A Sílaba 
Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz.
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.

Abril 
Brinca a manhã feliz e descuidada,
como só a manhã pode brincar,
nas curvas longas desta estrada
onde os ciganos passam a cantar.
Abril anda à solta nos pinhais
coroado de rosas e de cio,
e num salto brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul num assobio.
Surge uma criança de olhos vegetais,
carregados de espanto e de alegria,
e atira pedras às curvas mais distantes
- onde a voz dos ciganos se perdia.

Adeus 
Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

Adeus II
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Ainda sabemos cantar 
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.


segunda-feira, 16 de março de 2015

Rainer Maria Rilke

Amo as horas sombrias de meu ser,
nas quais se me aprofundam os sentidos:
nelas eu tenho achado, como em velhas cartas,
meu dia-a-dia já vivido, e feito
alguma lenda distante e sofrida.
Delas me vem a noção de que tenho
lugar numa outra vida mais ampla e infinita.

E eu às vezes me sinto feito a árvore
que, sobre um túmulo, madura e ciciante,
preenche o sonho de algum morto jovem
(a cuja volta ela aperta as raízes mornas)
perdido entre amarguras e cantigas.

***

 Se a ti, vizinho Deus, eu incomodo às vezes
com rude batimento no meio da noite,
é que de quando em quando te ouço respirar
e sei que estás sozinho no salão.
E, se careces de algo, lá não há ninguém
que te ofereça um gole às mãos tateantes...
Sempre atento estou eu: ao menor sinal teu
eu estou muito perto.

Só existe entre nós uma fina parede,
por acaso: se houvesse, por acaso,
de tua boca ou da minha algum chamado,
ela se desfaria
sem alarme ou ruído.

De imagens tuas ela é toda feita:
imagens que em tua frente se põem - nomes.
E, tão logo se acende em mim a luz
com que te reconhece a profundeza minha,
ela some com um reflexo na moldura.

E meus sentidos, que em pouco se debilitam,
desligados de ti - ficam sem pátria.

***

Capto de tuas palavras o sentido
e o da história dos gestos
com que tuas mãos em torno do devir,
quentes e sábias, tentam limitá-lo.

Da vida falavas alto, da morte falavas baixo,
e sempre e sempre repetias: ser...
Ainda antes da primeira morte veio o crime
- e era um rasgão cruzando teus maduros círculos
e uma área havia
e vozes arrastadas
que então se reuniam
para te proclamarem,
para te conduzirem
- pontes sobre todo abismo.

E o que têm, desde então, balbuciado
são pedaços
de teu antigo nome.

***

Fala Abel, pálido moço:

- Eu não existo. Algo me fez meu irmão
que meus olhos não viram.
A luz ele me apagou,
meu rosto ele sufocou
com o rosto dele.
Agora ele está sozinho.
Eu penso que ele nem deve existir:
com ele ninguém faz o que ele fez comigo.
Todos me seguem a trilha:
todos chegam defronte à ira dele
e diante dele parecem perdidos.

Creio que meu irmão maior vigia
igual a um tribunal.
É em mim que a noite tem pensado,
não é nele.

***

Tu, escuridão da qual descendo,
de ti gosto mais que da labareda:
ela reduz
o mundo em que reluz
a uma espécie de círculo
fora do qual nenhum ser a conhece.

Já a escuridão, em si tudo contém:
formas e flamas e animais, e eu
- assim como também ela reúne
pessoas e potências...

E pode ser isto: uma grande força
a se mover nos subúrbios de mim...

Acredito nas noites.


***

Eu creio em tudo que ainda não foi dito.
Quero soltar meus mais sagrados sentimentos.
O que ninguém sabe ainda querer muito
em mim um dia há de ser espontâneo.

Se é presunção isto, meu Deus, perdoa:
mas é só isto o que eu tenho a dizer-te.
A força melhor em mim há de ser como um impulso
assim sem zangas nem hesitações;
e é assim que te amam as crianças.

Com esta maré, com este estuário
nos largos braços do mar aberto,
com esta volta crescente,
quero reconhecer-te e proclamar-te
como antes ninguém fez.

Se isto é soberba, deixa eu ser o soberbo
por minha prece,
que tão grave e solitária
ergue-se em frente a teu rosto de nuvens.


