se eu voltar será vestida de clarões em honra à morte mais doce pela regra das rosas secas e dos anjos mistos de hera e de sangue caídos à tua porta em vértice dilatado como um cálice suspenso sobre os teus cabelos cor de lírios com cheiro a chuva. se eu voltar entre as rugas da tua boca será para te ser um monólogo de facas e um sopro de vinho quente a escorrer-te nos flancos onde me farás nua como um espinho de ouro crucificando-te a garganta. e nada de muralhas nada de estrelas nada de barcos nada de portos. tudo em sílabas calcárias e ácidas e morrentes aos teus pés.
se eu voltar será apenas uma herança de silêncio ou de papel rasgado sobre a cama que nunca desfizemos mas asfixiamos. lúcidos loucos devotos e predadores. restam as aves e o cardo mais rosa que um dia te vi nascer ao som de todas as vertigens. se eu voltar será por vontade das feras. mas o tempo é de cúpulas líquidas paralelas ao gesto de desfazer o rochedo. toma as minhas mãos. como precipícios. um dia o rosto será archote. e eu não volto.
(Isabel Mendes Ferreira - Inédito, publicado com licença da autora)
domingo, 29 de setembro de 2013
Giacomo Leopardi
A SI MESMO
Enfim repousas sempre
Meu lasso coração. Findo é o engano
Que perpétuo julguei. Findou. Bem sinto
Que em nós dos caros erros
Mais que a esperança, o próprio anelo é
extinto.
Repousa sempre. Muito
Palpitaste. Nenhuma coisa vale
Teus impulsos, nem digna é de suspiros
A terra. Nojo e tédio
É a vida, nada mais, e lama é o mundo.
Repousa. E desespera
A última vez. À nossa espécie o fado
Não deu mais que o morrer. Enfim despreza
A natureza, o rudo
Poder
que, oculto, o comum dano gera
E a vacuidade sem final de tudo.
[In Alexei Bueno, Cinco século de Poesia, São Paulo, Record, 2013, p. 47]
Sobre Giacomo Leopardi
E a vacuidade sem final de tudo.
[In Alexei Bueno, Cinco século de Poesia, São Paulo, Record, 2013, p. 47]
Sobre Giacomo Leopardi
sábado, 28 de setembro de 2013
Seamus Heaney
1. O MINISTÉRIO DO MEDO
Para Seamus Deane
Bom, como disse Kavanagh, vivemos
Em lugares importantes. A
solitária escarpa
De St. Columb’s College, onde me aquartelei
Por seis anos,
sobranceava seu Bogside.
Encarei novos mundos: a inflamada garganta
De Brandywell, a
iluminada pista de corrida
De cães, a goela da lebre. Na primeira semana
Senti
tanta saudade que nem sequer comi
A sobra de biscoitos para suavizar meu
exílio.
Joguei-os sobre a cerca certa noite
Em setembro de 1951
Quando as luzes
das casas de Lecky Road
Eram âmbar na neblina. Era uma ação
Furtiva.
Depois Belfast, depois Berkeley.
Nós dois sob
disfarce,
A cometer versos até se transformarem
Numa vida: de gordos
envelopes que chegavam
Nas férias a magros volumes
Despachados “com os cumprimentos do autor”.
Aqueles poemas a mão, arrancados da espiral
De seu caderno de exercícios, deixavam-me perplexo —
Vogais e idéias jogadas soltas
Como as sementes que o vento levava dos sicômoros.
Tentei
escrever sobre os sicômoros
E inovei uma rima do sul de Derry
Com bushed e lullede ecoando pushed e pulled.
Aquelas chancas ferradas de além da montanha
Andavam, por
Deus, pelos primorosos
Campos da elocução.
Terão nossos sotaques
Mudado? “Católicos, em geral, não falam
Mudado? “Católicos, em geral, não falam
Tão bem como os alunos das escolas
protestantes.”
Lembra-se daquela essência? Complexos
De inferioridade, essência de que os sonhos eram feitos.
“Qual é o seu nome, Heaney?”
Lembra-se daquela essência? Complexos
De inferioridade, essência de que os sonhos eram feitos.
“Qual é o seu nome, Heaney?”
“Heaney, padre.”
“Está
Bem.”
