quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Marly de Oliveira


IX
A Carlos Drummond de Andrade
Poeta do finito e do infinito,
tempo presente e ausente e do futuro,
de tudo um pouco te ficou na austera
concepção de vida, ó demiurgo
da memória, do sonho, do sarcasmo,
da violência contida e sem triunfo,
da doçura do hóspede secreto
de si mesmo
rebentando-se em dor, amor, soluço;
que te dizer no dia abençoado,
eu que nem sei de mim, eu que me sei
agora remetida à tua lição
de dançarino aflito sobre os fios
finos, tênues e tensos da canção?

O pórtico arruinou-se de meu sonho,
a tristeza infantil revigorou-se;
meu canto não celebra o que interpreta
na inspeção, de que falas, dolorosa
do deserto.
Já não saúdo ao jeito natural
de quem sabia adormecer crianças.
O sino toca e não percebo: falta
a malícia das coisas, a aliança
secreta com o que existe.
Ó meu jovem poeta,
não te consome o tempo irreverente:
és a mina de tudo o que ainda anima
a aceitação difícil do mistério, 
a solércia dos mitos que o amor 
vai criando de forma insidiosa.

Atento te debruças sobre a vida, 
assistes impassível ao desmonte 
e ao recriar-se, franco, cada dia, 
de um céu mofino, um tempo de pesares. 
Mas de tal modo, poeta, 
extraordinária
é a tua percepção do que se vive, 
que nem te rapta o sonho, 
nem te perde a obscura realidade.
Pairas, tranqüilo, sobre as coisas, 
herdeiro penseroso do milagre. 

X
A Carlos Drummond de Andrade
Meu poeta querido: 
os tempos são ruins, a vida pesa, 
reina por todo lado a forma imperativa 
da mentira e do engano.
Estou só como nunca, de tal forma 
envolvida fui numa trama antiga, 
que ora morta me tem e separada 
até de mim.

Não sei bem que dizer-te neste dia,
senão que meu amor não muda com a mudança
de tudo.
O que me salva é a fé que tenho em mim, 
em ti,
na tua Obra, altíssima entre todas, 
no livro que acabei de traduzir, 
na lembrança de Borges, que aceitou 
a cegueira dos olhos, que lhe impede 
a leitura de uns livros, que só eles 
compensam nossa faina de existir.

O resto não tem nome, é só a fúria 
de perceber o dano
que atinge o entendimento e nos destrói 
a esperança, a certeza, a confiança 
que se depôs no amor, que era tão pouco, 
no anel, que era só vidro 
e se quebrou.
No entanto, aqui estou,
no dia de teus anos proclamando
que apesar dos pesares, dos desmandos,
do tempo que inaugura novos tempos
de desentendimento
e luta,
que o canto me consola se me vem 
com a inocência cruel da tua chama dizer
que se te sai da boa ensimesmada
é porque a brisa o trouxe e o leva a brisa. 
Mas neste poema eu sou quem te visita 
e te traz a certeza de um afeto, 
que antes cresce com o tempo que declina, 
contrariamente à lei que rege a vida, 
e a lição renovada de teus livros, 
que quanto passa o tempo mais entendo.

Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, pp; 25-28

Tributo ao mineiro Carlos Drummond de Andrade, no dia em que faria 110 anos!



Rainer Maria Rilke

HORA GRAVE
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.
Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.
Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

[Tradução: Paulo Plínio Abreu]


terça-feira, 30 de outubro de 2012

Daniel Lima


Não sobra nada. Tudo já está repartido,
distribuído, possuído, ocupado.
Nada está mais livre para ninguém.
E ninguém é mais livre para nada. Nem
maio sobra; nem julho; nem setembro.
Por onde anda a primavera que, aliás,
nunca vi passando por aqui? O luar
está em perigo e os namorados nem se advertem
disto, porque talvez nem saibam
mais amar. Pois não sobra amor nenhum também.

E se alguma coisa sobrar, que é que
iremos fazer com ela? Num mundo assim
sem tempo e sem lugar para nada, que iremos
fazer com o que sobrar das nossas lembranças?

Daniel Lima, Poemas, Recife: Cepe, 2011, p. 239

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Gastão Cruz

NAO CANTES O MEU NOME EM PLENO DIA
Não cantes o meu nome em pleno dia
não movas os seus ásperos motivos
sob a luz dolorosa sob o som
da alegria

Não movas o meu nome sob as tuas
mãos molhadas do choro doutros dias
não retenhas as sílabas caídas
do meu nome da tua boca extinta

Não cantes o meu nome a primavera
já o ameaça hoje principia
a vida do meu nome não o cantes
com a tua alegria.