 [In Livro de Horas, Tradução de Geir Campos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1994]
















sábado, 14 de março de 2015

Mariana Ianelli

De Rilke para Sophia, de Alceu para Lia
Além dos célebres contos e poemas de Natal, que todos os anos surgem em novas coletâneas, há na literatura este nicho muito particular das cartas natalinas, no qual Rainer Maria Rilke ocupa um lugar especial. Suas cartas de Natal para a mãe cobrem nada menos que 26 anos, um período sem lacunas que raramente encontra paralelo no gênero epistolar a ponto de render um livro temático. Curiosamente, o que sintetiza as cartas do poeta e ao mesmo tempo as mantém vivas por um quarto de século tem relação com as cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Lia. Essa presença por meio da palavra, nunca como presença física, numa época do ano em que era esperado que pais e filhos celebrassem juntos, acontece com uma intenção que não foge ao espírito da data.

Diz-se que Rilke mantinha uma distância estratégica da mãe e suas cartas seriam prova disso, de um filho que, não faltando com o afeto, tampouco buscava expandir essa relação. Mas a importância do Natal para o poeta como um momento de celebração meditativa, nítida nos motivos de sua poesia, coincide com o gesto e o conteúdo de suas cartas. Em 1903, três anos depois do início da correspondência com a mãe, Rilke propõe a ela um ritual: que sua carta seja aberta apenas no dia 24 e às 6 horas da tarde os dois se encontrem em pensamento. Fica tacitamente acordado que o Natal será comemorado sempre assim, numa secreta sintonia entre mãe e filho que significará para ambos uma comunhão sagrada.

As cartas não falham, a cada ano vêm de um lugar diferente, Paris, Westerwede, Roma, Duíno, Viena, Munique, cada lugar marcando uma fase da vida e da obra do poeta. O ritmo intenso tanto nas mudanças de residência de Rilke quanto em seu trabalho literário tem como contraponto sutil a serenidade de espírito que o poeta busca para si, desejando o mesmo para sua mãe. O presente de Natal enviado com a primeira carta, em dezembro de 1900, é simbólico: "Histórias do Bom Deus", um livro em que a mãe vai reconhecer - ele espera - o melhor em que seu filho se tornou.

É bom lembrar que, nessa época, Rilke já esboçava com o pintor Heinrich Vogeler o projeto de um ciclo de poemas de Natal que, mais de dez anos depois, resultaria no livro "A Vida de Maria". Uma das cenas escolhidas para esse ciclo é o repouso de Maria e Jesus durante a fuga para o Egito. Esse momento de repouso dos prófugos está representado também de modo simbólico no conteúdo das cartas natalinas, especialmente durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Aquela paz de uma hora em que os dois se encontram, sempre em dezembro, numa espécie de cerimônia íntima, de cumplicidade na solidão, significa ainda um espaço interior de refúgio, uma celebração da criança a salvo dentro de um e de outro.

No Natal de 1901, em Westerwede, Rilke está casado, tem uma filha, e a família recém-formada justifica as palavras breves. No dezembro seguinte ele volta a escrever, dessa vez longamente. Fala do trabalho, da filha pequena, do tempo quente e úmido de Paris. Já em 1906, instalado em Capri, na Villa Discopoli, Rilke está separado mulher e da filha, tão sozinho quanto a mãe. A paz da hora então é real, e a solidão, uma palavra festejada. A partir daí, Rilke afasta-se cada vez mais de sua família a ponto de comentar, poucos anos depois, em Duíno, que há muito tempo não recebe notícias de sua mulher, Clara.

Em 1910, Rilke celebra o Natal em Túnis, em meio a uma paisagem de mesquitas, "templos divinos de outra crença, mas [erguidos] ao mesmo Deus". Esse breve comentário resume a convicção de fundo místico do poeta. Também nessa carta está uma de suas definições para o espírito da data: "Sentir no peito uma vez ao ano a expectativa, a esperança inabalável, de que o adulto, ora vigorando em nós, nos quer surpreender, não um pouco, não, muito, com o infinito".

Essa "esperança inabalável" e essa "feição de inocente criança" que dão sentido à hora sagrada serão desafiadas durante os anos de guerra. Justamente em 1914, a carta vem sem referência de lugar. É o primeiro dezembro de um mundo em transe, uma época em que as palavras não convencem. Mas René, o velho René, como agora assina suas cartas, continua a ver no Natal "a comemoração do júbilo", o envolvimento de cada um na imagem daquela criança pura, mesmo em circunstâncias de destruição e luto.

Se já a fidelidade das cartas, ao menos uma vez por ano, mostra uma constância de pensamento, o equilíbrio que o poeta mantém numa época de desabono espiritual prova que sua alegria não oscila com as oscilações do mundo. Por isso, suas cartas de 1914 a 1918 insistem em reabilitar as palavras desacreditadas e assumem o desafio: "Somos assim postos à prova, se de fato compreendemos a necessidade de transcender a nós próprios no congraçamento".