No meu primeiro dia, a correia de
couro
Estalava epiléptica na sala de estudos,
Estalava epiléptica na sala de estudos,
Os ecos salpicando sobre nossas cabeças curvas,
Mas ainda assim escrevia para casa que a vida
De internato não era tão ruim, retraindo como sempre.
De internato não era tão ruim, retraindo como sempre.
Nas férias longas, então, eu revivia
No banco de beijos de um Austin Dezesseis
Parado junto a uma empena, o motor ligado,
No banco de beijos de um Austin Dezesseis
Parado junto a uma empena, o motor ligado,
Meus dedos firmes como hera nos ombros dela,
Uma luz acesa a esperá-la na cozinha.
E a caminho de casa, a liberdade
Do verão minguando noite após noite, o ar
Todo luar e odor de feno, policiais
Brandiam as lanternas carmim, rodeando
O carro como gado negro, a apontarem
A boca da automática para meu olho:
Do verão minguando noite após noite, o ar
Todo luar e odor de feno, policiais
Brandiam as lanternas carmim, rodeando
O carro como gado negro, a apontarem
A boca da automática para meu olho:
“Qual é o seu nome, motorista?”.
“Seamus...”
Seamus?
Certa vez leram minhas cartas num bloqueio
E luziram os fachos sobre os hieróglifos,
E luziram os fachos sobre os hieróglifos,
“Dicções esbeltas” em letra bem floreada.
Ulster era britânica, mas sem direitos
À lírica inglesa: a nossa volta, embora
Sem mencioná-lo, o ministério do medo.
Sobre Seamus Heaney
In Poemas, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 130-132.
À lírica inglesa: a nossa volta, embora
Sem mencioná-lo, o ministério do medo.
Sobre Seamus Heaney
In Poemas, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 130-132.
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
Miguel Torga
Coimbra, 6 de Julho de 1963.
Poesia
Não te quero trair
Com palavras cansadas.
Abstracta presença
No seio da concreta natureza,
Voz de pureza
No silêncio imundo,
Luz que nas madrugadas
Anuncias mais luz,
Rigor da imprecisão,
Nenhum verso traduz
Sequer
A doce melodia do teu nome.
Por isso, quando todos os sentidos
Te desejam visível,
figurada,
Rasgo dentro de mim o véu
De não sei que lonjura,
E fico a namorar a curvatura
Da linha desenhada
Pelo gume do
céu
A cortar a planura
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
Daniel Faria
DO LIVRO DO APOCALIPSE
Onde há uma estrela há um homem nocturno
Um homem hemisférico que pensa na luz.
Ele sabe que a lâmpada é o cordeiro. Sabe que a cidade
Não precisa do sol nem da lua. O homem acende na cidade
O pensamento.
O cordeiro está em pé como que degolado e o sangue
Corre da ferida viva como um braseiro. A lâmpada
Abre uma constelação no chão: o livro
Que nomeia e nutre os ressuscitados.
O homem põe a estrela na direcção da vida
Um astrolábio celeste. Não precisa do sol nem da lua
Porque tem o cordeiro em pé e de frente.
Ele sabe que o cordeiro é pedra que está ferida
E roda-a devagar até ele próprio ser a fonte.
O homem junta as duas mãos como quem bebe
E queima-se nas mãos, na boca, nas entranhas
Com o lume muito novo da bebida.
DO LIVRO DOS ACTOS DOS APÓSTOLOS
A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa
A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair
Do grão – cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós
A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza
Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume
Da oração de um mártir ao morrer.
In “ Dos Líquidos” Fundação Manuel Leão, Porto, 2000
Onde há uma estrela há um homem nocturno
Um homem hemisférico que pensa na luz.
Ele sabe que a lâmpada é o cordeiro. Sabe que a cidade
Não precisa do sol nem da lua. O homem acende na cidade
O pensamento.
O cordeiro está em pé como que degolado e o sangue
Corre da ferida viva como um braseiro. A lâmpada
Abre uma constelação no chão: o livro
Que nomeia e nutre os ressuscitados.
O homem põe a estrela na direcção da vida
Um astrolábio celeste. Não precisa do sol nem da lua
Porque tem o cordeiro em pé e de frente.
Ele sabe que o cordeiro é pedra que está ferida
E roda-a devagar até ele próprio ser a fonte.
