quarta-feira, 31 de julho de 2013

Arthur Rimbaud

CIDADE
Sou um cidadão efêmero e não de todo descontente de uma metrópole tida por moderna porque o gosto geralmente aceito foi evitado no mobiliário e exterior das casas, e bem assim no plano da cidade. Aqui não encontrareis traços de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua reduzidas, afi­nal! à sua mais simples expressão. Esses milhões de pessoas, que não têm necessidade de se conhecerem, conduzem a educação, o trabalho e a velhice de maneira tão paralela que as loucas estatísticas concluiriam que seu curso de vida só pode ser várias vezes inferior ao do encontrado para os povos do continente. Assim [como], de minha janela, vejo espectros novos rolando através da espessa e eterna fumaça do carvão, — nossa sombra dos bosques, nossa noite de verão! — novas Erínias, diante do meu chalé que é minha pátria e todo o meu coração já que tudo aqui se parece com isto, — a Morte sem lágrimas, nossa ativa filha e criada, um Amor desesperado, e um bonito Crime piando na lama da rua.
(Iluminações)

In Prosa Poética, trad. Ivo Barroso, 2a. ed. rev., Rio de Janeiro, Ed. Topbooks, 2007,  p. 241


terça-feira, 30 de julho de 2013

Astrid Cabral

CREPÚSCULO
Por que esta ânsia de sobreviver 

assim se amoita no âmago de mim 

sempre que as lerdas pálpebras da noite 

baixam nas altas ramas com os morcegos? 

Por que o poente assim me abala o eixo 

e de fúnebre pompa alma me embrulha 

tal qual mortalha um pouco prematura? 

Por que me pesa suportar as trevas 

que o implacável fim do dia instaura 

quando já estagiei em precipícios 

saltando trampolins perto de abismos? 

Por que morrer me assusta e paralisa 

se o que temo perder, de longe sei 

nada tem de eldorado ou paraíso?

Cézanne

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Rainer Maria Rilke

O LEGENTE
Há muito tempo, desde que a tarde se ouvia
Com o murmúrio da chuva nas janelas, eu lia.
O vento lá fora, já o não escutava:
O meu livro pesava.
Como se fossem rostos, as folhas sob o meu olhar
Escurecem de tanto pensamento
E, envolvendo a leitura, avolumava o tempo.
De súbito desce sobre as páginas um fulgor,
E em vez de confusas palavras - um tormento -
Há em todas só... noite, noite só, a nascer.
Não olho ainda para fora, mas já as longas
Linhas se desfazem, e as palavras rolam
Do fio que as liga, vão para onde querem...
E então eu sei que há céus sem fim
Sobre o esplendor e a plenitude dos jardins;
O sol teve de nascer mais uma vez. -
E agora é verão e noite o horizonte:
O que andava disperso em grupos se une,
Poucos, e há gente pelos caminhos escuros,
E longe, estranhamente, como se outro sentido
Tivesse, ouve-se o pouco que ainda acontece.

E ao levantar do livro o olhar agora,
Nada me é estranho, tudo tem grandeza.
O que aqui dentro eu vivo, está lá fora,
E aqui e lá não tem limite o mundo;
Só eu me teço mais com tudo isso,
Quando os meus olhos se ajustam às coisas
E à grave singeleza dessa gente -
O mundo cresce então, num golpe de asa.
O céu inteiro o abraça, é o que se sente:
E a estrela d′ alba é como a última casa.

In O Livro das Imagens, trad. Maria Teresa Dias Furtado

O SOLITÁRIO
Como alguém que por mares desconhecidos viajou,
assim sou eu entre os que nunca deixaram a sua pátria;
os dias cheios estão sobre as suas mesas
mas para mim a distância é puro sonho.

Penetra profundamente no meu rosto um mundo,
tão desabitado talvez como uma lua;
mas eles não deixam um único pensamento só,
e todas as suas palavras são habitadas.

As coisas que de longe trouxe comigo
parecem muito raras, comparadas com as suas —:
na sua vasta pátria são feras,
aqui sustém a respiração, por vergonha.