As cartas que se seguem, de 1919 a 1921, marcam uma temporada de turnês de leituras e conferências de Rilke pela Suíça, além da etapa final da longa gestação de "Sonetos a Orfeu" e "Elegias de Duíno". Em 1923, os poemas de "A Vida de Maria" estreiam numa peça para canto e piano.

O interessante nessa arquitetura dos poemas de Natal, contemporâneos das primeiras "Elegias", e nas cartas natalinas para a mãe, é a sugestão de uma mesma atmosfera de capela, sob a influência das artes, especialmente a pintura de ícones. Não por acaso, além das pinturas citadas pelo poeta em suas cartas, há referências a capelas que ele visita, em particular a capelinha abandonada de Santa Ana, de propriedade do Castelo de Muzot, que sintetiza em uma imagem o imperturbável sentimento ascético de Rilke nos tempos do pós-guerra. Sua última carta vem em 1925, de Muzot, e ali está, mais uma vez intacta, a celebração de júbilo do filho, comungando em pensamento com a mãe.

A criação desse espaço de sintonia lembra o teor de outras cartas natalinas, agora de pai para filha. Cobrindo um período de mais de 20 anos, as cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Lia aproximam-se do espírito de união entre Rilke e Sophia. Vale destacar a carta de dezembro de 1950. A bordo do navio Argentina, no Dia dos Santos Inocentes, Alceu escreve para a filha se despedindo. Começava um tempo novo para os dois, Alceu a caminho dos Estados Unidos, Lia a caminho do mosteiro Santa Maria, em São Paulo. Nessa carta de despedida, Alceu faz um único pedido para a filha às vésperas da vida nova: que ela nunca perca sua naturalidade. Que, dali a alguns anos, ele possa reconhecer a mesma alegria de menina quando a reencontrar, "com os seus véus negros, atrás de uma grade".

É assim que os dois comemoram o Natal, celebrando a figura de uma criança e nela a essência de uma pureza e uma alegria. Em dezembro de 1961, Alceu escreve: "Se não fosse, hoje em dia, Santa Maria, e em Santa Maria se não fosse uma 'nossa menina', sempre alegre, sempre igual, sempre animada, sempre criança, (...) e por isso com o ar puro do espírito varrendo sempre todos os miasmas da minha melancolia, da inquietação, da dúvida, da divisão, da discórdia comigo mesmo, do medo, em suma, dos fantasmas do demônio exterior e interior (...), que seria de mim, neste confuso crepúsculo de 61?"


[In Valor Econômico, 6 de dezembro de 2013]

sexta-feira, 13 de março de 2015

Fabrício Corsaletti

HISTÓRIA
Na cidade em que nasci
havia um bicho morto em cada sala
mas nunca se falou a respeito
os meninos cavávamos buracos nos quintais
as meninas penteavam bonecas
como em qualquer lugar do mundo
nas salas o bicho morto apodrecia
as tripas cobertas de moscas
(os anos cobertos de culpas)
e ninguém dizia nada
mais tarde bebíamos cerveja
as brincadeiras eram junto com as meninas
a noite aliviava o dia
das janelas o sangue podre
(ninguém tocava no assunto)
escorria lento e seco
e a cidade fedia era já insuportável

parti à noite despedidas de praxe
embora sem dúvidas chorasse

ELA E SUA CIDADE
Vai buscando as nuvens compactas,
como um samba perfeito,
nesta tarde de sol em que a poesia
é menos que a poesia.
Sabe onde estão os vidros da noite.
Tem dedos infinitos,
narinas transparentes,
imperfeitas sobrancelhas intocadas.
Nos seus quadris começa o mundo.
Seu passo aperfeiçoa o amor.
Há redes grávidas, amarelas
em toda a costa do mapa.
De cada bicho rouba uma surpresa.
Pantera branca, garota de colégio
(jamais um tigre de Bengala
desbotado); brancura acinzentada
do cinema em preto e branco.
E as palavras vivas, na boca viva,
são um pensamento livre.
(Ela deveria ter sido poupada para o mundo justo.)
Antes de se cansar, desaparece.
Depois amanhece.
Viver para ela deve ser bom.

                 [In História das Demolições (2007)]

Fonte: Poesia.net

FABRÍCIO CORSALETTI Nasceu em 1978 em Santo Inácio, interior de São Paulo. Mudou-se para São Paulo em 1997, formou-se em Letras pela USP e escreveu letras para a banda de Rock Barra Mundo.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Octavio Paz

ATRAVÉS

Passo a página do dia,
Escrevo o que me dita
o movimento de teus cílios.