O homem junta as duas mãos como quem bebe
E queima-se nas mãos, na boca, nas entranhas
Com o lume muito novo da bebida.
DO LIVRO DOS ACTOS DOS APÓSTOLOS
A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa
A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair
Do grão – cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós
A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza
Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume
Da oração de um mártir ao morrer.
In “ Dos Líquidos” Fundação Manuel Leão, Porto, 2000
![]() |
Hubert Jan van Eyck |
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Hilda Hilst
17
Se possível se fizer o merecê-las
Peço-te dálias, senhor, altas e austeras
Como convém a mim vivendo em estupor.
Dirás que me concedes a cássia ferrugínea
Araucária excelsa, mais sombra e mais altura
Como convém a mim, vivendo nas planuras,
Mas peço-te dálias. De frêmito contínuo
Calcinadas de vento, como convém a mim
Aturdida de amor e pensamento.
Verás. É dádiva melhor. E se possível
Uma de rubro cerne. De parca simetria.
Vendo-a, verei a mim mesma cada dia.
In Exercícios, São Paulo, Globo, 2002. p. 63
Se possível se fizer o merecê-las
Peço-te dálias, senhor, altas e austeras
Como convém a mim vivendo em estupor.
Dirás que me concedes a cássia ferrugínea
Araucária excelsa, mais sombra e mais altura
Como convém a mim, vivendo nas planuras,
Mas peço-te dálias. De frêmito contínuo
Calcinadas de vento, como convém a mim
Aturdida de amor e pensamento.
Verás. É dádiva melhor. E se possível
Uma de rubro cerne. De parca simetria.
Vendo-a, verei a mim mesma cada dia.
In Exercícios, São Paulo, Globo, 2002. p. 63
Henri-Jean-Guillaume Martin |
terça-feira, 24 de setembro de 2013
Eugenio Montale
Quisera ter-me sentido tosco e essencial
assim como esses seixos que revolves,
comidos por salsugem;
lasca fora do tempo, testemunho
de uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara
em si, nos outros, a efervescência
da vida fugaz — homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
de alavanca que para
o engenho universal; e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros,
não tua página estrondosa.
Mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.
In Ossos de Sépia, p. 123
assim como esses seixos que revolves,
comidos por salsugem;
lasca fora do tempo, testemunho
de uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara
em si, nos outros, a efervescência
da vida fugaz — homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
de alavanca que para
o engenho universal; e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros,
não tua página estrondosa.
Mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.
In Ossos de Sépia, p. 123
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Rainer Maria Rilke
ELEGIA A MARINA TSVÉTAÏEVA
Estas perdas no Todo, Marina, estas estrelas que desabam!
Onde quer que nos lancemos, qualquer que seja a estrela, nós
Nada alcançamos: a conta já está fechada.
Assim, quem cai não diminui o número sagrado.
Estas perdas no Todo, Marina, estas estrelas que desabam!
Onde quer que nos lancemos, qualquer que seja a estrela, nós
Nada alcançamos: a conta já está fechada.
Assim, quem cai não diminui o número sagrado.
A queda que renuncia escolhe na origem e, ali, se cura.
Não será tudo afinal um jogo, mudança do Mesmo ou transferência,
E em lugar algum um nome, o mínimo lugar de um ganho íntimo?
Nós ondas, Marina, e mar! Nós profundezas, e céu!
Nós terra, Marina, e mil vezes primavera, estas cotovias
Cujo canto ao irromper as lança na invisibilidade!
Entoamo-lo em alegria, mas ele já nos ultrapassou
E de súbito o nosso peso transforma em pranto o canto.
Mas o pranto? Não é ele uma alegria nova, inversa?
Os deuses cá em baixo também querem ser louvados:
Tão ingênuos que esperam, como o menino de escola, o elogio!
Deixa-nos então ser pródigos no louvor!
Nada é nosso. E dificilmente podemos pegar com a nossa mão
O caule de flores não colhidas, fá vi isso à beira do Nilo,
Em Kôm-Ombo. Os reis, renunciando, vazam desse modo as libações.
Como os anjos marcam o portal de quem deve ser salvo,
E assim, aparentemente ternos, tocamos isto ou aquilo.
Mas já levados para tão longe, Marina, tão distraídos, mesmo sob
O mais profundo pretexto. Fazedores de signos, nada mais.