In O Livro das Imagens, trad. Maria João Costa Pereira

Anastasia Kraineva



domingo, 28 de julho de 2013

Rubem Braga

A Palavra

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de vi­ver em voz alta.
As vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento — e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pe­quena frase melódica de Beethoven — e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído — talvez palavras de algum poeta antigo — foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

Novembro, 1959

In 200 Crônicas escolhidas, Rio de Janeiro: Ed. Record, 35a. ed., 2013, p. 377


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Ruy Belo

A MÃO NO ARADO
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
e equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

("O Problema da Habitação - Alguns Aspectos") - 1962



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Isabel Mendes Ferreira

era da alma. sim. estilhaços, era da paisagem caída sobre os acordes da noite, cálida. calada, de poeiras e relâmpagos em extinção, porém fecundos ainda, como silêncio ambarino nos teus ombros, redondos, estilhaços, sim. de um dezembro que a morte fez de todos os dias o mesmo dia. mesmo depois de mim. rasa na tua sepultura de ervas e cardos. estilhaços sim. refracções isoladas de tempo e som. e a vida é só este instante, de estilhaços sim. “as obras primas são sempre escritas numa espécie de língua estrangeira”.

voilá la vie. la nuit. estilhaços, oui. sim. línguas de aço. doença sem frêmito, devagar, só espaço, praia sem ondas, rebentação fria. sono­lenta no horizonte, cada vez mais perto, na constante matéria do pre­cário. rígido, hirto. um devir-anjo felino, a irromper-me a garganta, inchada, de sílabas, de papel, ardido, ardente, rumor parasita de uma ausência musculada. on est ce quon pense? já não me penso, arrefece a respiração, medo estreito, ponte alargada de certezas, rios árabes a serem pedras líquidas no deserto enquanto me visto de areia, ou de sombra, cada vez mais perto, perto, perto, estilhaços, sim. agora, incêndio, sem sentido, de olhos abertos, a devorar dezembro, que atento e vingativo me espera e abraça, perto, muito perto, viagem, certa, e a casa é uma estátua, presença de nuvem tumular. on devient noir sur le corp et on se quitte.. .em estilhaços, reveladora a ausência de luz. e de dezembro é o pulso. decepado. é bom não escrever. des. ser. aberto o olhar em estilhaços. arrepio.
alma tensa e húmida de terra e de sal. como ser interior sendo corpo e planta silente? 

In As Lágrimas Estão Todas Na Garganta do Mar, Lisboa: Arcádia, 2010, pp. 358-359.

Amadeo de Souza-Cardoso

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Carlos Drummond de Andrade

A PERFEITA SABEDORIA
A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.
Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na su­perfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas pá­ginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de inter­pretação.
Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por al­guém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.
Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu. O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.
O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os esti­lhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a per­feita sabedoria. Nunca mais foi feliz.
(Contos Plausíveis)

In POESIA E PROSA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1992, p. 1243.