Minhas mãos
Abrem as cortinas de teu ser
Te vestem com outra nudez
Descobrem os corpos de teu corpo
Minhas mãos
Inventam outro corpo para teu corpo.

Entro em ti,
Veracidade da treva.
Quero as evidências do escuro,
Beba o vinho tinto:
Toma meus olhos e reinventa-os.

Uma gota de noite
Sobre a ponta de teus seios:
enigmas de cravo.

Ao fechar os olhos
Abro-os dentro de teus olhos.

Em teu leito grená
Sempre está desperta
E úmida tua língua.

Há fontes
No jardim de tuas artérias.

Com uma máscara de sangue
Atravesso teu pensamento em branco:
A desmemória me guia
Para o reverso da vida.

A Lifetime Photography - photo © Roman Vishniac


terça-feira, 10 de março de 2015

Ana Hatherly

APERTO A TUA MÃO ATÉ OS OSSOS DOEREM
Aperto a tua mão até os ossos doerem
Ah não me, digas que não magoa nada
Aperto a tua mão com minha mão membrana
membro aéreo de deslizar pela alma
ansa de sustentar as pancadas do coração de uma engrenagem
impulso das revoluções internas fibras dos sentimentos
gestos de a gente correr por dentro como apertar a tua
mão até os ossos doerem
Ah por dentro é que todos os gestos são
o pensamento de outros tantos gestos de um corpo maquinal-
mente como colher um fruto de uma árvore animal
deslizando pelas encostas abruptas dos interstícios de
outros gestos
como apertar a tua mão é aprisionar a membrana alar de
uma súbita excrescência
Ah não digas que não magoa nada
que não ressoa dentro da pele de qualquer coisa que passa
a correr pela grande veia porta estuário das convulsões
de um animal colorido a deixar um sulco na retina objectiva
do instante secretamente
gesto de acender qualquer coisa no escuro cauda estriada
de um gesto de colheita do fluido que faz tremer os lábios
em septo da força redonda de um beijo se erguendo centro de comando
da cúpula transparente de um sol em cacho
curva de uma anca muito branca para que as carícias sejam sempre
parábolas nas mãos trémulas do gesto de derrubar
árvores por dentro enquanto as folhas convergem para um
ponto único espiral iminente
eminente como a ponta de um dedo indicando o único ponto
de incidência onde o tremor de um cílio é já demasiado
colher o teu sopro para que o mundo acabe e fiques só
sem nenhum outro gesto da mão que procuras até não haver
ossos
para apertar-te a mão e não magoar-te nada

HESITAVA E MACIO
Não não te amo
não posso amar-te assim tão dual
não posso olhar para ti e, ver-te
vejo-te correr e não vejo a corrida vejo a fuga
vejo-te deitado e resvalo
não vejo o beijo
não vejo a língua sinto o frio
sinto o redondo dos olhos na dureza da unha
não vejo as pernas
sinto apenas o peso do seio não ali
não te vejo
sei apenas fraternal idêntico

no ventre produzido não não posso amar-te assim
tão perto nesta circunstância respiratória tão irmã
tão rindo
olha lembras-te como eira fundo as vértebras corriam
tão salgado passava primeiro sobre a água e como
corria ligeiramente fazia tremer a boca e então rias
e era tão negro sobre o teu joelho a ternura como um
cão deitado inclinava a cabeça tu rias por teu dentro
trémulo
ninguém estava assim em quilha ah era tão alto lá
não havia erosão
hesitava e macio
não é possível amar assim em báculo e tão pungente
como foge ali

ESTA OBSCURIDADE SALUBRE
Olha peço-te não venhas assim quando eu estava tão quieta
sentada no jardim e até com óculos
não venhas peço-te
não venhas melindroso e sorrindo
com a cabeça inclinada como um particípio
não venhas
Eu estava já me aproximando
quase tocava a recorrência das coisas
nesse momento eu olhava para o chão e via mesmo cada
pequena pedra saudável
eu estava tão quieta sentada no jardim
Respirava 
sentia as veias ligeiramente activas
mas tão ligeiramente
tudo corria fundo em sua sumidade
meus braços tinham apenas o seu peso
sem outras asas
Quando tu vieste sorrindo melindroso e tão salubre
de repente o jardim é a dificuldade essencial da minha
botânica
a minha indústria difícil
o fim que a alma lograda obtém dos corpos
Corro agora por minha alucinação dirigível
minhas tarefas são histriónicas
Eu estava ali tão quieta
estava até com óculos
e tu inclinavaste como um simulacro
Intui peço-te
esta obscuridade salubre
esta consternação despenhada
tropeçando pela alma recorrente silva