In Os nomes, Imagem da Linguagem, Assírio & Alvim, 1974

Fonte: Poesia e prosa no sapo.pt

Sobre Gastão Cruz

domingo, 28 de outubro de 2012

Clarice Lispector

ÂNGELA.- Continuei a andar pela cidade à toa. Na praça quem dá milho aos pombos são as prostitutas e os vagabundos — filhos de Deus mais do que eu. Eu dou milho para você, meu amor. Eu, prostituta 
e vagabunda. Mas com honra, minha gente, com minha homenagem aos pombos. Que vontade de fazer uma coisa errada. O erro é apaixonante. Vou pecar. Vou confessar uma coisa; às vezes, só por brincadeira, minto. Não sou nada do que vocês pensam. Mas respeito a veracidade: sou pura de pecados.
Música de órgão é demoníaca. Quero minha vida acompanhada, como com irmãs gêmeas, de música de órgão. Só que dá medo. Música funeral? Não sei bem, estou um pouco fora de órbita.
Hoje matei um mosquito. Com a mais bruta das delicadezas. Por quê? Por que matar o que vive? Sinto-me uma assassina e uma culpada. E nunca mais vou esquecer esse mosquito. Cujo destino eu tracei. A grande matadora. Eu, como um guindaste, a lidar com um delicadíssimo átomo. Me perdoe, mosquitinho, me perdoe, não faço mais isso. Acho que devemos fazer coisa proibida — senão sufocamos. Mas sem sentimento de culpa e sim como aviso de que somos livres.
Eu sou o meu próprio espelho. E vivo de achados e perdidos. É o que me salva. Estou metida numa guerra invisível entre perigos. Quem vence? Eu sempre perco.
AUTOR.- Ângela é muito provisória.
ÂNGELA.- Eu não chego a me compreender não. É fumaça nos meus olhos, é telefone ocupado, é unha quebrada no meio, risco de giz no quadro negro, é nariz entupido, é fruta de repente podre, é cisco no olho, é pontapé no traseiro, é pisadela no calo do pé, é alfinete furando o dedo delicado, é injeção de Novocaína, é cusparada no meu rosto. Sou uma atriz perfeita.
AUTOR.- Gazela doida que é.

In Um Sopro de Vida (Pulsações), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4a. ed, 1978, pp. 62-63

sábado, 27 de outubro de 2012

Augusto Frederico Schmidt

A POESIA CHEGOU
Ó demônios que em mim tendes guarida,
Ó abismos escuros e traiçoeiros,
Que me chamais e que me seduzis:
Vede, aqui estou perdido na Poesia!

Vede, mal não chegou, e nela eu fico,
Como o ser natural nos seus domínios,
Como o pássaro no ar e os peixes nágua,
Como o ente amoroso em seus amores.

Vede, a Poesia em mim, me transfigura,
E vós, tredos abismos e demônios,
Vosso poder perdeis, de vós me aparto.

E o que tanto a minha alma seduzia,
Nada mais pode, nada mais encanta,
Quando a Poesia vem e me reclama. 


Coleção Melhores Poemas, seleção de Ivan Marques, Global Editora: São Paulo, 2010, p. 122

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Rainer Maria Rilke

Estou nas trevas, como cego.
Meu olhar não encontra teu caminho.
O frenesi enlouquecido dos dias
é uma cortina que te esconde de mim.
Eu a observo: subirá
essa cortina que esconde minha existência,
o peso de minha vida e seu sentido.
E que é na verdade minha morte.

A Lou Andreas-Salomé
29 de dezembro de 1898

Apaga-me os olhos: e ainda posso ver-te,
tranca-me os ouvidos: e ainda posso ouvir-te,
e sem pés posso ainda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os braços, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá
e se me deitares fogo ao cérebro
hei-de continuar a trazer-te no sangue".

(Tradução do germanista português, Paulo Quintela)
A Lou Andreas-Salome

Volga
Por longe que estejas: posso ainda te ver,
Por longe que estejas: tu permanecerás
Qual presença que não pode empalidecer,
Qual paisagem, a mim sempre contornarás.
Se tuas margens eu jamais tivesse tocado,

Mesmo assim saberia tua imensidão:
Ondas de meus sonhos me teriam levado
À beira de tua infindável solidão.

[Fonte: manuthinkerfree.blogspot.com.br/2010/11/poemas-de-rilke.html]



domingo, 21 de outubro de 2012

Renan Nuernberger


SEM TÍTULO (II)
janeiro é um mês vermelhíssimo
tônico, auroral
(tempo de amor e miragem)
embora não seja
o início (o início
mesmo é em março: o mal
que, no norte,
resulta no enterro dos mortos)
ciclicamente é um
istmo
de coalizão solar

queria viver em pleno janeiro
suado, quente
(o coração sem cardeais)
sempre pronto para
a próxima (a próxima
talvez seja a última: ela passa
e onde estou?
na capital do século vinte-e-um?)
incisivamente explosiva
visão
de suas pernas pro ar

Copiado de http://asescolhasafectivas.blogspot.com.br/2012/04/renan-nuernberger.html

Flávia Ferraz


COMPASSO DE ESPERA
Estou em compasso de espera. Não chegou a hora de eu tocar o prato, nem de fazer soar os tímpanos, no gran finale da obra. Conto os compassos e espero. Estou atenta à partitura assim como o maestro, que acompanha as partes de vários instrumentos, para fazê-los soar como um todo que faz sentido. Mas estou confusa. Leio duas partituras diferentes e as partes não se encaixam: uma é canção da partida e outra, valsa de boas vindas.