REGINA SCHWINGEL

terça-feira, 23 de julho de 2013

Adélia Prado

Glória e Gabriel passeavam em Belo Horizonte quando viram o mendigo se arrastando sobre as nádegas. Haviam acabado de almoçar. O homem certamente espirrara, um grosso canudo de ma­téria — catarro, ela se obrigou a dizer mentalmen­te — tremulava sobre seu bigode. Gabriel disse apenas: — Ih! Glória, incapaz de viver levemente, quis olhar de novo. Instintivamente passou o len­ço no seu próprio nariz, certificando-se estar seca e limpa. Tempos atrás vomitaria até exaurir-se, por dias e dias não comeria nada, imaginando contra si o frio pegajoso da coisa, sessões de tor­tura, onde fosse obrigada a manipulá-la, o reino do céu concedido a troco do sacrifício máximo: tocar a coisa com a língua. A repugnância abso­luta como quando via minhocas depois das chu­vas, quanto menores e mais finas, pior. O terreno úmido no quintal, tio Joaquim cavando iscas, as minhocas em suas colônias, seus ovos branquinhos, horror! Desejo de que o sol esturricasse aquilo, enjôo de comida, pensamento inventando minúcias que faziam seu estômago revirar-se. O avô apertava uma narina no meio do terreiro e assoava-se. Pulava no chão a coisa esverdeada, grande, dura, como aquelas orelhas que brotam nos paus podres. Difícil imaginar aquilo cabendo numa fossa nasal. As galinhas corriam disputando a prenda, ele falava: “Ê sinusite, é isso que me incomoda.” Todos repugnavam mas ninguém co­metia o desrespeito de dizer nada a ele. Glória disfarçava, espantava as galinhas e varria a coisa, cobria-a com um monte de terra e lavava, lavava as mãos, escovava bem os dentes, penteava e amarrava o cabelo, pegava o ferrinho que o pai fez pra aquele fim e ia pra privada limpar o vaso de barro encaixado no cimento. Raspava as cros­tas, jogava latas e latas dágua. A vida parecendo resumir-se em excrementos, odores, consistência e aspectos de matérias nojentas. O que era aquilo? ela a ponto de adoecer, pensando coisas absur­das: o corpo de Deus que a gente come, também ele uma gruta de dejetos? Uma ocasião depois das chuvas o tampo da fossa afundou. A mãe le­vantou pra fazer café deu com a cratera, os paus que a protegiam apodrecidos, alguns caídos no buraco desbarrancado, a massa da coisa exposta. O pai não foi pra oficina aquele dia pra fazer o conserto. Desceu ele mesmo o buraco horrível e cavou, limpou, calçou, arrumou dormentes novos sobre o vão. Glória admiradíssima daquilo, cora­joso como entrar na cova dos leões, igual como Laocoonte entre as cobras no seu livro de história. A mãe porque estava com dó do pai fez arroz- doce. Ele gracejava. Depois tomou banho bem tomado, passou álcool e creolina nas mãos, cortou as unhas dizendo: “Sou o mesmo, limpinho, lim­pinho.” Glória não entendia, invejava o pai, sua inacreditável saúde. Só uma vez o vira não comer. Chegou em casa pálido, engasgado: “A máquina acabou de cortar no meio um companheiro meu.” “O senhor viu, pai?” “Vi, o meninozinho dele as­sistiu tudo, segurando a marmita, morreu sem al­moço, o coitado, me pedindo: acaba de me ma­tar...” “acaba de me matar...” “Morreu sem almoço...” Comer era importante demais... Choraram com ele, as panelas no fogão parecendo pessoas intrometidas que a gente manda calar, pretas, murchas, pobres. Se Stella estivesse ali seria como seu pai, teria coragem de se acercar do mendigo, emprestar seu lenço, limpar seu bi­gode sujo — São Francisco de Assis e o beijo no leproso. — A dois passos de onde se encontrava esperando Gabriel que entrara num banco, Gló­ria viu a mulher tirar do saquinho plástico uma colher de massa escura e comer. Três novos men­digos se acercaram, ela pôs na mão de cada um. Quem comeu por último foi um passante, um moço negro. Sem dizer palavra, parou, estendeu a mão, comeu e seguiu. A mulher guardou o res­to. Vamos, disse Gabriel, já resolvi o que queria.  Vamos passar por ali, pediu Glória, com intuito de se purgar, olhar de frente o mendigo. Ele se limpara, o que lhe deu alívio. Estava longe da inocência de sua infância quando desejava resol­ver o problema dos pobres com uma praça bem grande cheia de tanques, bucha e sabão. Agora, bem sabia o que deveria fazer.

In Cacos para um Vitral, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980,  pp. 89-92.







segunda-feira, 22 de julho de 2013

Olga Savary

Tango de Partida
Choro na Calle Corrientes, 
eu que há anos não choro, 
choro no bar, no café 
(óculos escuros disfarçam), 
no mais total desconsolo 
por não querer te deixar. 
Choro enfim no aliscafo 
de Buenos Aires a Colônia, 
senhora do Rio da Prata, 
por uma hora seguida 
até não te ver mais, cidade.

Cidade-meu-amor, não quero 
não quero mais ir embora, 
o meu lugar é aqui 
entre o gelo aparente
e o perigo à espreita 
dos tigres que não se vê.

In Repertório Selvagem, Obra Reunida, Rio de Janeiro: MultiMais editorial, 1998, p. 270


Brent Jensen


domingo, 21 de julho de 2013

Miguel Torga

À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem família, 
Nem te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos, 
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

Es a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim! És o teu nome!
Um milagre, uma luz, uma harmonia, 
Uma linha sem traço...

Mas sem corpo, sem pátria e sem família, 
Tudo repousa em paz no teu regaço!

In Odes (1946), In Poesia Completa, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 231

Amedeo Modigliani


sábado, 20 de julho de 2013

Emily Dickinson

Eu que não sei pintar um quadro 
Prefiro - tão somente - 
Captar o brilho do impossível 
E me quedar - contente - 
A imaginar que mão tão rara 
E excelsa - evocaria 
Uma Aflição tão agradável - 
Suntuosa - Agonia -

Não sei falar como uma Flauta - 
Queria então somente 
Alçar-me fora nas Alturas 
E aí - suavemente - 
Atravessando Etéreas Vilas 
Balão em festa iria 
E num só Fio a sustentar-me 
A Nave ancoraria -

Como também não sou Poeta - 
Melhor será somente 
À Aptidão render o Ouvido - 
Frágil - dada - carente - 
Que tão sublime privilégio 
Nem há quem me daria 
De desatar com minha Arte 
Clarões de Melodia!

In A branca voz da solidão, tradução de José Lira, São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 219.