Este comércio ligeiro, quando um de nós
Já não se contenta e decide investir
E se vinga e mata. Que ele tenha o poder de morte, com efeito,
Já todos nós tínhamos compreendido ao ver a sua tema discrição
E a força estranha que faz de nós viventes
De sobreviventes. Não ser.
Sabes tu quantas vezes
Uma ordem cega através da antecâmara gelada
Nos trouxe dum novo nascimento? Nós? Um corpo feito de olhos
Sob pálpebras inumeráveis dizendo não? Trará o coração
Abatido por toda uma raça que há em nós? Para que fim de migração
Transporta o voo, a imagem aérea das nossas mutações.
Os amantes, Marina, não deveriam, não têm o direito
De saber de mais sobre o seu declínio. Eles devem continuar jovens.
Só o seu túmulo é velho. Só o seu túmulo, cada vez mais sombrio,
Sob a árvore que soluça, se lembrará para sempre.
Só o seu túmulo deve quebrar-se; eles são flexíveis como o vime,
O excesso que os verga entrança-os numa rica coroa.
Como desvanecem no vento de Maio! Do centro de Sempre
Em que adivinhas, respiras, são excluídos pelo instante.
(Como vos entendo, ó femininas flores sobre o silvado
Sempre o mesmo. E me inflas de força no ar da noite
Que irá aflorar-vos.) Os Deuses aprenderam cedo
A simular metades. Nós, inscritos na órbita,
Tornamo-nos plenos como o disco da lua.
Mesmo na fase decrescente, ou nas semanas do que se revolve,
Nada há que nos possa devolver à plenitude, a não ser
Os nossos passos, só eles, por cima da paisagem sem sono.
oo00oo
Janela distante das nossas paredes há muito já transposta
Entre os astros, festeja e reina;
Tu, sobrevivente ao Cisne e à Lira, tu derradeira
Imagem lentamente divinizada.
Usamos-te ainda, forma das nossas casas engastada
Levemente, que nos promete a infância.
Mas as janelas da terra, mesmo a mais abandonada
Imitava as tuas decantações!
O Destino lá em cima enlaçou-te, com a sua medida usual
De perdas e declínios.
Janela de astros estáveis, sujeito ao movimento ele emerge
por cima daqueles que escolhem.
In Correspondência a Três, Trad. Armando Silva Carvalho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 191-194
![]() |
Wassily Kandinsky |
domingo, 22 de setembro de 2013
Antonio Gamoneda
Vi lavandas submersas na tigela do pranto e a visão ardeu em
mim.
Para lá da chuva vi serpentes doentes — belas nas suas
úlceras transparentes —, frutos ameaçados por espinhos e sombras, ervas
animadas pelo orvalho. Vi um rouxinol agonizante e a sua garganta cheia de luz.
Sonho a existência e é um jardim torturado. Diante de mim
passam mães encanecidas na vertigem.
O meu pensamento é anterior à eternidade, porém não existe
eternidade. Gastei a minha juventude diante de um túmulo vazio, extenuei-me em
perguntas que ainda percutem em mim como um cavalo que galopasse tristemente na
memória.
Ainda giro dentro de mim embora saiba que vou cair no frio
do meu próprio coração.
sábado, 21 de setembro de 2013
Ana Luísa Amaral
SALOMÉ REVISITADA
Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:
recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,
lembrando o seu olhar. Bolo de figos
e de mel, conchas de som — mas não é
Salomão que eu sinto em sonhos
nesse corredor, mas Salomé, a outra,
a mesma que aqui está. E o seu olhar:
amputado de mim não pela espada,
mas por gume maior: o tempo
a insistir que eu nunca fui: multiplicada
pela sua íris. Agora, sai: é largo o corredor,
está certo o quarto, e eu decerto fiz bem.
Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café —
Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:
recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,
lembrando o seu olhar. Bolo de figos
e de mel, conchas de som — mas não é
Salomão que eu sinto em sonhos
nesse corredor, mas Salomé, a outra,
a mesma que aqui está. E o seu olhar:
amputado de mim não pela espada,
mas por gume maior: o tempo
a insistir que eu nunca fui: multiplicada
pela sua íris. Agora, sai: é largo o corredor,
está certo o quarto, e eu decerto fiz bem.
Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café —
In Vozes, São Paulo, Iluminuras, 2013, p. 31
![]() |
GASTON BUSSIERE |
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Paul Celan
PRESSÃO DA LUZ (1970)
UMA VEZ, a morte era corrente,
tu te escondeste em mim.
o0o
PRÉ-CIENTE SANGRA
duas vezes atrás da cortina,
Consciente
pérola
o0o
UMA VEZ, a morte era corrente,
tu te escondeste em mim.
o0o
PRÉ-CIENTE SANGRA
duas vezes atrás da cortina,
Consciente
pérola
o0o
QUANDO ME ABANDONEI EM TI,
eras pensamento,
algo
murmura entre nós dois:
do mundo a primeira
das últimas
asas,
em mim cresce
a pele sobre
tempestuosa
boca,
tu
não chegas
até
ti.
o0o
COMO TE EXTINGUES em mim:
ainda no último
e gasto
nó de ar
estás lá com uma
faísca
de vida.
o0o
OS DESAPARECIDOS
papagaios-cinza
rezam a missa
em uma boca.
Ouves chover
e achas que também agora
seria Deus.
In CRISTAL, trad. Cláudia Cavalcanti, São Paulo, Iluminuras, 2011,pp. 137-145
In CRISTAL, trad. Cláudia Cavalcanti, São Paulo, Iluminuras, 2011,pp. 137-145
![]() |
richard toveen |
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Rainer Maria Rilke
LEDA
Quando o deus revestiu sua figura,
surpreendeu-se de achar
tanta beleza
no cisne e se deixou perder na alvura.
Mas logo se aprestou à sua
empresa,
antes ainda que da sua presa
provasse as sensações. A que se
abria
compreendeu quem no cisne se encobria.
Soube que demandava com presteza
algo que a resistência de sua mente
não pôde mais deter com
arma alguma.
O deus, vencendo a mão desfalecente,
cingiu a amada num coleio-abraço,
sentiu o próprio corpo,
pluma a pluma,
e só então foi cisne em seu regaço.
In Augusto de Campos, Coisas e Anjos de Rilke, São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 205
![]() |
LEDA E O CISNE Leonardo da Vinci |
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Gerard Manley Hopkins
A LANTERNA
LÁ FORA
Às vezes,
no meio da noite move-se uma lanterna
Que atrai nosso olhar. Quem vai lá? quem
a conduz?
Fico pensando, meditando de onde e para quê e aonde,
De quem, escuridão adentro, a tateante luz?
Por mim
passam os homens, cujo brilho e beleza
De índole ou de mente, ou do que seja,
torna-os raros;
E, até que a morte ou a distância os trague, esparzem
Em
nosso denso ar palustre ricos raios.
Distância
ou morte cedo os consome. E se perdem,
No fim, de todo o revolver de minha vista a persegui-los
Em
vão — e, longe dos olhos, longe do coração.
Perto do
coração de Cristo, cujos passos os seguem —
Seu olhar e cuidado amoroso em confirmá-los, corrigi-los —
Fiel primeiro e último amigo, resgate, salvação.
BELEZA
MATIZADA
Glória a Deus pelas coisas de cor variada —
Céu pintalgado, como novilha malhada;
Pintas-rosas
salpicando a truta que nada;
Castanhas que caem, como carvões-em-brasa;
Asa de pintassilgo; paisagem de vária
Nuance — terra de
aprisco, arada, baldia;
Ofícios do homem, sua equipagem e indumentária.
Tudo que é raro, original, estranho, oposto;
Variável,
variegado (por que o seria?) —
Lesto, lento; doce, azedo; faiscante, fosco —
Aquele
cuja beleza é imutável os cria:
Louvai-o.