Na valsa tudo é leve. O acento, o apoio, o tempo “um” do compasso parece apenas preparação para a desinência dos tempos “dois” e “três”, suspensos, no ar. A dança está implícita, é um balanço. Para cá, para lá, para cá, para lá. É uma criança que acaba de chegar, para embalar as expectativas dos pais, preencher seus sonhos, colorir sua vida.

Já na canção, o andamento é lento. Cheia de pausas pesadas, sentidas. Não danço, apenas espero. Até o ar fica mais denso quando ela soa... É um amigo que vai partir, deixando um vazio, uma falta sem nexo, um descontínuo. Acho que perdi uma página da obra ou o compositor errou. Onde está a cadência perfeita? Ele é tão jovem, havia tanto por vir!

Oh, Pai! Por que é tão fraca a lente que usamos, que não nos deixa ler a música que ressoa dessa sobreposição? Não entendo sua harmonia, sua polirritmia. Por que parece que os tempos não casam, que a valsa se precipita alegre e tanto se arrasta o sofrimento da canção? Ou será que a canção é que correu, minando um tempo que devia se prolongar e a valsa vem infinita, numa fermata cheia de abertura para o novo?

Quando soarem os tímpanos no fim dessa obra, quero crer que a valsa e a canção fazem parte de uma mesma sinfonia. Sublime! Bela!

Uma chega para o desafio da vida. O outro salta em direção à plenitude!

sábado, 20 de outubro de 2012

Zulmira Ribeiro Tavares

CINCO POEMAS
Poesia 1:
SURFISTA
Tinha o corpo pronto para fazer filhos
e surfar a grande.
Não lhe guardei o nome. Era um homem

de ancas estreitas e ombros largos.
O seu peito arrostava os repelões do ar.
Não perdia o equilíbrio

e a musculatura o trazia
a um palmo acima da água.
Tanta força e destreza
vinham-lhe do arcabouço exato.

Veloz, impunha respeito às gaivotas.
Elas não lhe batiam no crespo da cabeça
de caracóis duros como os das estátuas.

Era um homem feito
e sabia o quanto. Ele pensava

a sua descendência de ouro.
Esperma e espuma fosforesciam na noite.

O surfista corria pelo escuro do mar
sonhando novos obstáculos -
o olhar esperto e vigilante.

Golpeado por um impulso a contrapelo
- vagalhão sem lei -
a prancha partiu-se em dois
e os urubus lhe abriram espaço
no céu das gaivotas.

Da praia sua descendência se desata
no raso da vazante - maré vazia.


Poesia 2:
VIDA: OBJETO DE DESEJO
Nós desejamos pinguins.
Não os de geladeira
com seu peso fixo de massa pintada
sua estatuária de cozinha
sem nenhum sopro de da Vinci.

Nós desejamos pinguins.
Não os das geleiras
que nos esfriam os dedos
ao toque de suas penas firmes.
Frios são os caminhos que a morte nos envia.

Desejamos os pinguins de nosso assombro
fechados dentro de nós no desejo
como pérolas nas ostras.
Ostras não sabem das pérolas
que engendram e trazem consigo.
E nós que os formamos do escuro,
deles só temos o rastro, pinguins,
com seu brilho
de nácar.


Poesia 3:
JIBOIA
Depois do almoço
Palmira jiboia.
Tem cisma com termo mais light:
sesta - de socialite.
Palmira não gosta.

Olha para o alto.
Enxerga árvores
onde há telhados.
E telhas partidas caem.

Sopra a brisa do morro
esfriando-lhe a nuca.
Mas é o vento encanado
de portas batendo.
Palmira não escuta.

Palmira por trás da modorra
espiona a vida sebosa.
Acorda. Espirra.

E o lençol que a enrola
fabrica uma cobra de giz.
Palmira não gosta.

Por que não ter como sua
uma nova figura
que lhe sirva de espelho?

Uma cobra top model -
a coral, por exemplo.

Palmira boceja. Recusa.
E o seu corpanzil sem remorsos
navega nas horas da grande preguiça.
É barco, bote, bandeja, bacia

Jiboia gozando a sesta
de gente que pode

triturar pela boca o mundo arrastando nas cheias
benesses, roedores, reses.


