domingo, 31 de agosto de 2014

Al Berto

2
onde a terra se aquietou sob o gelo
os rios da fala suspenderam
o infindável movimento para a noite
da minha imobilidade cresce o sussurro:
é inalcançável o sossego
quando se decidiu viver sozinho
a memória desfaz-se em sangue e esperma
incendeia a pele desta paisagem de rostos
na penumbra ferrugenta do espelho erguem-se
os dedos entrelaçados perfuram nódoas de luz
eu sei
como é precária a harmonia entre coração e terra
fechámos a porta do corpo para sempre
e sobre o gume da navalha deixámos insinuar-se
o pulso ausente
na maresia das aquáticas palavras
que me afastam e lavam de ti

3
se te nomeasse cintilarias
no beco duma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos
onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda
mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?

[In O medo, 4a. ed., Lisboa, Assírio&Alvim, 2009, pp. 482-483]





quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Rubem Braga

A QUE PARTIU

E uma doçura fácil ir aprendendo devagar e distraidamente uma língua. Mas às vezes acontece uma coisa triste, e a gente sem querer acha que a língua é que está errada, nós é que temos razão.
Eu tinha há muito, na carteira, o número do telefone de uma velha conhecida, em Paris. No dia seguinte ao de minha chegada disquei para lá. A voz convencional e gentil de uma concierge respondeu que ela não estava. Perguntei mais alguma coisa, e a voz insistiu:
— Elle n 'est pas là, monsieur. Elle est partie.
Eu não tinha grande interesse no telefonema, que era apenas cordial. Mas o mecanismo sentimental de uma pessoa que chega a uma cidade estrangeira é complexo e delicado. Eu esperava ouvir do outro lado aquela voz conhecida, trocar algumas frases, talvez combinar um jantar “qualquer dia destes”. Daquele número de telefone parisiense na minha carteira eu fizera, inconscientemente, uma espécie de ponto de apoio; e ele me falhava.
Então me deu uma súbita e desrazoável tristeza; a culpa era do verbo. Ela tinha “partido”. Imaginei-a vagamente em alguma cidade distante, perdida no nevoeiro dessa manhã de inverno, talvez em alguma estação da Irlanda ou algum hall de hotel na Espanha. Não, sua presença para mim não tinha nenhuma importância; mas tenho horror de solidão, fome de criaturas, sou dessas pessoas tracas e tristes que precisam confessar, diante da autossuficiência e do conforto íntimo das outras: sim, eu preciso de pessoas; sim, tal como aquele personagem de não sei mais que comédia americana, I like people.
E subitamente me senti abandonado no quarto de hotel, porque ela havia partido; esse verbo me feria, com seu ar romântico e estúpido, e me fazia pobre e ridículo, a tocar telefone talvez com meses ou anos de atraso para um número de que ela talvez nem se lembrasse mais, como talvez de mim mesmo talvez nem se lembrasse c se alguém lhe dissesse meu nome seria capaz de fazer um pequeno
— Ah, sim, eu acho que conheço...
Mas a voz da concierge queria saber quem estava falando. Dei o meu nome. E me senti ainda mais ridículo perante aquela concierge desconhecida, que ficaria sabendo o segredo de minha tristeza, conhecendo a existência de um Mr. Braga que procura pelo telefone uma pessoa que partiu.

Meia hora depois o telefone da cabeceira bateu. Atendi falando francês, atrapalhado — e era a voz brasileira de minha conhecida. Estava em Paris, pois eu não tinha telefonado para ela agorinha mesmo? Sua voz me encheu de calor, recuperada assim subitamente das brumas da distância e do tempo, cálida, natural e amiga. Tinha “partido” para fazer umas compras, voltara em casa e recebera meu recado; telefonara para um amigo comum para saber o hotel em que eu estava.
Não sei se ela estranhou o calor de minha alegria; talvez nem tenha notado a emoção de minha voz ao responder à sua. Era como se eu ouvisse a voz da mais amada de todas as amadas, salva de um naufrágio que parecia sem remédio, em noite escura. Quando no dia seguinte nos encontramos para um almoço banal num bistrô, eu já estava refeito; era o mesmo conhecido de sempre, apenas cordial e de ar meio neutro, e ela era outra vez ela mesma, devolvida à sua realidade banal de pessoa presente, sem o prestígio misterioso da mulher que partira.
Custamos a aprender as línguas; partir é a mesma coisa que sortir. Mas através das línguas vamos aprendendo um pouco de nós mesmos, de nossa ânsia gratuita, melancólica e vã.

Janeiro, 1950

[In 200 crônicas escolhidas, Rio de Janeiro: Record, pp. 199-200]



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Eduardo White

POEMAS DA CIÊNCIA DE VOAR

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro.