In Poemas, trad. e introd. de Aíla de Oliveira Gomes, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 91 e 95
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Stefan Zweig
EXCERTO DE “O
MUNDO QUE EU VI”
Stefan Zweig
e Rilke em Paris
De todos esses poetas talvez nenhum haja
vivido mais modesta, misteriosa e invisivelmente do que Rilke. Mas sua solidão
não era voluntária, forçada ou artificialmente sacerdotal, não era como a de Stefan
George na Alemanha; a tranquilidade, por assim dizer, surgia em torno dele,
onde quer que ele se achasse. Porque ele fugia a todo ruído e mesmo à sua
própria fama — essa “soma de todas as desinteligências que se reúnem em torno de
um nome”, como certa vez disse ele de maneira tão elegante – a onda da curiosidade,
que em vão se lançava contra ele, só molhava o seu nome, e nunca a sua pessoa. Era difícil encontrar Rilke. Ele não
tinha casa, endereço, onde pudesse ser procurado, não tinha lar, morada fixa,
emprego. Estava sempre a viajar pelo mundo, e ninguém, nem mesmo ele próprio,
sabia de antemão para onde iria dirigir-se. Para sua alma extremamente sensível
toda resolução firme, todo plano e todo aviso já eram incômodos. Por isso só
casualmente era possível encontrá-lo. Alguém se achava numa galeria italiana e
percebia, sem saber ao certo de quem vinha, um leve e afável sorriso. Só então
reconhecia os olhos azuis de Rilke, que quando olhavam para alguém, com sua luz
interior lhe animavam os traços fisionômicos, que verdadeiramente nada tinham
que chamasse a atenção. Mas precisamente esse não ter nada que chamasse a
atenção era o íntimo segredo da sua personalidade. É possível que milhares de
pessoas tenham passado por esse jovem de bigode louro e caído e de formas de
rosto um pouco eslavas e que não eram dignas de nota por nenhum traço, sem
suspeitarem ser ele um poeta e um dos maiores do nosso século. O que ele
tinha de especial só se revelava no trato mais íntimo: a extraordinária reserva
do seu temperamento. Rilke tinha uma maneira suave e indescritível de
aproximar-se, de falar. Quando entrava numa sala onde estavam reunidas várias
pessoas fazia-o de modo tão silencioso que quase ninguém notava a sua chegada. Ficava
então sentado a escutar, sem querer erguia às vezes a fronte, logo que alguma
coisa parecia interessá-lo, e quando falava, fazia-o sempre sem qualquer
afetação e sem ênfase. Narrava com a naturalidade, singeleza e carinho com que
uma mãe narra ao filho um conto; era admirável ouvi-lo e perceber como ele tornava
claro e atraente mesmo o assunto menos interessante. Mas, logo que notava que
num grande grupo de pessoas se tornava o objeto da atenção geral, recolhia-se
ao seu silêncio e limitava-se a escutar. Todo movimento, todo gesto seu tinha
essa suavidade; mesmo quando ria, fazia-o com um tom apenas perceptível. A
suavidade era para ele uma necessidade, nada podia perturbá-lo tanto quanto o
barulho e, no domínio do sentimento, qualquer veemência. “Essas pessoas que
cospem os seus sentimentos como sangue, esgotam-me", disse-me ele certa vez, “por
isso russos, já só os suporto como licores, em quantidades bem pequenas". Não
menos do que serenidade no proceder eram para ele necessidades absolutamente
físicas a ordem, o asseio e o sossego; andar num bonde muito cheio e estar
sentado num local barulhento perturbavam-no por algumas horas. Não suportava tudo
o que é vulgar e, embora vivesse com recursos parcos, seu vestuário mostrava
sempre o máximo esmero, asseio e gosto. Seu vestuário era uma obra prima bem
analisada e bem imaginada, de discrição, e apesar disso, acompanhada de uma
nota insignificante, inteiramente
pessoal, um pequeno acessório no qual ele tinha um prazer secreto, por exemplo,
uma delgada pulseira de prata. O seu senso estético para perfeição e simetria
ia até as coisas mais íntimas, mais individuais. Vi-o uma vez em sua morada
arrumar a mala para viajar. Com razão foi o meu auxílio recusado, por ser
julgado incompetente. A sua arrumação parecia uma colocação de mosaicos, cada
peça era posta, quase carinhosamente no espaço cuidadosamente reservado; senti
que teria sido um crime perturbar com o meu auxílio essa arrumação tão
perfeita. Esse seu senso estético instintivo acompanhava-o até o detalhe mais
acessório; escrevia originais mui cuidadosamente no mais bonito papel, com sua
bela letra arredondada, deixando entre as linhas distâncias iguais; mesmo para
a carta menos importante usava papel seleto, e sua bela escrita regular, limpa
arredondada chegava exatamente até a margem. Nunca Rilke deixava sair de suas
mãos alguma coisa que não estivesse inteiramente perfeita. ;
Essa suavidade e concentração que o
caracterizavam, não deixavam de exercer influência sobre toda pessoa que dele
se aproximasse. Imaginar Rilke impetuoso era tão impossível quanto existir uma
pessoa que na presença dele, pela vibração que emanava de sua calma, não
perdesse toda exaltação e arrogância, pois sua reserva atuava como uma força
que continuava a influir misteriosamente, uma força moral e educadora. Após
toda longa conversa com ele uma pessoa se tornava incapaz por horas ou mesmo
por dias, de qualquer vulgaridade. Sem dúvida, por outro lado, essa sua constante
reserva, esse nunca querer dar-se inteiramente, punha logo uma barreira que
impedia toda cordialidade; creio que só poucos indivíduos se podem gabar de
terem sido «amigos» de Rilke. Nos seis volumes de suas cartas quase nunca se vê
Rilke tratar alguém por amigo, e parece que ele, desde seus tempos escolares,
não concedeu a ninguém o tu fraternal e íntimo. Sua extraordinária
sensibilidade não suportava que alguém ou alguma coisa se aproximassem muito
dele, e em especial tudo o que era acentuadamente masculino, provocava nele um
mal-estar absolutamente físico. Com as mulheres conversava com mais facilidade.