[In Poesia (1958-1978), Prefácio de Lúcia Helena da Silva Pereira, Lisboa: Moraes, 1980, pp. 80-83]



segunda-feira, 9 de março de 2015

Isabel Mendes Ferreira

139.
vim do mar. da mesa do mar. que dizia pálidos os
vestidos lançados ao chão. em vagas ou implantes dos
teus dentes como verdades, e da lã das tuas mãos como
cordeiros mansos trouxe a penitência ascendida da boca
dos animais mais ternos, vim do mar que hoje estava
de oliveiras e de fragmentos territoriais, os mesmos
quando fomos transeuntes álgidos e ardis sem envelopes
fechados, as tuas mãos como andas andaram nas minhas
como se asas também fossem, e os peixes abrigaram-
se nos teus pés. cruzados, relutantes no meio da sala
fulgurosa. e um anjo absurdamente coloquial dizia das
assimetrias do teu sorriso e do meu silêncio carnoso,
ocupaste o lugar de todos os ofícios como se ocupa a
lâmina e o fio. ao longe o futuro aquecia o vinho da
despedida em lugar do transe ou da melancolia, e floriu-
se o anjo de beijos primitivos, fez-se espelho e pedra e
lágrima e perfume e cabeça em desmaio, trago do mar
uma foice, latejante o mistério ávido em que te anuncio
nunca mais outra vez. a maré alta como advérbio
mortífero, água em calafrio e deus cheio de vestidos
lançados ao chão. e tu ao largo, sempre ao largo, cada
vez mais véu. o meu.

[In O TEMPO É RENDA, Lisboa: Labirinto de Letras, 2014, p. 092]

BY MICHELA BEVILACQUA

domingo, 8 de março de 2015

Gastão Cruz


21
Nas madrugadas de segunda-feira
tinhas de regressar não sabíamos bem
a que fracção do tempo porque tudo
se sobrepunha
e éramos forçados a deter
o instante não por ser
belo, apenas por ser água
onde nunca ninguém duas vezes entraria

22
Existiam então esses momentos
que a câmara
do tempo não retinha? Ao rio das
manhãs não voltaríamos?
São as coisas concretas as mais claras
o suor o quarto a roupa abandonada

23
Os dias existiam somente por sabermos
que se lhes seguiriam
outros essa era a garantia
de sermos reais e o tempo um facto indiscutível
como a vinda do vento o movimento das
marés a força das correntes que mudavam
a posição dos barcos fazendo-os opor
à direcção da água as proas movediças

[In Observação do Verão seguido de Fogo, Rio de Janeiro: Móbile, 2013, pp. 57-59]

foto © Michael Simon 

sábado, 7 de março de 2015

Armando Freitas Filho

GRÃO
Toco, instante, início
talvez de uma árvore
que não foi em frente.
Alguma coisa deste lado
insiste, mesmo sem ramais
em sentir o que se passa
no outro
onde cresceu e floriu o rio.
Mas não consegue ouvir tudo
nem ver claro
o que raspa e invade o campo de força
se é não ou sim, se são leões
arremessando contra a presa
ou atividade de índole diversa
sem precisão de imagens
e de trilha sonora - algo alusivo
iludido, oblíquo, contra a parede:
algo de alma, ímã e ruína. 

LISPECTOR
Certo ar que não é claro
nem escuro - que é de sol e chuva
ar que não chega ao vento
mas entreabre a porta
um palmo
ou a encosta sem fechar
igual àquela, de Duchamp
hesitante
parada no meio do caminho
interrogativa entre dois portais
em 1927: porta de saída
de entrada, de comunicação?

[In Armando Freitas Filho, melhores poemas, seleção Heloísa Buarque de Hollanda, São Paulo: Global,2010, pp. 138-139]



sexta-feira, 6 de março de 2015

Daniel Faria

DO LIVRO SEGUNDO DA NOITE
ESCURA, DE SÃO JOÃO DA CRUZ 5
Entendo agora a nudez do pobre
E posso tocar-lhe como quem toca a alma às escuras
Mesmo sem a tremenda noite com que lhe toca a mão divina
O terceiro modo da paixão são os extremos. Agora entendo
Os dedos dos cegos
Agora entendo o ovo e o mártir quando é cercado para morrer
Entendo o ventre do bicho marinho, o fundo dos golfos
E já sei como abrem os ressuscitados os olhos no sepulcro

Sei o que é ser vomitado nas praias
O que é voltar a terra firme — ao dia mais do que à luz

Sei o que é o ouro no fogo e no inferno
Sei o que é renascer pelas águas

edição de Vera Vouga


quinta-feira, 5 de março de 2015

Iúnna Môrits

A cor dos cogumelos reluzentes
neste trêmulo bosque induz em erro.
Me desagrada ter de caminhar
sobre a sua beleza venenosa
e seus afogueados chapeuzinhos.
Não sei ainda onde a natureza
ferventa cada óvulo maligno,
à luz de que clarões, pra que, depois,
sob o pungente abeto, em bosques densos,
pisando-os no chão, nos reste apenas
esta lembrança longa, interminável
de sua intensa e insólita beleza.