Élisabeth Vigée-Lebrun

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Olga Savary

Gazel I
De amor, criei (incriado) 
este jardim secreto 
de rosas fechadas em seu tédio 
e espero
aquele que virá e há de decifrar 
hieróglifos de ternura desenhados 
pela lua em meu corpo - seu legado.

O amado pedirá em minha boca 
o segredo desvendado a todas as perguntas. 
Eu lhe responderei sem palavras 
mas com o perigoso silêncio parecido 
ao rumor da água caindo
sem cessar.

Belém, julho 1953

Gazel II
Chamo-te-, Amado 
com voz abstrata
alongada no jardim onde me esqueço 
sob a lua porque verta em minha forma 
o sortilégio dessa cor fantástica 
com que esperar-te.

Chegas e há fugas 
de sombras e silêncios eleitos 
para teu alto redor.

Vais: foge contigo 
o vento levando os últimos sons 
de folhas machucadas e na relva 
meu corpo ainda
iluminado.


Belém, julho 1953

Sobre Olga Savary

In Repertório Selvagem, Obra Reunida, Rio de Janeiro: MultiMais editorial, 1998, p. 34-35

Alba Lavermicocca

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Alberto Pucheu

VALE DO SOCAVÃO
No plano da montanha ensolarada, 
vario entre o livro e a paisagem.
Os gaviões retomam pelas manhãs há mais de 40 dias. 
Não sei o que querem: 
a companhia de quem há meses 
não pronuncia uma palavra? 
a companhia de quem caminha pelas trilhas 
como gavião voando pelos ares? Não.
Eles reparam em minha presença apenas para se 
recolherem, esquivos, na altivez - alheios a nada.
Deixo restos de frango assado no tronco próximo à casa. 
Comem-nos.
O vento bate em meu rosto,
em minhas costas nuas e friorentas apesar do sol.
Vejo a clareza límpida do dia, 
sabendo que sou outro, além do olhar.
Algo se move em mim, impossível de ser visto.
Algo se move em mim, impossível de ser escutado, 
cheirado, tocado, degustado... algo se move em mim, 
para o qual as palavras não se dispõem 
mas obrigam-me a dizê-lo, após meses de indiferença 
e mutismo. Tudo em mim, agora, é combustível: 
difícil ficar ileso aos verdes da manhã, 
ao trabalho diário, aos acontecimentos que, 
mesmo corriqueiros, me contaminam.
Não há mais ninguém por aqui, 
e minha existência é viável.

In Inquietação-Guia - 15 Poetas em torno da Azougue, Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2009, p. 23



Arkhip Kuindzhi




quarta-feira, 17 de julho de 2013

Else Lasker-Schüler

DAVID E JÔNATAS*
Na Bíblia estamos escritos 
Num abraço de cores vivas.

Mas os nossos jogos de meninos estão 
Vivos também na nossa estrela.

Eu sou David,
Tu, o meu companheiro de brinquedos.

Ah, os dois tingíamos de vermelho 
Os nossos corações brancos de carneiro!

Como as flores em botão nos salmos do amor 
Sob o céu de um dia de festa.

Mas os teus olhos de despedida, os teus olhos — 
Estás sempre a despedir-te no silêncio do beijo.

E o teu coração, que fará 
Ainda sem o meu?

A tua noite doce 
Sem as minhas canções?

* I Samuel, 18.

[In Baladas Hebraicas, tradução e apresentação de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 69].

NO PRINCÍPIO
Suspensa de uma nuvem de ouro de primavera, 
Quando o mundo era ainda uma criança 
E Deus ainda tão jovem, e já pai.
Baloiçava, e ai!
Pelo éter ela vai,
Os cabelos de lã brilhando em rodopio.
Brincava com o trôpego avô-sol,
Depenicava prata da mãe-lua,
Tranquei Satanás lá no céu 
E Deus no inferno fumegante.
E eles ameaçavam-me com o dedo maior,
E davam murros na porta: Bum, bum!
E as chicotadas dos ventos sibilavam;
Mas depois Deus, com o diabo, deu duas gargalhadas 
Trovejantes, rindo do meu pecado mortal.
Daria a 10000 na terra felicidade 
Para voltar a viver nascida assim de Deus,
Assim a salvo em Deus, assim sem véus.
Assim,
Como quando era ainda a menina traquinas de Deus!

[In Baladas Hebraicas, tradução e apresentação de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 91].




terça-feira, 16 de julho de 2013

Marina Tsvétaïeva

DO CICLO "INSÔNIA"
“Gosto de beijar”

Gosto de beijar 
As mãos, e gosto 
De semear os nomes,
E ainda - escancarar 
As portas!
- Abertas - na noite escura!