Poesia 4:
DE VELHOS CADERNOS ESCOLARES
Partimos de barco em direção à ilha, pequena,
redonda e verde como a dos cadernos escolares.
No centro, alguns coqueiros.

Ao pisarmos o seu chão, desfez-se, desprendendo

cheiros de vegetação e terra úmida que se
juntaram ao de maresia. Como se no ar à nossa
volta perdurasse em novo arranjo, ilha e mar.

O equilíbrio na água era precário. Certo tremor
agia em cada um como instrumentos de corda
quando a propagação de sons tem seu início.
De volta ao barco não olhamos para trás, nem
que figura ali deixáramos às nossas costas, sem
real força remissiva.


Poesia 5:
ABAIXO DA LINHA DE POBREZA
Ora vejo a linha de pobreza no contorno irregular
dos prédios, altos, baixos, ou das pequenas casas de
autoconstrução na encosta dos morros.

A linha que mais me atinge é a reta, que vai de
um ponto a outro sem desvio. Sei que nela há
números. Quais, não sei. Ainda que não tenha cor,
peso, e tangencie o invisível, é forte. Li a propósito.

Considero a linha do horizonte a que mais se
aproxima do que imagino ser a linha de pobreza.
Da cidade, ver o horizonte é difícil, ou se apresenta
com defeito. Rememoro-o distante, no fim do mar.
Deve ser de lá que a retiram, a linha de pobreza,
com régua e compasso: para raciocínio e ação.
Pois impossível que não exista primeiro na paisagem,
material, resistente. Tem de existir, como certas
fibras arrancadas à natureza para com elas se fazer
feixes, relhos, assim como servem de enfeite as
penas de belas aves.

Verdade que ao longo da vida passaram-me diante
dos olhos gráficos estampados em folhas de
jornal. Alguns diziam respeito à linha de pobreza.
Neles, seu traçado não remetia ao limite que se
tem do mar, longe, e por vezes mesmo delineou
o contorno de ondas crespas e próximas ou, além,
de escarpas, promontórios. Puras formas da
física terrestre, impetuosas, dramáticas, tocando
o interior dos homens de modo diverso ao da
linha do horizonte - que os acalenta com o sono,
a tranquilidade ou a morte.

Abaixo da linha de pobreza não me chegam ideias.

FONTE: Revista Piaui, Fevereiro de 2007

Sobre Zulmira Ribeiro Tavares






quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Rosa Montero

Não conheço nenhum romancista que não tenha o vício desaforado da leitura. Somos, por definição, bichos leitores. Roemos as palavras dos livros de uma forma incessante, tal como o caruncho empenha todo o seu ser em devorar madeira. Além disso, para aprender a escrever é preciso ler muito; por exemplo, George Eliot possuía uma cultura vastísssima e lia Homero e Sófocles em grego e Cícero e Virgílio em latim. Eu sou incapaz de semelhante proeza e esta pode ser uma das razões pelas quais escrevo pior do que ela. No seu magnífico ensaio Letra ferida, Nuria Amat propõe aos escritores uma escolha difícil que consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por alguma circunstância que não vem ao caso, tivéssemos que escolher entre nunca mais voltar a escrever ou nunca mais voltar a ler, o que escolheríamos? Nos últimos anos coloquei esta questão, como uma brincadeira, a quase todos os autores com quem fui deparando pelo mundo, e descobri duas coisas interessantes. A primeira, que uma esmagadora maioria, pelo menos noventa por cento e possivelmente ainda mais, escolhe (escolhemos: eu também) continuar a ler. E a segunda, que esta brincadeira de aparência inocente é um bom revelador da alma humana, porque tenho a sensação de que muitos daqueles escritores que dizem preferir a escrita são pessoas que cultivam mais a sua própria personagem do que a verdade.
Porque, como é possível governar-se para viver sem a leitura? Deixar de escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De forma que, muito antes da escrita está a leitura, e os romancistas não são mais do que leitores destemperados e descomedidos devido à nossa fome ansiosa de palavras.
Há pouco tempo ouvi a escritora argentina Graciela Cabal, falar em pú­blico, em Gijón, numa intervenção divertidíssima e memorável. Acabou por dizer (embora ela se expressasse melhor do que eu) que um leitor tem a vida muito mais longa do que as outras pessoas, porque não morre até acabar o livro que está a ler. O seu próprio pai, explicava Graciela, tinha demorado imenso a falecer, porque vinha o médico visitá-lo e, aba­nando tristemente a cabeça, garantia: “Não passa desta noite»; mas o pai respondia: «Não, nem pense, não se preocupe, não posso morrer porque tenho de acabar O Outono do Patriarca.’' E, assim que o médico se ia embora, o pai dizia: «Tragam-me um livro mais grosso.»
— Enquanto isso, amigos do meu pai, que eram saudáveis, fartavam-se de morrer; por exemplo, um pobre senhor que só foi ao médico fazer um check-up e já não saiu — acrescentava Graciela. — É que a morte também é leitora, por isso aconselho a que andem sempre com um livro na mão, porque, quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se.
Graciela tem razão: não só se escreve, como também se lê contra a morte. Os mais belos relatos que conheço sobre o sentido da narrativa incluem sempre essa dimensão fantasmagórica da confrontação com a Ceifeira. Tal como a história-padrão de As Mil e Uma Noites, a história de Sherezade que conta histórias. Na verdade, estou convencida de que esse livro caótico, maravilhoso e imenso, que abarca umas três mil páginas escritas ao longo de um milênio, esconde mais de uma mulher entre os seus diversos autores anônimos. Porque, ao lado de passagens terrivel­mente machistas (as mulheres de As Mil e Uma Noites são chicoteadas, maltratadas, escravizadas, degoladas, narcotizadas, espancadas, insulta­das, raptadas e violadas às mãos-cheias), há inúmeros relatos muito femi­nistas, como as aventuras de Ibriza, a princesa guerreira, ou a história principal e muito bela de Sharazad ou Sherezade, que sem dúvida devia ser nomeada a santa padroeira dos romancistas.