IEREVÃ
Já sonho com Ierevã,
alegre e clara cidade
cuja rubra caravana,
que desce lá da montanha,
foi copiada do rótulo
da garrafa de conhaque,
cidade cheia de sumo,
de raízes que meditam
fincadas dentro do solo,
de pedreiros que, na aurora,
vão trabalhar carregando
nas mãos da cor de tijolo
suas bilhas coloridas
como uma bola...
                     E um menino,
ágil como uma formiga,
vai atrás deles tocando
o cornetim de brinquedo.

JANEIRO
Azul tão intenso vem ferir a janela,
tão próxima do rio, que a vontade que sentimos
é de afastar os olhos, como quem não tem coragem
de olhar para um ícone, de encarar um milagre.
Tanta névoa, tais continentes de neve
envolvem o dia que nossos ouvidos zumbem
e todo o mundo à nossa volta fica azulado.
- Tu e eu, aprendizes de feiticeiro,
ali ficamos parados, congelados,
em nosso estúdio, no espaço
ao lado do quadro-negro pregado na parede,
a garganta seca, o olhar atento.
Cheia de arrogância, arrastarei
cada sílaba, cada minuto de vida
para a minha distância; e cada atulhada
barraca de feira com toda a sua tranqueira.
Tudo o que antes parecia irrelevante
modela agora nosso destino, entra-nos nas veias,
cola-se como um prefixo aos nossos nomes. 
Cúmplices! Quero o para sempre de nosso amor
para todo mundo, até a corrupção do túmulo,
até a ferida aberta, até o verso
inconcluso: até lá onde a relva cresce e encobre
nosso peito e nossas mãos.
Azul tão intenso vem ferir a janela,
tão próxima do rio.

KIEV
Por que será que eu vôo para esta cidade
com sua catedral azul sobre a colina?
Basta bater em suas portas vermelhas
para sentir lábios beijando-me o rosto.

Aqui eu me sinto eu mesma, inteiramente,
como um pássaro a quem dão de comer na mão.
Sobre o retângulo deste tapetinho
fico firme de pé, sem hesitar.

Feliz é aquele a quem coube a missão
de lavar carinhosamente, com um chuveirinho
de cristal, os meus olhos, boca, ouvidos,
de tudo o que o vento veio trazendo.

Sonho que a minha camisa se transforma
em pó de neve a recobrir meus ombros
e, antes de ir embora, sonho com um cachorro
parado ali, me olhando fixamente.

[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp. 491-493]

Iúnna Petróvna Môrits, poeta e ativista russa,  nasceu em Kíev, em 1937, numa família judaica. O crítico norte americano Daniel Weissbort, considerou-a “um dos nomes mais importantes da poesia feminina russa atual”. 
Uma das fundadoras da seção russa do PEN International, destinado a promover a aproximação entre os intelectuais. Participa da Comissão de Direitos Humanos dessa instituição. Entre os prêmios recebidos por ela está o Andrei Sákharov para a Coragem Cívica.


quarta-feira, 4 de março de 2015

Edwin Morgan

CINCO POEMAS SOBRE DIRETORES DE CINEMA
Antonioni
Árvores afogando em sal. O buraco da fechadura geme.
Ele deixou seu barco
no leito de junco, o livro dela
e luvas idiotas onde ela as jogou.
Além do canal os combatentes rondam
de norte a sul, seu chamado
continua através dos pântanos.
‘Por quê você esperou o verão terminar
antes de vir?’ ‘Por quê você esperou por mim
se preferia ter um barco que uma mulher?’
“Não foi isso. Não é isso.’
‘Já vou.’ ‘Mande o carro de volta.’
‘Com Sandro? Deve estar brincando.’ ‘Está frio.’
O carro prateado entre os álamos
como um peixe nos juncos.
Ele vive de balas de hortelã e blues
ou
Ele recorta fotografias para ganhar a vida
ou
Enviaram para ele a morte, está abrindo agora
ou

Grierson
Depois as redes subiram e caíram
sobre a onda. Depois a água escura
incendiou subitamente, depois escureceu.
Depois com uma pescada tudo era
fogo, tudo fogo prateado
lutando contra o escuro. Depois o fogo
subiu no ar lentamente,
debatendo sobre o lado do barco.
Depois era convés e cabo.
Depois era a dança da morte
em prata com gaivotas cinzas.
Depois eram nuvens baixas, barras de luz,
água alta estapeando, rasto agitado
e chá de impermeável depois.