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Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

Fonte: escritas.org

SOBRE EDUARDO WHITE

Foto by Luis Mariano González


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Ruy Cinatti

OS PELA SEGUNDA VEZ NASCIDOS
Não dos mortos a coroa dos mártires,
o epitáfio em mármore esculpido,
mas dos vivos que, ressuscitados,
foram de novo mortalmente feridos.
Desses eu canto a beleza extrema,
a noite elástica de tantos relâmpagos
caindo a fundo, como num crepúsculo
de faces pálidas, corpos moribundos.
O que procuro, o que neles descubro
é a visão do mundo a que assistiram
no espaço-tempo de entre ir e vir
e o regresso ao desconhecido.
O que procuro — algumas palavras
que me revelem o prodigioso
mistério aberto entre duas almas,
antes que seja tarde e a noite avance,
a morte vença de uma vez para sempre
e deles não fique senão o vislumbre.

[In 56 Poemas, Lisboa: Relógio D´Água, 1992, p. 88].

Photo by Brian Graves

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Cláudio Daniel

ZAUBERBUCH
A Jorge Luís Borges

Todos
os livros
- os Sutras, o Corão,
os Vedas, o Zohar -
são enigmas: jardins verticais,
rios insubmissos,
listras de mármore possesso;
todas as páginas
- em lâminas de argila, pele de carneiro,
folhas de papyro ou rubro ouro esculpido -
são impossíveis, viscerais,
areia alucinada.
Os livros, Borges, inventam os leitores
e os nomes de vales, savanas, estepes
e de amplas avenidas que ignoramos;
vivemos essa efêmera realidade
para lermos suas secretas linhas,
e nossos filhos e netos.
Um dia, porém, os livros
- últimos demiurgos — desaparecerão,
como o grifo e o licorne,
e ler será apenas lenda.

[In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 90, seleção e prefácio Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2011, p. 64]


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Eduardo Espina

CARAVAGGIO, VIGÍLIA FINAL
I

A luz ouve o que necessita,
habitar onde não possui tudo.
A ameixeira volta-se para vê-la
tornar-se salutar avalanche.

II

Falando no semelhante,
algo viscoso e torrencial.
Quanto menos olhava a
soma de fumo no obus,
mais tempo teria para tantas
coisas que se fazem no silêncio.
Quanta calma de bétulas,
quanto vento que ninguém vê.
A metáfora do estrangeiro
encontrava a Terra no
terraço, errava plena.
E a posteridade aguardando.

III

Ao longe só restava o
anjo que cabia na mandíbula
velocíssima do lambari.
Embora soubesse saber, a
névoa do pântano lhe tocou
o ocultismo com que do
gelo numeroso passar ao
centauro que por bisão para.
Respirável a raiz do figo,
feliz como recém-chegado:
Filodemo entre as flores
e quanto de alforge, pois sim.

IV

O vazio do bosque no
verão, mas já não importa.
Morreu com os olhos abertos
para que as imagens
seguissem saindo.


[In Jardim de Camalões - A poesia neobarroca na América Latina, organização, seleção e notas Cláudio Daniel, tradução Cláudio Daniel, Luiz Roberto Guedes, Glauco Mattoso, São Paulo, Iluminuras, 2004, p. 63].



segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Cecília Meireles

PERSEGUIÇÃO
Já partiram cavaleiros 
no encalço da fugitiva.
— Não rireis, ó mercadores, 
não rireis da fidalguia!
Iremos buscá-la à força, 
morta ou viva!
(Dão de esporas aos cavalos,
entre injúria e zombaria.
Passam o portal da igreja,
com olhos acesos de ira.
— Não leveis a mão à espada!
Grande pecado seria!)
E vem a monja.
Só de renúncias vestida!
Ah! Clara, se não falasses,
quem te reconheceria?
Para onde vais tão sem nada,
nessa alegria?


[Pequeno Oratório de Santa Clara - excerto]


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Luiza Neto Jorge

RECANTO 16
Dulcíssimo, coração do corpo, expande-se desata-se
desintegra-se pelos calcanhares de minha mãe
cansada
olha-me nos ombros
afasta-se no índico

Movimento mais que uníssono: órgão sonoro
a ressoar numa revolução
número odorífero
número de oiro negro sinal da mão que se coça
debaixo da terra
a empurrar-nos

Vestígio nosso?
Nossa absorção, respondo eu.

Tenta abrir o jacto para beijar em voo
um passageiro tenta ordenar o transito com um beijo
nos dedos destruídos
mas consegue pouco:

uma luminosidade quase cesariana
na barriga do melhor amigo.