Do livro A Louca da Casa, Edições Asa, Alfragide, 2008, pp. 125-126 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Mariana Ianelli

ESSENCIAL
O branco há de me cobrir.
Nenhuma ótima filosofia,
nenhuma música para essa vez.
Os bárbaros conversam comigo do poço,
os mais hábeis, os mais inertes.
Minha confidência se abre para eles:
é a demolição do minuto pontual,
da cadeia insustentável de regras,
dos meus calçados infalíveis
que respeitaram sempre um certo simulacro.
Bárbaros por uma ausência profana
de ideais e arrependimentos:
o exemplo da rendição inocente.
Deveres à parte,
costumes exauridos e desígnios à parte,
o branco há de deitar sobre mim.



Do livro Duas Chagas, São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 53

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Olga Orozco

CAVALGADA DO TEMPO
Inútil. Será inútil, novamente,
suspender da noite, sobre densas correntes de folhagem,
a imagem lenta de um futuro que revigora a memória;
penetrar no ócio dos dias que foram sucedendo com terror
e paciência
a mesma realidade alucinada que hoje contemplo,
já quase no olhar;
repetir ainda com uma voz que sinto pesar em minhas mãos:
- Estive alguma vez, talvez regresse ainda, à beira da paz,
como uma flor que vê transcorrer seu belo tempo na foz de um rio.

Tudo será em vão.
Manadas de cavalos ascenderão bravias as colinas de seu
inferno natal
e escutarei seu passo cadenciado, seu trote, seu galope selvagem,
atravessando séculos e séculos de penumbra,
de submissas distâncias que irremediavelmente aqui as trazem.

Talvez seria doce reconquistar agora uma música antiga,
profunda e persistente como o eco de um grito entre os sonhos,
sucumbir sob o verde torpor das planícies
ou morrer com a chuva, tristemente,
entre ramos chorosos que sombrearam antiquíssimas paredes.

Impossível. Só um fragor imenso de ruínas sobre ruínas.
É o desesperado retorno dos tempos que não foram cumpridos
nem na glória da vida nem na verdade da morte.
É a amarga prece  que elevam os anjos rebeldes
chamando a cada lugar onde possa morar seu deus irrecobrável.
É o tropel contínuo de seus lustrosos potros enlutados
que assomam às portas da noite a enorme labareda
de suas crinas,
que apagam com mortalhas de vapor e de pó  toda treva muda,
agitando suas caudas como lisas fitas escorridas na tempestade.
O sangue arrependido, seus heroicos tormentos.

E nada resta em ti, coração assediado:
apenas uma cor, um brilho mortal,
a sagrada mensagem que deixara a terra entre seus muros,
perdem-se, ao longe,
sob um mesmo compasso idêntico e glorioso como a eternidade.

Fonte: Olga Orozco, Poesía Completa, Adriana Higaldo Editora: Buenos Aires, 2011, pp. 64-65.
Tradução: José Pires Cardoso e Antonio Damásio Rêgo Filho


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Murilo Mendes

ÁVILA
A José Bergamin
O aeronauta conduz a bordo a palavra silêncio.
Sobrevoamos Ávila, composição abstrata.
O avião abrindo curvas dá guinadas
Como os movimentos da alma na escrita de Santa Teresa.
Ávila absorvida, surge Madrid à frente:
Subimos agora as ladeiras da descida.

