sábado, 28 de outubro de 2017

Sofia Nestrovski

Tuiuiú
 
        Um leão, galos e galinhas, animais velozes, tartarugas, um elefante, marsupiais, um aquário de muitas coisas, animais de orelhas compridas, um pássaro que canta no fundo da floresta, outros pássaros, pianistas, fósseis e um cisne. Minha casa é cheia de animais de plástico, miniaturas, e uma gata. Uma vez sonhei que brotavam salamandras das torneiras. Poucos meses depois, sonhei que tinha um minotauro de estimação.

No meu sonho, o minotauro precisava ser mantido à base de carinho, ou fugiria. O meu maior medo era que, na fuga, destruísse minha casa e depois o mundo inteiro. Emily Dickinson escreveu um poema em que diz que um sapo pode morrer de luz. Em outro, sobre quando ela mesma morreu, conta que uma mosca ficou no meio do caminho entre ela e a luz, e o universo deixou de existir. Bom, eu ainda me lembro da sensação de ser pequena o bastante para colocar meus dedos sobre a mesa da sala e ficar com os olhos na altura dela. O que eu via quando olhava para cima era luz sobre luz, a luz da janela refletindo no verniz da mesa e voltando em direção à fonte, indo de encontro consigo mesma. De resto, pessoas e móveis eram gigantes, opacos e não me interessavam.

Ultimamente não tenho bebido água em casa porque meu filtro de barro virou um cemitério de aranhas. É a segunda vez que isto acontece. Na primeira, fui encher meu copo e vi que uma aranha quase transparente de tão minúscula caiu dentro dele. Joguei fora a água e fui enchê-lo de novo; mais uma aranha caiu. Então encontrei uma fileira delas marchando em volta do filtro, indo em direção ao ponto onde as duas metades dele se juntam. As aranhas entravam no filtro por frestas nessa junção, e quando levantei a parte de cima, descobri que havia uma colônia inteira delas dentro d’água. Mortas e incontáveis, eu as bebia há não sei quanto tempo. Limpei o filtro e vedei a fresta. Mas elas voltaram. Vocês que me visitam também já beberam das minhas aranhas.

Em 1855, Walt Whitman disse que poderia morrer com o sol nascendo, se não fosse ele também capaz de irradiar um sol para fora de si. Minha gata caça baratas e moscas, eu mantenho minhas aranhas mortas, minhas plantas têm desmaiado de insolação. Em 1856, Emily Dickinson disse sentir pelas criaturas da natureza um “êxtase de cordialidade”. Eu agora venho todos os dias na casa da Deborah beber água. Hoje nós duas ficamos na sala, olhando para sua gata que olhava para fora da janela. A gata encarava a luz, piscando muito rápido para não desviar o olhar, e a Deborah disse “Pare de se comunicar com o sol, Matilda”. Mas ela nunca para.

Fonte: Blog da editora Cotovia

Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.

domingo, 15 de outubro de 2017

Tonino Guerra

TONINO GUERRA PARA TARKOSVY
"Não sei o que é uma casa
É um abrigo?
Ou um guarda-chuva quando chove?
Eu a enchi de garrafas, trapos, patos de madeira, cortinas, leques
Parece que não quero abandoná-la nunca
Então é uma janela que aprisiona qualquer um que entre nela
Inclusive um pássaro como você, sujo de neve
Mas o que contamos um ao outro é tão leve
Que não pode ser retido em seu interior."

[Tonino Guerra a Tarkovski no documentário Tempo di viaggio, 1983]

Cecília Meireles

ADOLESCENTE ROMANO
Eis a bela cabeça de bronze do remoto adolescente:
o cabelo é uma franjada coroa como de folhas de oliveira;
as sobrancelhas arredondam guirlandas serenas;
a narina respira o arcaico dia de vida;
há no lábio uma surpresa de sonho quase com forma de palavra.
E como o artista vazou-lhe a íris, tal pupila desmesurada,
cai-lhe sobre todo o rosto uma sombra densa, grave e profunda:
- redondas janelas por onde penetra a face móvel dos séculos,
redondas janelas por onde assoma esse abismo da eternidade,
silencioso, imenso, extático,
onde as imagens todas se apagam.
Que adolescente viveu com sua carne
o espetáculo de alma que o bronze traz de tão longe?
[Em Poemas Italianos, 2017]

João Cabral de Melo Neto

OUVINDO EM DISCO MARIANNE MOORE
Ela desvestiu a poesia,
como se desveste uma roupa,
das verticais, do falar alto,
menos de quem prega, apregoa,
de quem esquece o microfone
que tem a dois palmos da boca
porque falando alto imagina
que a emoção sobreexposta é a boa.
Em disco, a voz desconhecida,
que nunca berra nem cantoa,
da voz fria do poema impresso
em nenhum momento destoa.

HOMENAGEM RENOVADA A MARIANNE MOORE
Cruzando desertos de frio
que a pouca poesia não ousa,
chegou ao extremo da poesia
quem caminhou, no verso, em prosa
E então mostrou, sem pregação,
com a razão de sua obra pouca,
que a poesia não é de dentro,
que é como casa, que é de fora;
que embora se viva de dentro
se há de construir, que é uma coisa
que quem faz faz para fazer-se
— muleta para a perna coxa.

DÚVIDAS APÓCRIFAS DE MARIANNE MOORE
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

SOBRE ELIZABETH BISHOP
Quem falar como ela falou
levará a lente especial:
não agranda e nem diminui, essa lente filtra o essencial

que todos vemos mas não vemos
até o chegar a falar dele:
o essencial que filtra está vivo
e inquieto como qualquer peixe.

Não se sabe é a sábia receita
que faz sua palavra essencial
conservar aceso num livro
o aço do peixe inaugural.

[In Agrestes, 1981-1985]

Eugénio de Andrade

AO ABRIGO DE INJÚRIAS
Por que palavra começar, por que desordem? O vento levanta-se rápido da rugosidade da pedra, o cavalo de fogo escouceia, relincha no pátio, o rapazito abre-lhe o portão, galopa na poeira.
.
Desse dia pouco mais há a dizer — o crepúsculo foi-se aproximando dos degraus da casa, já não se distingue o arado da sua sombra, e ao fundo do horizonte o garoto, cúmplice do vento, afasta-se ao abrigo de injúrias.
(In Poesia e prosa [1940-1979])


Conceição Lima

A MÃO
Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.

Não seja tua lágrima a maldição
que sequestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia

girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.

ARQUIPÉLAGO
O enigma é outro — aqui não moram deuses
Homens apenas e o mar, inamovível herança.

[In A dolorosa raiz do Micondó, Geração Editorial, 2012]



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...