CARTA LACRADA
Falo desses anos que percorro sem enigma
Porque é sob os gestos simples do tempo
Que se espraia o segredo.
Anos que eu lembro
Sem nem poder reparti-los contigo
Porque estamos no intervalo arredio
E para mim já não é lúcida a tua face revisitada.
Agora envio a expressão que faltou ao poema.
Todo tempo com a sua teimosia,
Com a sua viração, ou serenidade.
Será dessa vez a bravura da luta adiada,
Será a paixão murmurando que veio
Porque também o homem tem a sua parte louca.
Eu te consulto em imaginação.
Se não descubro os teus conselhos,
Recorda que eu não entendo signos...
Ou que a tua melhor razão não cobrirá o meu grito,
Eis a minha vida resguardada dos outros
E, porque resguardada, mendiga.
Tenho sim os meus acordes impecáveis,
Mas está com Deus ou com uma igual vibração
A dimensão ao mesmo tempo justa e difusa
Do concerto da vida.
Nós falhamos na conquista da flor,
Esbanjamos o abraço querido,
Pisamos a planta orvalhada.
Somos o ínfimo ou somos tanto,
Não cabemos no projeto venturo
Ou em acontecimentos.
Esse pouco desvario nos põe a correr pelo sangue.
É a força que não declaro,
Uma segunda existência palpitante
Em toda beatitude e nos corpos enfermos,
Porque eu acredito.
Ouve, ouve o estribilho —
Um amor penitente, um amor libertado,
Quando é tão desejável morrer,
Quando morrer é um perigo devassado.
No verso fugidio eu deponho meu passado,
Ali eu o acarinho, eu o adormeço nos braços.
Lembra por quantas vezes
Fracassamos e prosseguimos o nosso pacto,
A nossa marca grave de irmãos, o sangue conjugado,
Quantas foram as noites que tombei de pecado
Por atraiçoar a alegria,
Quantas outras repetiste que a tua resignação era exausta.
Nem há mais o apelo delicado,
Direito de reiniciar lentamente a busca do teu corpo,
Do teu olho particular esverdeando uma tímida sensualidade
Que era o sentido da tua inteligência.
Dessa vez será o desespero cerrado entre os dentes,
A jugular sobressalente, o muque rijo e latente,
Meu sexo intumescido de medo.
Tua palma rente na minha,
Entrávamos com primeiros lavores
No encantamento da vida,
E levávamos nada,
Nenhum juízo, nenhuma cintilação ainda.
Agora é o meu viço preservado,
Essa estreita presença de Deus ou de uma sinfonia parecida,
Que me faz rebentar num tufão
E marcar estas linhas embriagadas e mortas para ti.
Porque eu acredito.
[In Cartas, desenhos de Alfredo Aquino, textos de Ignácio de Loyola Brandão e Mariana Ianelli, São Paulo, Iluminuras, 2004, pp. 72-73]