Warhol
Nós nos tornamos laranja. Eles se tomam roxo.
O fuso está se tornando rock metamórfico.
Acendendo um cigarro, ele se torna ela.
O Empire State está se tornando escuro
o dia todo. Na praia há deuses,
que tornam suas costas um para o outro
enquanto cada um gira-se num visitante.
A pickup centelha e cospe, dois
cantos de stereo incandescentes.
No brilho ela se torna vaga, inclina-se,
e uma fração de segundo a torna
em um próximo ciclo de escuridão.
Eles gritam como papagaios, e tão radiantes,
todos se tornando metade pássaro.
Dois no sofá tornam um fanzine,
querido. Estamos ligados, desligados, ligados.
Uma peruca vagueia, ela
se torna ele. Ele gri-
ta em laranja. Nós
vagamos para a porta.
Torna-se. Retorna-se
ao mundo enfim,
parado como o Empire State
soprado pelo vento.

Kurosawa
Espada da clareira, brilho correndo.
Tremor de árvore, choro engasgado.
Sombra de rio, abalo completo.
Moinhos de pó, velho vento.
Moinhos de cova, gélido vento.
Fogo de colmo, criança correndo.
Carroça empilhada, milhares de cinzas.
Chuva da vila, floresta da tormenta.
Deuses da tormenta, fantasmas da chuva.
Pais inquietos, lareiras de preces.
Jogando faixas, tronos dissolvendo.
Colheita de sangue, pote de cão.
Moinhos de pó, velho vento.
Moinhos de cova, gélido vento.
Forno rachado, amarrotado lento.
Lâmina da lua, crânio degolado.
Irmão de sangue, cilada suntuosa.
Moedas do sol, cantos de pássaro.
Arco inclinado, homem correndo.
Arco inclinado, corpo pulando.
Arco inclinado, pescoço fluindo.
Arco inclinado, joelhos quebram.
Arco inclinado, peito cravado. 
Arco inclinado, arco inclinado.
Arco inclinado, arco inclinado.
Moinhos de pó, velho vento.
Moinhos de cova, gélidos ventos.

Godard
- as paredes todas muito brancas, a garota
falava devagar ao ser interrogada
mas as palavras perdiam-se nos sons de balas
vindas da rua -

caído no café, quarto marrom asséptico
o clangor do rádio, uma janela
abrindo-se num jardim sujo
com uma espécie de galinheiro -
se ele estava apenas bêbado, ou morto -

‘o público não tem meios de saber
e é isto’ / no elevador do arranha-céu
no décimo-nono andar

‘tudo bem, 20 mil
uma pechincha’

- não, a interrogação foi muito antes.
Ela foi para o campo -

a junção não
‘como’ uma teia de aranha
continua pegando trens -
as pontes onde ele se debruçou -
na verdade um céu em branco

TODOS OS REACIONÁRIOS SÃO TIGRES DE
PAPEL

- ela tinha vindo para a ponte sem que soubesse
mas já era tarde, eles tinham seus cachorros,
fácil mesmo sem lanternas -

MAS ELES TAMBÉM SÃO TIGRES REAIS
QUE TÊM DEVORADO MILHÕES DE
PESSOAS

‘Não há cinema
sem um fluxo de imagens,
Godard está destruindo o cinema’

MAS POR OUTRO LADO ELES SÃO TIGRES
DE PAPEL
PORQUE O POVO AGORA TEM PODER

e o conversível deslizou sobre
um clichê bacana no mar

[In Edwin Morgan - Poetas do Mundo, seleção, tradução e introdução de Virna Teixeira, Brasília, Ed. UNB, 2006, pp. 50-63]. 



terça-feira, 3 de março de 2015

Maria Lúcia Dal Farra

POEMA
A Antonio Cândido

O ondulado mar
(crina arisca de versos)
galopa na areia imóvel desta página.
Dos cascos e redemoinhos do acaso
faço argolas de Iemanjá,
pulseiras com que ela dança
acatando
o rito dos náufragos.
Nesse ritmo
cu mesma me afogo na gramática deslizante
dessas águas
como se imergisse para o imo hipnótico
onde as ondas
sussurram vocábulos em tom de sonda.