Gostava de escrever-lhes, escrevia-lhes muito e mostrava-se mais desembaraçado
em sua presença. Talvez fosse a ausência do caráter gutural em suas vozes que
lhe agradasse, pois as vozes desagradáveis o faziam sofrer. Vejo-o ainda diante
de mim em conversa com um grande aristocrata; durante todo o tempo manteve-se
curvado e nem sequer levantou uma só vez os olhos, para que eles não revelassem quanto o fazia sofrer esse
falseto desagradável. Mas como era bom ver Rilke junto de uma pessoa de quem
ele gostava! Então se sentia sua bondade íntima, embora fosse ela parca em
palavras e sentia-se a sua bondade interior como uma irradiação aquecedora, benéfica,
que penetrava até as profundezas da alma.
Apesar de tímido e retraído, Rilke em Paris,
nesta cidade que expande o coração, procedia com muito mais franqueza, talvez
porque ali a sua obra e o seu nome ainda não eram conhecidos e ele, como anônimo,
sempre se sentia mais desembaraçado,
mais livre e mais feliz. Visitei-o ali em dois quartos de aluguel; ambos eram
simples e não tinham ornatos e, apesar disso haviam adquirido imediatamente
estilo e tranquilidade graças ao seu senso estético. Ele jamais poderia morar
numa casa grande, com vizinhos barulhentos; preferia uma casa velha, mesmo que
fosse menos confortável, mas em que pudesse sentir-se bem, e, onde quer que
fosse residir, sabia preparar imediatamente o interior da sua morada mediante
habilidade no arranjo dos objetos, de acordo com a sua índole. Havia sempre só
muito poucos objetos em torno dele, mas sempre havia flores num vaso ou numa
floreira, flores talvez oferecidas por mulheres ou talvez carinhosamente
levadas por ele próprio para casa. Viam-se livros em estantes presas à parede,
bem encadernados ou cuidadosamente encapados, pois gostava de livros como de
animais. Sobre a secretária as canetas e
os lápis achavam-se enfileirados, as folhas de papel em branco bem arrumadas;
um ícone russo, um crucifixo que o acompanhavam, creio, em todas suas viagens,
davam ao seu gabinete de trabalho um caráter ligeiramente religioso, embora seu
espírito não estivesse preso a nenhum determinado dogma. Sentia-se que todo
pormenor fora escolhido com cuidado e era mantido com carinho. Se alguém lhe emprestava um livro que ele não conhecia,
ele o devolvia envolto num papel de seda, e o embrulho era feito com muito
esmero e atado uma fita de cor, como se fosse um presente de festas. Lembro-me ainda de ele ter levado ao meu
quarto uma dádiva preciosa um
manuscrito da “Canção do amor e da morte» e hoje ainda conservo a fita que o
circundava. Mas o que havia de mais encantador era passear com Rilke em Paris,
pois isso era ver com outros olhos a coisa mais insignificante; ele notava toda
minúcia e gostava de pronunciar em voz alta mesmo os nomes das tabuletas das firmas se
eles pareciam soar ritmicamente; conhecer a cidade de Paris até seus últimos cantos e recantos era para ele uma paixão, quase a única que nele notei. Certa
vez em que nos encontramos em casa de amigos comuns a ambos, narrei-lhe que na
véspera por acaso fora até a velha "Barrière", onde, no cemitério de Picpus
haviam sido sepultadas as últimas vítimas da guilhotina, entre elas André
Chénier; descrevi-lhe esse pequeno comovente campo com suas sepulturas
espalhadas, as quais o forasteiro raramente vê, e contei-lhe que, no regresso,
em uma das ruas vira através dum portão um convento com uma espécie de beguina que calmamente, sem falar, fazia
girar, como num sonho piedoso, o
rosário. Foi uma das poucas vezes em que vi quase impaciente esse homem tão suave, tão moderado: ele disse que tinha de
ver a sepultara de André Chenier e o
convento e perguntou-me se eu queria levá-lo lá. Fomos logo no dia seguinte. Ele ficou numa
espécie de imobilidade extática diante desse eremitério solitário e o qualificou de «o mais lírico de
Paris». Mas na volta viu que o portão do convento estava fechado. Pude então
verificar a sua paciência, que ele na vida não dominava menos da que em sua obra.