Volto a ver Ávila, contornada a pé.
Em Ávila recebi minha ração de silêncio maior
E pude decifrar o texto do meu enigma:
Deus permitiu que eu cresça desde o início
No espaço árido da minha fome e sede.
Permitiu que eu tocasse o núcleo da minha origem,
Eu que sou o não-figurativo, o não-nomeado,
O não-inaugurado, o que sempre se perfaz,
Nutrido pelo sol interior que acende o esqueleto;
Alguém que é ninguém,
De amor consumido pelo Nada ou Tudo,
O que nunca abriu a boca, nem supõe o milagre,
Habita na aflição, na densidade,
Sem Espanha e com Espanha.
Que muero porque no muero.

Severa e castigada, Ávila funda
O espaço criador do espaço,
A pedra macha de Espanha
Que cerra o segredo. 


SANTA TERESA DE JESUS
Teresa, corpo de glória,
O romance de cavalaria desde cedo
Conduziu-te à aventura celeste.
Da dura terra aprendeste a defrontar
A arma do touro, a cruz ponteaguda, o grito árabe.
Das casas fortificadas de Castela
Extraíste a imagem objetiva
Para fundar teus castillos interiores.
Da pedra de Ávila extrais a resistência.
O vazio do espaço dilatado de Castela
Corresponde ao deserto de Deus.

Teresa, decifras o «mistério» masculino de Espanha.
Teu íntimo substrato é o fogo:
Convida-te a elidir o supérfluo.
Vendo oculto Deus desnudo
—    Minério subjacente de Castela —
Concentraste-o num ponto mínimo.
Descreves com precisão o itinerário da alma.

Altas cristas de Ávila desertas.
Alta Teresa de Ávila, intocada,
—    Rigor e lucidez na intensidade —
Consegues tornar didático o absoluto.

 [In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 584-585]


domingo, 14 de outubro de 2012

Júlio Castañon Guimarães

TARDE DE DOMINGO
assim
disposta num terraço
aberto ao tempo
a cadeira se balança
com cuidado e conforto
mas leve indecisão
quanto ao ritmo

não tanto
pelo frágil frêmito
da imagem do mar
seu brilho
de espelho fraturado
sob o sol

mas sobretudo
pela regularidade
do movimento mesmo do mar:
avanço sistemático
e recuo estratégico
a tracejar
uma linha de ameaça
ou simples prenúncio
de perigos mais fundos
- o frio dos abismos
e os restos
que habitam esta baía 
não fosse vir
de dentro da casa
essa música
feita de limpidez
e medida
maquinaria impalpável
de emoção à flor da matéria
que numa recusa ao devaneio
se articula avessa à dispersão
para expor
por entre sombras
iluminadas pela razão
todo o seu desalento

In Poemas [1975 - 2005], Cosacnaif: São Paulo, 2006, pp. 72-73

sábado, 13 de outubro de 2012

Flávio Boaventura

BABILÔNIA CENTRAL

para Edson Caramori, irmão na pedra e na flor.

"Pois os olhos são testemunhas 'mais exatas que os ouvidos"'.
Heráclito de Éfeso

Passei entre bancas de legumes
e quase apodreci de ciúmes
aquático boiei vendo peixes:
meus fitos mais fúteis tinham brânquias
vi outros bichos fui bicho fui eu mesmo
libertei instigantes instintos
cheirei ervas flores apalpei (olho apalpando)
consultei mulheres simples-sóbrias
pisei no corredor de vime me comovi
chorei lágrimas de pau
ardi artista plástico minhas mãos pinceis
meu corpo tela minha saliva tinta
apareci fotógrafo funâmbulo cineasta
vi atores atrizes atrozes cicatrizes
vi movimentos de monumentos
bebi suores do povo fiquei embriagado
e amei a vendedora de frutas cítricas
que me sugava demoníaca délfica diagonal
indelével com voz de citara.

Fonte:  MOTIM, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1980, p. 41

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Hilda Hilst


XXIII
Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas: navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo

Também isso te devo.

XXIV
Ai, que distanciamento, que montanha, que água 
Estes rios fundos, o meu sumo escorrendo,
Esta chaga, ai, senhor, que já não vejo 
O tempo, ando ensombrada 
Quase dormida e insone pela casa
E ao mesmo tempo raposa perseguida:
Se ontem ousava correr, hoje não ousa.
Antes se alegra
Do ouvido que escuta os cavalos correndo 
A música dos instrumentos, dos cães o latido 
E se deixa matar. Ai de mim, me conhecendo 
Penitente sem ser preciso, com esse viço do amor. 
Não me sabendo nunca perseguida
Mas sendo caça, indo à frente 
E perseguindo o caçador.

