sábado, 31 de agosto de 2019

Amrita Pritam

MEU ENDEREÇO

Hoje apaguei o número da minha casa
e o nome da rua onde vivo.
troquei a direção de todos os caminhos.
agora, se quiser me encontrar
bata em qualquer porta de qualquer rua
em qualquer cidade de qualquer parte do mundo.
esta maldição, esta bênção:
onde quer que encontre a liberdade,
ali tenho minha morada.

Tradução de Lubi Prates

Sobre a autora

Leonardo Almeida Filho

COPACABANA

Ninguém há de viver seu sonho ou seu pesadelo
ninguém vai dormir por você
nem há se sonhar sua dor, viver seu desespero
ninguém vai gozar por você
Viver não tem drama.

Há solidão nos velhos que cruzam a rua 
quase a se arrastarem
Há solidão naquele silêncio profundo
que seus olhos trazem
A solidão: companheira fiel do seu jantar.
(Letra de um samba publicada numa antiga crônica nomeada "Tipos de Copacabana - As plantinhas tristes")

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Leonardo Almeida Filho

NESSAS MANHÃS DE VENTO

Saiba - disse-me o sem-voz - nem tudo é mansidão.
Quando olhares para a boca de um homem velho,
pensa quantos lábios deve ter tocado,
quantas línguas sugado,
quantos sabores provado.
Pensa nos dentes dessa boca de homem velho:
Quanto terá mastigado?
Que carnes, que frutos triturado?
Que mamilos e tetas mordiscado?

Quando fitares a boca de um homem velho,
pensa, jovem leitor, na senectude daquela língua
e nas ordens que terá decretado.
Quantas palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que nãos... a quantos ferido?
Que sins... a quantos acariciado?
Pensa nos verbos no imperativo,
nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos,
nos silêncios engolidos e gritos vomitados.
Quando cravares teu olhar na boca de um homem velho,
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em linho gris,
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos viçosos,
[imprecisos,
em campos da alma fértil e fresca
banhados por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar.
Pensa no hálito-brisa que então partia,
dobrando as flores da vida desejada,
anunciando a chuva definitiva
que levaria a alma-seiva para outras safras.

Quando olhares a boca de um homem velho
e dela ouvires “Filho, o que te aflige?"
Responde, com calma, que teu olhar investiga
o tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se ela tornar a perguntar a ti,
na teimosia típica de um velho,
“Filho, o que te assusta?"
Olha firme para aquela boca, sem medo,
e não deixe que perceba
que nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os fiapos de carne presos naquelas presas.
Beija aquela boca, filho,
é a tua boca repousando no amanhã.

SOL E ESCURIDÃO

Para Ana C. e os suicidas de Copacabana 

Deve ser assim:
quando se salta do décimo segundo andar
não se enxerga o sol
o mundo é negro como o asfalto
que o acolhe num violento abraço
seu aconchego, seu remanso
a rigidez do meio-fio
a sujeira da calçada em obras
um dente ensaguentado na sarjeta

Um céu sem nuvens, azul, despido,
o sol brilhando nas peles oleosas de Copacabana
e Nossa Senhora recolhendo os pedaços
do suicida em sua avenida
Alguns velhos anseiam o sol
por um pouco mais de vida
Deve mesmo ser assim:
Quando se salta do décimo segundo andar
não há outro anseio
que não o brilho da escuridão.

CARTA DE INTENÇÃO

quandeu crescer
vou ser rimbaud-menino-mau
de cueca suja e cara iluminada
dentes sujos da carne do poema
Talvez escreva Cantos
prometo: pecarei na tua lápide
um pouco de Edgar, outro de Álvares
um tanto de Bandeira, outro de Andrades

quandeu morrer, que seja leve
o anjo que virá chamar meu nome
na lista em sua palma desenhada
e que eu, ainda lúcido, questione
a cor das asas e da hora-madrugada.

(In Babelical, Ed. Patuá, SP, 2018)

Foto by Gregory Colbert























Leonardo Almeida Filho é professor universitário, escritor, ensaísta e mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília. Publicou sua tese, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito, pela Editora da UnB, em 2008, e também, O livro de Loraine (romance, 1998) e Logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008). Possui contos e poesias nas coletâneas Antologia do Conto Brasiliense (2004), Todas as gerações (2007) e Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); e Poemas para Brasília (2004). Em 2010, pela Editora Hinterlândia, publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem; e em 2014, pela editora E-galaxia, o volume de contos Nebulosa fauna & outras histórias perversas. Em 2018, lançou o volume de poesias Babelical, e em 2019 o romance Nessa boca que te beija, ambos pela Editora Patuá. Email: leo.almeidafilho@gmail.com

(Dados retirados do blog Ruído Manifesto)


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

REMAKE 

As coisas acontecem e se repetem
com insistência e violência circular
Não há comemoração para membros
serrados e para os ossos reunidos a fios
de medula e horror ao fim de cada dia
Tudo é repetição, todas as tramas
brilham iridescentes e entrelaçadas
sobre a cidade, flores, remédios
e hemorragias, esperando que alguém
toque a teia e nos leve o roteiro, sem direito
de escolha, cheios de esperança e medo
da roleta-russa e até da relva, a relva
que somos, a mesma que ontem brilhava
sob o ridículo orvalho e hoje agoniza
pelo gesto gratuito e assassino de um raio
seco que a incendeia e destrói
Sabemos e negaremos e negaremos
essas histórias, todos prisioneiros
de diferentes crimes iguais, atenuantes
e liberdades provisórias, indultos
Sim, temos princípios, fugidios meios
Somos aprendizes do fim

(In Fundamentos de Ventilação e Apneia, Patuá, 2019)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Murilo Mendes

MURILO MENDES

O FILHO DO SÉCULO

Nunca mais andarei de bicicleta
Nem conversarei no portão
Com meninas de cabelos cacheados
Adeus valsa "Danúbio Azul"
Adeus tardes preguiçosas
Adeus cheiros do mundo sambas
Adeus puro amor
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem
Não tenho forças para gritar um grande grito
Cairei no chão do século vinte
Aguardem-me lá fora
As multidões famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos
É a hora das barricadas
É a hora da fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingança
Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos,
Misérias de todos os países uni-vos
Fogem a galope os anjos-aviões
Carregando o cálice da esperança
Tempo espaço firmes porque me abandonastes.

(Em O Visionário, 1941)

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...