IX
A Carlos Drummond de Andrade
Poeta do finito e do infinito,
tempo presente e ausente e do futuro,
de tudo um pouco te ficou na austera
concepção de vida, ó demiurgo
da memória, do sonho, do sarcasmo,
da violência contida e sem triunfo,
da doçura do hóspede secreto
de si mesmo
rebentando-se em dor, amor, soluço;
que te dizer no dia abençoado,
eu que nem sei de mim, eu que me sei
agora remetida à tua lição
de dançarino aflito sobre os fios
finos, tênues e tensos da canção?
O pórtico arruinou-se de meu sonho,
a tristeza infantil revigorou-se;
meu canto não celebra o que interpreta
na inspeção, de que falas, dolorosa
do deserto.
Já não saúdo ao jeito natural
de quem sabia adormecer crianças.
O sino toca e não percebo: falta
a malícia das coisas, a aliança
secreta com o que existe.
Ó meu jovem poeta,
não te consome o tempo irreverente:
és a mina de tudo o que ainda anima
a aceitação difícil do mistério,
a solércia dos mitos que o amor
vai criando de forma insidiosa.
Atento te debruças sobre a vida,
assistes impassível ao desmonte
e ao recriar-se, franco, cada dia,
de um céu mofino, um tempo de pesares.
Mas de tal modo, poeta,
extraordinária
é a tua percepção do que se vive,
que nem te rapta o sonho,
nem te perde a obscura realidade.
Pairas, tranqüilo, sobre as coisas,
herdeiro penseroso do milagre.
X
A Carlos Drummond de Andrade
Meu poeta querido:
os tempos são ruins, a vida pesa,
reina
por todo lado a forma imperativa
da mentira e do engano.
Estou só como nunca, de tal forma
envolvida fui numa trama
antiga,
que ora morta me tem e separada
até de mim.
Não sei bem que dizer-te neste dia,
senão que meu amor não muda com a mudança
de tudo.
O que me salva é a fé que tenho em mim,
em ti,
na tua Obra, altíssima entre todas,
no livro que acabei de
traduzir,
na lembrança de Borges, que aceitou
a cegueira dos olhos, que lhe
impede
a leitura de uns livros, que só eles
compensam nossa faina de existir.
O resto não tem nome, é só a fúria
de perceber o dano
que atinge o entendimento e nos destrói
a esperança, a
certeza, a confiança
que se depôs no amor, que era tão pouco,
no anel, que era
só vidro
e se quebrou.
no dia de teus anos proclamando
que apesar dos pesares, dos desmandos,
do tempo que inaugura novos tempos
de desentendimento
e luta,
que o canto me consola se me vem
com a inocência cruel da tua chama dizer
que se te sai da boa ensimesmada
é porque a brisa o trouxe e o leva a brisa.
Mas neste poema eu sou quem te visita
e te traz a certeza de um afeto,
que antes cresce com o tempo que declina,
contrariamente à lei que rege a vida,
e a lição renovada de teus livros,
que quanto passa o tempo mais entendo.
Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, pp; 25-28
Tributo ao mineiro Carlos Drummond de Andrade, no dia em que faria 110 anos!