(Do Amor, Massao Ohno Editor: São Paulo, 1999, pp. 32-33)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Leandro Sarmatz

TRÊS POEMAS

FELICE
Havia algo de nacional-socialismo em meu olhar.
Era à noitinha. Ela então veio a mim
bem devagar: deixara a cidade, algum tipo de passado
e outro dono, talvez.
(Porque tudo, quase tudo, se resume a ter um dono.)
Alguns dias se passaram e seu cheiro, seu olhar desamparado
e seu ar de forasteiro
-tudo isso me exasperava.
Eu dirigia-lhe palavras e outras vacuidades,
ela parecia temer ser violada.
E assim ficamos um tempo sem medida
até finalmente chegar o momento da tortura.
Ela implorava para nunca ser lembrada, miava agudo
de uma maneira que apenas aguçava a minha vontade:
"Quando eu descobri essa delícia?" -eu murmurava
enquanto vagava pela casa à sua procura-
"Que deus nostálgico do horror me trouxe
para o centro desse desejo inextinguível?"
Ela se escondia atrás da porta, ou no banheiro,
atrás do fogão ou tiritando sob a cama.
Eu a caçava cheio de ardor,
metia-lhe dentro do meu carro e a obrigava
a rever toda a cidade em pleno sol de abril.
Era de conhecimento quase geral, e no máximo
pagavam-lhe um copinho de sorvete.

BALADA HEBRAICA
Ao vê-los escuros
Ao vê-los gastos
-pântano, memória e tumba-
lembro que Herzl teve suas ideias
depois de escutar Wagner.

INUNDAÇÃO
Não sabendo hoje mais do que eu já soube
como alguém que descobre em si o gene da derrota
ouço a canção de ninar abortos
todos esses hinos de balcânica euforia:
subterrâneos vivos
ossários de papel notícia.

Fonte: Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima, domingo, 07 de outubro de 2012.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Renata Pallottini

VIZINHA
Vizinha,
me dá um pouco da tua sopa
me deixa partilhar o azeite
e as batatas da tua ceia
estou tão triste.
A esta hora da noite
sois ao redor da mesa
uma família
e o vapor da terrina embaça os óculos
do homem
e as crianças riem.
Sei muito bem das vossas dificuldades
que o dinheiro é pouco e a paixão
já se acabou
porém
vizinha
tua sopa cheira bem, teus filhos estão crescendo
tens um canário e rosas
e não sabes de nada;
abre a porta, vizinha, e me admite no seio
dessa coisa que um dia eu supus acabada
que eu detesto e desejo,
e não compreendo.
Por favor, por favor,
deixa-me entrar, vizinha.
Estou tão triste.
[In Obra Poética, Editora Hucitec: São Paulo, 1995, p. 293]



terça-feira, 9 de outubro de 2012

Manoel de Barros


II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique
à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV
No Tratado das Grandezas do ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
E quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V
Formigas-carregadeiras entram em casa de bunda.

VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a 
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele 
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso partir de 
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no
mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em 
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato 
sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X
Não tem altura o silêncio das pedras.

Manoel de Barros, Poesia Completa, são Paulo: Leya, 2010, pp. 300-301

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Carlos Pintado

A BELEZA
De novo amo e não amo
e deliro e não deliro
Anacreonte

A beleza  que passa como o sonho,
fugaz, inabarcável, sem destino,
se detém um instante sobre o lábio
desvela a mirada ou o cabelo,
doura a sombra, os ocasos,
uma frase de amor, um corpo amado,
uma rosa reluzente nas trevas,
um fogo que desce da noite,
uma aurora silenciosa e distante,
um parque onde estamos tão unidos,
uma rua de Roma ou da Inglaterra,
um rapaz ou uma jovem que me espera,
e este verso que escrevo ao léu:
"a beleza que passa como o sonho".
( Habitación a Oscuras) 


domingo, 7 de outubro de 2012

Eucanaã Ferraz

VIDA E OBRA
Repare, Cicero, que os copos se tornam
mais leves quando cheios de vinho.

E, você há de concordar comigo, a cada copo
essa impressão cresce. Deuses, vazio,

canções, vinho: este é um poema sobre poemas
e amizade.

Repare que o mesmo se dá conosco: o peso
faz-se leve em nós se um verso nos acontece.

MELANCOLIA
Uma cópia do nosso quarto, cada coisa, e pedaços da paisagem lá fora;
não se trata de dor ou desespero, é apenas a cópia da minha alegria;
uma cópia das suas mãos abertas, paradas, uma cópia do seu carinho,
uma cópia dos seus olhos, uma cópia idêntica do seu modo de olhar,
em preto e branco, cópias das tardes que hoje eram sempre a luz, c
omo tangerinas, das noites em que parece arder um metal diferente,
sua voz, o cabelo, uma festa, a cópia do seu colar, da sua lágrima,
uns amigos, você sorri; não são a dor ou o desespero, são só as ruas,
cópias das ruas, milhões, que deslizam e não dependem de nós.