Apertando a testa,
Escutar como o passo grave 
Se torna leve,
Como o vento embala 
A floresta insone 
Que quer dormir.

Ah, noite!
Algures correm riachos. 
Estou com sono.
Durmo, eu acho.
Algures, na noite,
Alguém se afoga.


27 de maio de 1916

In Indícios Flutuantes, trad. de Aurora F. Bernardini, São Paulo, Martins Fontes, 2006,  p. 19.

Summer Night
Edvard Munch

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Hélia Correia

Quatro poemas de Hélia Correia

1.
Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;


2.
Essa beleza que era também espanto
Pelo dom da palavra e pelo seu uso
Que erguia e abatia, levantava
E abatia outra vez, deixando sempre
Um rasto extraordinário. Sim, a hora,
Dois séculos antes, em que uma ausência
E o seu grande silêncio cintilaram
Sobre a mão do poeta, em despedida.


7.
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.


23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.


[in A Terceira Miséria, Relógio d'Água, 2012]

Fonte: Bibliotecário de Babel 

Sobre Hélia Correia 



domingo, 14 de julho de 2013

Mariana Ianelli

NINGUÉM MAIS SENÃO EU COMIGO NO ESCURO

O quarto feito um lago sem fundo e o corpo ali mergulhado, esperando o sono. Nesta hora do ninguém mais senão eu comigo no escuro, vai-se embora a pose de garça, o extenso currículo, a questão da honra. E quando tudo se aclara e as partes da bilha quebrada se encaixam.

Os dias voltam, tantas coisas voltam, o que nem sabíamos ter salvado aqui dentro, o repique de um sino e um estrondo de portas, em algum lugar daquela casa uma briga mal contida explodindo em sussurros, mas por que lembrar disso agora, dos móveis arrastados na enchente, das paredes cobertas de lama, de repente a prancheta branca onde o primeiro poema e uma gata siamesa debaixo do  calor da lâmpada, tudo isso que vem num instante, e que já foi o pio de cada dia, durante anos e anos, agora é só uma aguada no tempo, um chumaço de nuvens desenhando formas, agora um lustre japonês, agora uma orquídea, agora uma salamandra, todas essas coisas que voltam misturadas, mas cada uma perfeitamente clara, inexplicavelmente viva, perto de ser tocada, nesta hora do corpo caído no escuro, ao comprido na cama, esperando o sono, nesta vigília do terceiro olho, este olho que se abre com perícia de lobo, que se abre e vai à caça de todas essas coisas, é então que lá de dentro vem o relâmpago, mas como foi que não vi isso antes, quanto descaso, quanta ansiedade inútil, ou será que vi e desprezei, pois também isso pode acontecer nesta hora, debulhar o terço do guardai-me em vosso nome, escutai-me, dai-me forças, minha rocha e meu refúgio.

Sabe-se lá quanto tempo dura essa hora que não tem fundo para um corpo estendido que não está morto, que tem visões que não são as de um sonho, quando tudo fica tão nítido que mal chega o dia seguinte e já não lembramos que sabemos tanto.

(Publicada em 05/02/2011)

In Breves Anotações sobre um Tigre, ilustrações de Alfredo Aquino, Porto Alegre: Ardotempo, 2013, p. 59

Alfredo Aquino

sábado, 13 de julho de 2013

Carlos Drummond de Andrade

ODISSEIA


O Amor foi à função, bebeu, cantou e bailou, estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse. No seguinte o amor cantou e bailou sem beber, e era sempre primavera nos seus  modos e falas. O amor viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça. Todos o queriam para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas que ele não apanhava, gerânios que ele oferecia às crianças e às mulheres. O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava. Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-no, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram. O amor caiu lá embaixo aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe  choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria  e quando não  podia mais sorrir gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida. E desfalecendo voltava à consciência, e torturado outra vez,  era como se não fosse com ele. Quebraram o amor em mil partículas e ninguém pôde ver as partículas. Foi sepultado normalmente no fim  do mundo, que é para lá da memória. Ninguém o localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou ao terceiro dia.
(Contos Plausíveis)

In POESIA E PROSA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1992, p. 1285


sexta-feira, 12 de julho de 2013

Paulo José Miranda

A natureza das coisas
Todas as viagens são negócios 
e os hotéis reservam-nos o direito 
de não encontrarmos diferenças.
Como os amantes da mulher de outro, 
mantêm-se os gestos familiares 
no servir das bebidas

e nas vestes que se usa.
A volta havia mar 
e isso, sim, 
diferia da cidade

de onde se vinha, 
com um rio e um oceano.
No interior dos viajantes 
habitavam versos, 
frases que mentiram acerca de um sentimento

que o seu país não tem, 
acerca da linguagem, 
do existente desprezo pelo rigor, 
de uma identidade encontrada 
além ou aquém do que se é.