[In Poesia (1960-19879), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 198]
By Júlio Pomar

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Manuel Fernando Alves

CURSOS 3
O ser humano é um erro de se romper o papel
Um palavreado poético mas sem rima
Um ideal nobre em que a nobreza é mentira
Não há incrementos históricos de melhoramento
E o passado não é escola nem livro aberto
O passado é ter havido gente de má fé
O mesmo punhal derrama e junta todo sangue

3/8/2014

CURSOS 2
São mais bulidas as folhas através da ira
Em que o vento é o eterno retorno das promessas
Em que tudo que existe permanece como possibilidade
E toda ansiedade é a justiça ofegante
Coma cão abandonado a milhas
De regresso a casa
Reparando o crime com sua baba

3/8/2014

CURSOS 1
O pensamento mais puro o curso de água sem rio
O espaço entre um verso e outro
Onde as palavras respiram
Ou existir simplesmente dentro da tarde
Onde nada tem nome nem forma
Onde a aparição das palavras é o ângulo certo da luz
O pensamento mais puro

3/8/2014

METADES 20
Escrever sempre também cansa
E a passividade da assistência requer
Dos actores mais trabalho clínico de persuação
E a leitura a forma mais barata de adormecer
E o melhor sono nessa fronteira onde do palco
Se desce pelas pálpebras toda mentira escarrada

Toda cena depende da criação do ambiente
Uma cena não pode ser a isolação da imagem
Mas mais a actividade mental dos presentes
Disfarçada pela sua inércia de tentáculos
Pois não é pelos movimentos manuais do maestro
Que se pendura a orquestra do silêncio de quem escuta
Todo maestro é sempre o bobo da festa

[Inéditos publicados com permissão do autor.
Todos os direitos reservados]. 


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Mariana Ianelli

CARTA LACRADA
Falo desses anos que percorro sem enigma
Porque é sob os gestos simples do tempo
Que se espraia o segredo.
Anos que eu lembro
Sem nem poder reparti-los contigo
Porque estamos no intervalo arredio
E para mim já não é lúcida a tua face revisitada.
Agora envio a expressão que faltou ao poema.
Todo tempo com a sua teimosia,
Com a sua viração, ou serenidade.
Será dessa vez a bravura da luta adiada,
Será a paixão murmurando que veio
Porque também o homem tem a sua parte louca.
Eu te consulto em imaginação.
Se não descubro os teus conselhos,
Recorda que eu não entendo signos...
Ou que a tua melhor razão não cobrirá o meu grito,
Eis a minha vida resguardada dos outros
E, porque resguardada, mendiga.
Tenho sim os meus acordes impecáveis,
Mas está com Deus ou com uma igual vibração
A dimensão ao mesmo tempo justa e difusa
Do concerto da vida.
Nós falhamos na conquista da flor,
Esbanjamos o abraço querido,
Pisamos a planta orvalhada.
Somos o ínfimo ou somos tanto,
Não cabemos no projeto venturo
Ou em acontecimentos.
Esse pouco desvario nos põe a correr pelo sangue.
É a força que não declaro,
Uma segunda existência palpitante
Em toda beatitude e nos corpos enfermos,
Porque eu acredito.
Ouve, ouve o estribilho —
Um amor penitente, um amor libertado,
Quando é tão desejável morrer,
Quando morrer é um perigo devassado.
No verso fugidio eu deponho meu passado,
Ali eu o acarinho, eu o adormeço nos braços.
Lembra por quantas vezes
Fracassamos e prosseguimos o nosso pacto,
A nossa marca grave de irmãos, o sangue conjugado,
Quantas foram as noites que tombei de pecado
Por atraiçoar a alegria,
Quantas outras repetiste que a tua resignação era exausta.
Nem há mais o apelo delicado,
Direito de reiniciar lentamente a busca do teu corpo,
Do teu olho particular esverdeando uma tímida sensualidade
Que era o sentido da tua inteligência.
Dessa vez será o desespero cerrado entre os dentes,
A jugular sobressalente, o muque rijo e latente,
Meu sexo intumescido de medo.
Tua palma rente na minha,
Entrávamos com primeiros lavores
No encantamento da vida,
E levávamos nada,
Nenhum juízo, nenhuma cintilação ainda.
Agora é o meu viço preservado,
Essa estreita presença de Deus ou de uma sinfonia parecida,
Que me faz rebentar num tufão
E marcar estas linhas embriagadas e mortas para ti.
Porque eu acredito.

[In Cartas, desenhos de Alfredo Aquino, textos de  Ignácio de Loyola Brandão e Mariana Ianelli, São Paulo, Iluminuras, 2004, pp. 72-73]






domingo, 3 de agosto de 2014

Manuel António Pina

ÚLTIMO POEMA
Ó Noite que me guiaste,
ó noite amável mais do que a alvorada
S. JOÃO DA CRUZ
A dor acompanhar-me-á,
a dor de não ter escrito
o teu nome e de não ter sabido
as perguntas e as respostas; nos teus braços quem me receberá?

E fará tanto frio
que a eternidade
se consumará sem mim no quarto agora vazio
de exterioridade e de contemporaneidade.

Só terei as minhas palavras,
mas também elas são mortais
mesmo as mais banais e mais
próprias para falar de coisas acabadas.

Terei talvez morrido; nunca o saberei.
Nem não o saberei tão perto estarei,
o rosto reclinado no teu peito,
a minha vida um sonho teu, desfeito.

[In Nenhuma palavra e nenhuma lembrança,  In Todas as Palavras Poesia reunida, 3a. ed, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 245]. 



sábado, 2 de agosto de 2014

Adélia Prado

RODANDO
Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiura das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro. Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.

[In Filandras, São Paulo, Record, 2001, pp. 119-121]

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...