Todos estão cegos. Todos estão loucos. Todos estão mortos.
Deuses habilidade súplica suborno não têm nenhum poder
e nos lançamos ao destino, ao veredito da sorte, às leis do acúmulo,
rios hotéis palaces suítes, reproduções disso e daquilo, do que
não vemos nem saberemos, imagens não me sirvam de consolo
mas quando sejam o horror guardem ainda alguma beleza, a cópia
da beleza de quando éramos nós dois e o mundo; não é o fim,
é o dedo de ninguém sobre a tecla que nos copia, somos nós
sem nós em cópias, à perfeita e sem fim ilusão, à perfeição
da vertigem.


LES ROMANCIERS ÉTRANGERS
Ela implorou por um beijo.
Sabia que um só beijo
e tudo estaria bem,
que outro beijo viria,

mais um, outro e tudo mais.
Sim, ela implorou chorando
que lhe desse um beijo e só.
Mas ele disse que não.

Firme e frio, disse que não.
Ele sabia, sem dúvida,
que se cedesse ao pedido
tudo estaria bem e

que outro beijo viria
e ele, decididamente,
não queria. Foi por isso
que ficou daquele modo,

firme, frio. Ela implorava,
olhos inchados, vermelhos,
estava dessa maneira
quando saíram à rua

e ele fingia que nada,
nada havia acontecido.
Mas como ele conseguia
ser assim, intransponível?

Diante dela, parecia
que se convertera em pedra,
pedra inteiramente não,
muro inteiramente muro.

Que fazemos quando alguém
que amamos se faz assim
diante de nosso desejo,
frente a nosso desespero?

Hoje os olhos estão secos.
Ela lembra. E ela entende
que tudo foi bem pior:
porque a pedra não era ele,

porque a pedra era ela mesma,
apesar de toda lágrima.
Sim, ela era a pedra dele,
em que ele a transformara.

TALVEZ HOJE
Estranha matéria, que sobe do fundo
à flor da memória camada de espuma
diário de bordo vem quebrar aqui

sobre nosso peito com seu arsenal
de velhas paisagens e gente sem rosto;
se quase podemos tocá-la, não sabemos.

no entanto, em que praça, em que tempo
se dão o abraço o beijo que, talhados
no passado, emergem na água de agora

à maneira de cristais, mas que são vidros
difusos e são doces, matam a sede
e nos matam. Insepultos, ressurgimos.

[Fonte:  Revista Piauí, setembro de 2012, pp. 82-83]

Sobre Eucanaã Ferraz

Website do autor


sábado, 6 de outubro de 2012

Henrique Rodrigues

SEXTINA
Ao menos se esticasse um pouco o tempo,
Um dia não se fosse em uma hora,
Veria um certo tempo que não vejo.
Não por manter cerrados os meus olhos,
Mas por deixar que ouçam o velho canto
Das horas limitadas pelo espaço.

Cruel limite: já não pode o espaço
- Nunca pôde - se erguer diante do tempo.
O resto que se esprema pelo canto
E ao centro uma batalha hora a hora
Do rio, que a correr diante dos olhos,
Parece afogar tudo enquanto vejo.

Mas sei que quanto mais de tudo eu vejo
Mais posso caminhar no meu espaço,
Bastando que se eduquem os próprios olhos
Deixando-os olhar, de tempo em tempo,
Todos os lados de uma mesma hora,
E não somente vê-la de um só canto.

Não fica harmonizado como um canto
O que não há silêncio (o qual não vejo),
E passa pelo tempo a qualquer hora.
Quiçá seja o silêncio lá do espaço
O vácuo que não sente o nosso tempo 
Por não tê-lo a vazar os próprios olhos.

E o que será que vêem nossos olhos?
Como dizer, cantando como eu canto,
Em avanço e em evasão ao mesmo tempo? 
Se falo aos olhos, ouço, e assim mais vejo 
Do que veria dentro de um espaço
Olhando e nada vendo a toda hora.

E penso mais: que enfim chegou a hora 
De eu alternar o foco dos meus olhos 
Em tudo o que há de belo neste espaço.
De ver em cada lado e em cada canto, 
Ouvir o que não ouço e o que não vejo, 
Enquanto houver espaço e restar tempo.

Que seja todo o tempo uma só hora,
Pois vejo muito mais se fecho os olhos 
E guardo a vida a um canto sem espaço. 

AS SOMBRAS DAS ÁRVORES
Surge um grande mistério sob as árvores.
É um outono singular. Vêm as musas 
Soprar frutos estéreis que nos cubram 
De sensação viril de liberdade.

Contudo, apenas sensação, não ela.
A liberdade em si, não-material,
Como sugere a sombra destas árvores,
Não há, sequer numa sutil ideia
De que existe algum descanso da imagem
E do que ela tem por trás e por dentro.

Caiam as folhas, que o farfalhar é
Uma proposição tão invisível
Quanto isto que há na sombra destas sombras.
Não vejo, e creio firme em suas raízes.

Fonte: A Musa Diluída, São Paulo: Record, 2006, pp. 33-35

Website de Henrique Rodrigues

Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...