Era o início ou o fim 
do Mediterrâneo,
uma ilha onde o mundo 
já vivera tudo e partiu, 
e ninguém esperaria o contrário, 
ninguém esperaria ficar 
para o sempre de uma vida 
no corpo da amante.
Não é a natureza humana,

é a natureza das coisas, 
o absoluto com que se compreende 
o passado e os gestos, 
como os que ruborescem o rosto 
onde a mulher deseja.
E também há noite,

no hotel e em redor dele.
Tudo como o que havia 
e o que já houvera, 
tudo, sem que se pudesse

invocar o nada,
por mais evidências que as horas 
se esforcem por mostrar.
O marido, fatigado e bêbado, 
recolhe ao quarto.
Ao acaso abriu um livro

que nunca vira, 
que nunca iria ler, 
como uma mulher bela
com quem um homem se cruza na rua, 
para nunca mais senão possibilidades 
O outro viajante entreter-lhe-á

a mulher, a vida.
Entreter-lhe-á 
o próprio inexistente nada, 
como uma visita ao forte da ilha 
ou a falta de rigor na linguagem.

(O Tabaco de Deus, Edições Cotovia: Lisboa, 2002, pp. 27-29)


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Isabel Mendes Ferreira

acordo atravessado ao lado de ninguém sem saber o dia o que é o jantar e digo bom dia ao estranho que se corta a fazer a barba dedilho um até já e não há água oxigenada, falta-me a raquel o urso as fraldas o cheiro do talco o passeio na areia o carro com estrelitas de choco­late o choro da noite, e choro, porque é tudo novo. tudo frio. deitei fora a aliança, estou só. visto-me a correr, tenho uma reunião, trago o coração à vista, invisto num piano. Mozart fica bem no meu peito lacrimoso, vou a enterrar, escrevo um verso sem sentido, sentido, penso na geometria absurda dos meus telhados infantis, saudades do vento, sou arquitecto de um abismo que não domino, solteiro de novo. e não sei o que faço sábado à tarde. estou perdido, lanço-me ao rio. é a ana a paula a helena, estou magro aos pedaços aos saltos, devoro os jornais, descasco laranjas, amargo-me. pronto, ele aí está. um divórcio delgado preso por fitas de cetim, tu ficas com os móveis eu levo os discos tu guardas o sorriso eu aparo o corpo, levo a carne, deixo-te o verbo, liberto-te de nós. prendi a sombra.
perdi o passado, sou um fogo sem lume. e ardo. despojada.

In As Lágrimas Estão Todas Na Garganta do Mar, Lisboa: Arcádia, 2010, pp. 322.




Paula Rego

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Antonio Gamoneda

CONSISTÊNCIA de fogo
rodeada de pranto.

O que primeiro se ama
são os olhos: incidem
sua luz na existência
reunida olhando-se.

Mas a luz
é causa mortal. Ferido
de transparência, meu
coração se oculta na beleza.

ooo000ooo

EXISTIAM tuas mãos.

Um dia o mundo ficou em silêncio;
as árvores, acima, eram profundas e majestosas,
e nós sentimos sob nossa pele
o movimento da terra.

Tuas mãos foram suaves nas minhas
E eu senti a gravidade e a luz
E que vivias em meu coração.

Tudo era verdade sob as árvores,
tudo era verdade. Eu compreendia
todas as coisas como se compreende
um fruto com a boca, uma luz com os olhos.

ooo000ooo

BUSCO tua pele inconfessável, tua pele ungida pela tristeza das serpentes; distingo teus assuntos invisíveis, o rastro frio do coração.

Havia visto tua fita ensanguentada, teu choro entre cristais e não tua chaga amarela,

mas meu sonho vive embaixo de tuas pálpebras.

Tradução: Thiago Ponce de Moraes





terça-feira, 9 de julho de 2013

Astrid Cabral

THE HOLLOW MEN
A Lélia Coelho Frota

Não queriam a vida.
Bastava-lhes a imagem. 
Alérgicos a horizontes 
não chegavam à janela.
Só miravam a paisagem 
por entre câmaras e lentes 
cumprindo programas 
de turísticas viagens.
Nem poentes nem montes 
nem sorrisos nem olhares 
confiavam à memória. 
Queriam fotos nos álbuns 
e carrosséis de slides.
À noite, cegos, não viam 
o rastro do dia nos rostos 
em torno e, lábios de pedra, 
não riscavam a faísca 
do diálogo nem o fogo 
generoso do convívio. 
Preferiam o amor da novela. 
Dissolvidos em poltronas 
em frente à tela acesa 
acordados dormiam 
despidos de si mesmos.

