terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Dora Ferreira da Silva

ÁRTEMIS

Entre espadas cruzadas de verdes ramas
a nenhum olhar doada, senão às claras pupilas que a
[circundam,
o fogo branco do corpo queima feixes de água
e à seta mais ligeira precede,
desferida num voo mais secreto.

Cantam ursinhas no lago
ao som da harpa que o vento cego estende
à ninfa. Em vagas se distende a música.
Rolam pérolas nas frontes, em fios de úmidos
vapores. E não seria o som — nem mesmo o sopro
mais ligeiro —

companheiro da nudez velada,
se pousasse o vento aedo as fortes mãos
na harpa atirada ao colo de Cirene, a clara.

AFRODITE

Disse a deusa a sorrir:
esta manhã o mar deu-me adereços
e vestida de pérolas
fui a um reino distante.
Cânticos despertaram vides
e frutos nasceram, que o sol
cultiva nos pomares.
Coros adolescentes perseguiam Eros
— o coroado de pâmpanos —
pois de meus lábios haviam provado
o vinho farto e suave.

Liames atando e desatando,
ele a beleza ocultava nas angras mais profundas,
pois quando emergia — flâmeo! —
o murmúrio do mar as praias inundava
e a embriaguez vizinha da morte
ameaçava os amantes... 

O DEUS QUE VEM

Frêmito no alto céu,
morde Scorpio a Virgo escura.
Este o sinal de que se deve cantar os tempos
de juvenil tropel. Estua o vinho na uva por nascer
e a terra nas grotas úmidas de lágrimas fecha a boca.
A Lua espreita, enquanto dorme o Sol do liso flanco
de ouro. Acordêmo-lo e em procissão subamos
aos lugares altos. A noite é propícia para o germinar,
para o borbulhar de risos líquidos.
Lamenta a Virgem de verde sua casta solidão.

Ei-lo que desponta ao longe, nas dobras do mar:
no topo de um penhasco, grava-o a águia em sua
[pupila.
É o deus que vem, há um frêmito no alto céu
enquanto se une ao Sol a Lua desnudada,
submersos nos remoinhos das águas do dia por nascer.
Frutos brilharão nos campos e os celeiros não bastarão 
para conter tantas espigas. O Novo Tempo vem,
[circundando
bosques, alvas colunas e imagens se dissolvem para
[que tudo
reverdeça: beberemos o vinho saboroso, o trigo terá
[sabor
de trigo e o deus vestirá de amor os corpos nus.


[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, pp. 244-246]



sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Rodrigo Bro

O NÃO SILÊNCIO DO AMOR

O amor é uma criança que beija o colo luminoso das lavadeiras
que alvejam suas tristezas submergidas no rio até a cintura.
Sou riacho a desaguar no oceano.
A vida é um varal
onde o amor e eu penduramos nossas lembranças e nossas roupas
comuns.
 Flameja em mim o ardor  pelo  vento a balançar o lençol
que assiste todas as noites o meu jeito de amar.
Amo as lavadeiras, suas cantigas
e as crianças que sopram bolas de sabão leves e lustrosas.
Por estarem limpas as minhas roupas,
estandartes das procissões do desejo,
amo os antúrios que Conceições enfeitam.
A tudo amo, até pedras que caladas edificam as vozes das moradias.
Uma casa habitada fala.

AS MÃOS SUAVES DO AMOR ME DESNUDAM 

Nos canteiros do meu corpo,
vem o amor colher as flores.
Jardineiro que me toca
como a brisa a lamber com sofreguidão as hastes virgens das orquídeas.
O amor é o alimento que nutri  existências.
É nele que eu existo,
deleito-me
e descanso qual artesão  no fim do dia,
qual caminheiro no fim do caminho
qual criança  que dorme e sonha com chegares de andorinhas.
As mãos suaves do amor me desnudam.

(Rodrigo Bro é mineiro de Belo Horizonte, tem 34 anos, e mantém um blog no portal "Recanto das Letras", onde publica seus textos. Esse dois poemas foram cedidos para publicação pelo autor). 


domingo, 13 de dezembro de 2015

Leonard Cohen

LIVRO DO DESEJO

Não consigo superar as colinas
O sistema foi abaixo
Vivo de comprimidos
Coisa que agradeço a D--s

Segui o trajeto
Do caos à arte
Desejo o cavalo
Depressão a carruagem

Naveguei como um cisne
Afundei-me como uma rocha
Mas o tempo passou há muito
Pelas minhas reservas de riso

A minha página era demasiado
branca
A minha tinta era demasiado fina
O dia não quis escrever
Aquilo que a noite rabiscara

O meu animal uiva
O meu anjo aborreceu-se
Mas não me é permitida
Uma réstia de remorso

Pois alguém há-de utilizar
Aquilo que eu não soube ser
O meu coração será dela
De uma forma impessoal

Ela pisará o caminho
Perceberá a minha intenção
A minha vontade partida em duas
E a liberdade pelo meio

Por menos de um segundo
As nossas vidas colidirão
O interminável suspenso
A porta de par em par

Então ela há-de nascer
Para alguém como tu
O que nunca ninguém fez
Ela continuará a fazer

Sei que ela vem aí
Sei que ela irá olhar
E esse é o desejo
E este é o livro

[In  Livro do Desejo, tradução de Vasco Gato, Edições Quasi]


Scubagal Pictures

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

García Lorca

CACIDA DA MÃO IMPOSSÍVEL

NÃO quero mais que uma mão,
mão ferida, se possível.
Não quero mais que uma mão,
inda que passe noites mil sem cama.

Seria um lírio pálido de cal,
uma pomba atada ao meu coração,
o guarda que na noite do meu trânsito
de todo vetaria o acesso à lua.

Não quero mais que essa mão
para os diários óleos e a mortalha de minha agonia.
Não quero mais que essa mão
para de minha morte ter uma asa.

Tudo mais passa.
Rubor sem nome mais, astro perpétuo.
O demais é o outro; vento triste
enquanto as folhas fogem debandadas.

[In Romanceiro Gitano e outros Poemas, trad. Oscar Mendes, Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1974, p. 184]






terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Gonçalo M. Tavares

A FORÇA

Nunca vi anjos nem aprendi orações
Como aprendi versos, mas desde cedo uma
Certa conspiração calma recolhida na parte
De trás da existência me foi dando
Conselhos, monocórdicos, pontuais;
Uma força constante que
Afastada dos dias e do seu ruído próprio
Me acompanhou. Nada de religioso, nenhum Deus,
Nenhum temor, nenhuma adoração,
Chamemos à coisa: disciplina. E assim está bem.
O mundo avança e acontecem coisas,
E o meu corpo recolhe-se e faz o que tem a fazer.

[In 1, poemas, Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2005, p. 155]


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Iacyr Anderson Freitas

BASTA UM DOMINGO
basta um domingo qualquer
e a mentira se descarna
feito um par de luvas
na fruteira

basta um domingo
para que vejamos

que nenhuma viagem
nos tirará desse lugar
que toda geografia
é um erro
que todas as ruas
são sempre a mesma rua
à mesma hora
da tarde ou da noite
que os dicionários todos
escondem apenas uma palavra
uma palavra tão clara e tão limpa
que jamais será dita

que é sempre possível
entrar mil vezes
no mesmo rio
que nunca houve outro rio
a não ser este
e que todos os dias da semana
não valem a soma de um domingo

que de si mesmo
sem notícia
vai lentamente se despedindo

[In A Soleira e o Século, Juiz de Fora, Funalfa, 2002]



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...