Mimosos cavalos marinhos
escavam (sem patas)
a massa lendária deste papel,

e flores aquosas, arabescos de espuma,
calêndulas
(e até peixes)
sobem à tona
apenas

para comprovar o milagre da escrita.

MUDAS CINZAS
A Jesana B. Pereira e ao
pessoal do "5“ Curta As Mulheres”

Tudo o que é belo
a morte devora:
o pássaro, o êxtase, a veemência das musas,
a infância —
inscrita no vento
ou na água nascente
a vida nada retém.

Indago em vão
as mudas cinzas porque sei
que cada pequena coisa
pede canto.

Ó Deus,
escutai ao menos estes versos
que não vos censuro por acompanhardes
(do alto)
a minha angústia.

[In Alumbramentos, São Paulo, Iluminuras, 2011, pp. 112-113].

ODILON REDON


segunda-feira, 2 de março de 2015

Emerson Machado

EM CORES

Eram olhos lindos. Um azul bem forte nas íris. E quando estava feliz, parecia ainda mais forte. Tão azul quanto à tinta da caneta que usei para escrevê-la tantas cartas. Eram olhos mais azuis quando sorria, e também quando dava gargalhadas, mesmo tendo que fechá-los para gritar seus altos risos. O azul ficava ainda mais forte quando estava séria. Os olhos pareciam ficar a ponto de saltar das órbitas e atacar quem quer que a estivesse contradizendo, ou provocando-a, ou tinha pegado alguma coisa sem sua permissão. Eram turquesa quando estava focada, concentrada em fazer os outros felizes, ou me fazer um carinho no cabelo. Ficavam mais parecidos com a cor de uma piscina ao sairmos de férias, ou estarmos apenas tomando sol na varanda. Eram da cor do mar quando jantávamos a luz de velas e da cor do céu ao comermos hambúrgueres numa praça de alimentação qualquer. Ficavam mais claros ou mais escuros a depender do clima. No frio eram sempre da cor de Netuno. No calor eram mais para uma alvorada, poucos minutos antes do nascer do Sol. As quase imperceptíveis listras de um lápis-lazúli nas íris apareciam quando estava com medo.
Eles brilhavam às vezes. Ao me verem e raras vezes ao verem Bob — o cachorro da vizinha. E o sorriso dela? A gente conseguia prevê-lo naqueles círculos azuis de seu rosto. Primeiro ela sorria com os olhos, para então mostrar os dentes. Não me pergunte como isso podia ser possível porque eu não saberia explicar. Era pura magia.
Com o passar do tempo, o azul começou a dar lugar ao cinza. Quando chorava, era essa cor triste que eles tomavam. Doía no peito ver lágrimas escorrerem de tão perfeitos olhos e ver o azul se entregando facilmente àquela outra cor sem vida. Tempos depois ninguém mais conseguia ver o céu naqueles círculos. Nem o mar. Nem piscinas. Eu não conseguia imaginar o que podia combinar com aquela nova cor. Cinza lembra o pó, ou cidades grandes violentas. Ou carbono. Isso faz algum sentido? Pelo sim e pelo não, carbono me remete ao início da vida. E com isso podia me encher de esperança em ver aquele cinza se transformar em azul novamente. Assim como o carbono que criou os seres vivos para contemplarem a imensidão azul do mar e do céu se unindo no distante horizonte... E aqueles olhos precisavam de azul. A nova cor não era bonita. Não brilhava. Nem quando me via nem quando via Bob — sim, a vizinha ainda morava na casa ao lado e o cachorro parecia ter uma vida mais longa que a maioria dos que conheci.
Enfim, eu não queria mais encarar aquela fraca coloração de morte.
Logo, já quase no fim, quando ela virou o olhar e me encarou pela última vez, posso jurar que vi o azul que tanto me fazia falta. Cheguei a acreditar que tinha visto um singelo sorriso nele. Mas antes de poder mostrar os dentes, vi o azul se esvair, fazendo com que o cinza predominasse mais uma vez. E então pude perceber que algo estava faltando nela, algo já a tinha deixado.
A alma? Talvez.
  

Emerson Machado é jornalista pela Universidade Tuiuti do Paraná e escreve reportagens para o Diário da Amazônia. Tem vários livros infantis e juvenis publicados, entre eles O Investigador de Sótãos — livro selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE 2011), do Mistério da Educação. Também tem contos premiados em concursos literários e publicados em antologias e revistas. Acredita que foi irlandês em uma vida passada e adora viajar, ouvir histórias e fazer maratonas de documentários dos mais variados gêneros. Ele não gosta de pipoca.

By Shawn McNulty

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...