[In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 278]


PABLO PICASSO

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ruy Espinheira Filho

APOLO
Não nos surgiste como aos argonautas
quando
fizeste tremer a ilha
sob teus passos
e então te ergueste estendendo nas nuvens
os cabelos de ouro.
Mas senti que estavas
por todo o dia
acompanhando-nos na visita
às formas magníficas
que há milênios foram erguidas
nas alturas
em teu louvor.

Obrigado.
Embora não tenhamos te ofertado presentes,
como Midas, rei da Frigia,
que te enviou seu trono real,
ou Giges, da Lidia,
antepassado de Creso,
que te saudou com crateras de ouro
e incontáveis ex-votos
de ouro e prata,
nunca mais seremos os mesmos,
pois que respiramos a fímbria a brisa
tocada pelo hálito de teus solenes ciprestes
de folhas verdes
pedras
e unção.



domingo, 7 de julho de 2013

Herberto Helder

Tríptico

I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado

silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.

(in Ofício Cantante)


Vincent Van Gogh



sábado, 6 de julho de 2013

Antonio Carlos Villaça

Fui para Belo Horizonte de avião. 
Viagem tranquila por fora e tão agitada por dentro. 
Quem era eu, exatamente? 
Que destino seria o meu? 
Que me esperava, lá e depois? 
Valeria a pena viver?
Qual a significação real e última da vida humana? 
Que é que eu devia ser? 
Que é que eu seria? 
Que é que era? 
Não era nada. Tinha vinte e cinco anos. 
Não era nada. Nada. Nada. 
Um intelectual sem obra, um vazio, 
um incapaz de criar, 
um artista sem destino, 
perplexidade.
O avião sobrevoa as meigas serras. 
São meigas de longe. 
De perto, são ásperas. 
Eu olhava com olhinhos compridos 
o mundo lá embaixo, os verdes, 
matizes tão estranhos e diversos, 
os rios, a vida terrestre, o doce reino da terra, 
(...)

 Em mim, os ventos contraditórios 
semeavam a melancolia do exílio, 
e eu suspirava com saudades 
de um eu imaginário. 
Pensava em mim, meu destino, 
a curva de minha vida, 
a estranha parábola, 
que se ia tecendo devagarinho, 
sem que eu pudesse 
ou soubesse alterar- lhe o curso. 
Mas... em que direção, precisamente?
Voávamos para a cidade de Belo Horizonte, 
aeroporto de Pampulha. 
E eu, para onde voava eu, 
dentro da nave, do peixe alado 
a romper o céu, 
a cortar o fofo tecido das nuvens?
“A garupa da vaca era palustre e bela"... 
Palustre e bela. 
Bonito: a surpresa de unir bela e palustre. 
O inesperado: palustre e bela. 
Uma garupa de vaca. 
Você quer a vida medíocre? 
Vida medíocre, vida medíocre. 
Você quer a mediocridade? 
Você quer ser medíocre? 
Não quero a vida medíocre. 
Eu odeio os hábitos medíocres. 
Eu odeio conversa medíocre. 
Não quero a vida medíocre. 
Quero outra coisa, quero partir. 

Eu tenho vontade de partir. 
Eu sempre tive uma vontade de partir... 
Como eu gosto de andar de avião!... 
A gente parte o tempo todo, no avião. 
Em viagem de avião, 
a gente só chega quando chega mesmo: 
antes de chegar não chega... 
De navio — não sei, nunca viajei de navio. 
1967 — agora, já viajei. — 
a gente deve chegar sempre uma hora, 
ou duas, depois que parte, 
a gente chega logo que parte. 
A gente não parte durante a viagem toda, 
porque navio é estável, segurinho. 
Avião voa. 
Avião é partida sempre. 
Avião é pássaro e pássaro parte, 
pássaro não fica, flutua. 
Meu destino flutua. 

Eu quero partir, sempre quero partir. 
Eu nunca chego. 
Vida medíocre. 
(...)
Mas o que é que é ser medíocre? 
É ficar. 
É chegar e não partir. 
Toda estabilidade é medíocre. 
Toda fixação é medíocre. 
Só a partida não é medíocre. 
Todo compromisso esvazia. 
Só a aventura é casta. 
Não quero a rotina. 
Só quero o voo. 
Vida medíocre,
vida medíocre. 
O homem é uma paixão inútil. 
(...)

 Nuvens. Nuvem é ? 
Ficar... O que é ficar? 
Imortalidade, até quando? 
Tudo é provisório. 
O homem é uma paixão inútil. 
A história de toda vida é a história de um malogro. 
Tenho vontade de partir, sempre. 
Eu sempre quis partir. 
Fuga, fuga, fuga. 
Avião. Evasão. Tensão. Pressão. 
 Vontade de partir. 
Não quero cintos. 
Perdi a chave, para sempre. 
Serei sempre um homem sem chave, 
sem chaves e sem cinto, 
voando nas brancas nuvens.

... “e não sejamos fúnebres e espessos, 
sejamos gaios, todavia leves"...

Partir, mesmo quando se chega. 
Eu perdi a chave. Agora, vou para o hotel. 
Eu gosto de hotel. 
Quanto mais desconhecido, melhor. 
Amo as cidades desconhecidas. 
Não sei de exercício melhor 
do que descobrir uma cidade. 
Onde é a casa de Emílio Moura? 
Vou espiar as paredes que guardam Emílio Moura. 
E seu espelho.
 Onde, a de Henriqueta Lisboa, 
a da face lívida? 
Caminho na noite. 
Escuto os ruídos da noite.
Ruas recolhidas. 
(...)

 Eu, caminhante, sem chave e sem fé. 
A chave ficou na portaria do hotel...
Os homens são felizes em suas casas? 
 Haverá apenas uma ilusão? 
Ó caminhante sombrio e só!
Sempre sentiste o efêmero de tudo. 
Nunca pousaste, nem repousaste em nada. 
Nunca tiveste sossego. 
Foste sempre um peregrino em perigo. 
Vê, são as casas dos homens: 
estão dormindo, ou jogando, ou discutindo, 
ou simplesmente conversando...
(...)

Estão na sala ou no quarto, 
lendo ou amando, 
ou contando o seu dinheiro sob a luz esquiva,
escassa, que parcamente escoa de uma lâmpada 
frágil de abajur. 
São os homens, teus semelhantes, teus irmãos.
 Estão em casa, estão parados na noite. 
Aí estão, os homens. 
Suas casas começam a apagar-se, 
mergulham aos poucos na treva, 
o silêncio desce e envolve 
as casas tranquilas dos homens. 
Eles vão dormir, fatigados, em suas camas. 

Os cérebros estão cheios de vida vivida, 
e enquanto os homens dormem 
deitados em seus leitos limpos, 
no escuro, 
abraçados às suas castas mulheres,
ou solitários, 
a vida borbulha neles, 
os micróbios caminham dentro deles, 
invadem, conquistam, desfiguram,
constroem neles a morte. 

É de noite que se constrói o reino da morte nos homens. 
De dia, os homens se defendem. 
Mas a noite é propícia à morte. 
Os homens felizes estão morrendo devagar, 
em suas camas, onde um dia morrerão de todo e de súbito, 
envoltos num silêncio mais espesso do que este, 
da noite. 
Adeus, mundo. 
Adeus, amor. 
Adeus, infância. 
Adeus, morte...

(In O Nariz do Morto, Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1975, 2a. ed., pp. 182-185)

Obs.: Texto original em prosa.
Georges Braque

William Blake

O Tigre
Tigre, tigre, flamante fulgor 
Nas florestas de denso negror,
Que olho imortal, que mão poderia 
Te moldar a feroz simetria?

Em que altura ou abismo sem par 
Ardeu o fogo de teu olhar?
Com quais asas sobe ele ao que clama? 
Quais as mãos que seguram a chama? 

Qual ombro poderia, ou qual arte,
Essas fibras do peito forjar-te?
E, ao pulsar desse teu coração,
Que pés horrendos, que horrenda mão?

Qual o martelo? Qual a corrente?
Que fornalha fundiu tua mente?
Qual a bigorna? Os punhos são quais, 
Que atenazam terrores mortais?

Quando os astros, inermes de espanto, 
Salpicaram os céus com seu pranto,
Por acaso sorriu teu obreiro?
Quem te fez, fez também o Cordeiro?

Tigre, tigre, flamante fulgor 
Nas florestas de denso negror,
Que olho imortal, que mão ousaria 
Te moldar a feroz simetria?

In William Blake, Poesia e Prosa Selecionadas, trad. Paulo Vizioli, São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 1993, p. 55

Sobre William Blake

John Frederick Lewis


Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...