«Esperemos pelo acaso», disse ele e com a cabeça levemente abaixada postou-se
de modo a poder olhar através do portão se ele se abrisse. Esperamos talvez vinte
minutos. Uma religiosa que então ia chegando ao convento, tocou a campainha. «Agora», disse ele baixinho e nervoso. Mas a religiosa percebera que ele espreitava — eu já disse que nele
tudo se sentia de longe pela atmosfera — aproximou-se e perguntou-lhe se estava
à espera de alguém. Ele sorriu para
ela com aquele seu sorriso terno, que imediatamente despertava confiança, e
disse francamente que gostaria de ver o convento. A religiosa, sorrindo, disse
que sentia muito, mas não podia deixá-lo entrar. Todavia o aconselhou a dirigir-se
para a casinha do jardineiro, que ficava perto e de cujo andar superior teria
através da janela uma boa vista. E assim conseguiu ele isso, como tantas outras
coisas; várias vezes cruzaram-se os nossos caminhos, mas sempre que penso em
Rilke vejo-o em Paris, cuja hora mais triste ele não teve o desgosto de
presenciar.
[In O Mundo que eu vi, trad de Odilon Gallotti, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1942, pp. 160-166].
[In O Mundo que eu vi, trad de Odilon Gallotti, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1942, pp. 160-166].
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Else Lasker-Schüler
VIVA!
Meu desejo ferve na nostalgia de meu
sangue
como vinho selvagem que arde entre pétalas de
fogo.
Quisera que você e eu, nós, fôssemos uma
força,
fôssemos de um sangue
e uma consumação, uma paixão,
uma ardente canção de amor dos mundos!
Queria que você e eu, nós, nos
ramificássemos,
quando – louco de sol – o dia de verão clama
pela chuva
e nuvens de tempestade estalam no ar!
E que toda vida fosse nossa;
que arrancássemos a morte de sua própria
sepultura
e regozijássemos por seu silêncio.
Quisera que – de nosso abismo – se elevassem
massas
- como rochas – uma após a outra e desembocassem
Em uma cúpula, incansavelmente longínqua!
Que abarcássemos completamente o coração do
céu
e nos encontrássemos em cada brisa
e nos vislumbrássemos por toda a eternidade!
Um dia de celebração no qual murmuraremos
um no outro
no qual – nós dois nos fundiremos
m no outro
como fontes que manam da íngreme
altura rochosa
em ondas que escutem o próprio canto
e - de repente –
desabam rugindo e unem-se
em inseparáveis rebanhos de águas selvagens!
domingo, 15 de setembro de 2013
Ana Luísa Amaral
A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA
Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas —
In Vozes, São Paulo, Iluminuras, 2013, p. 64
Sobre a autora
Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas —
In Vozes, São Paulo, Iluminuras, 2013, p. 64
Sobre a autora
sábado, 14 de setembro de 2013
Antonio Gamoneda
Proponho a minha cabeça atormentada
pela sede e pela sepultura. Eu queria
expelir um som de alegria;
mas soo a matéria desolada.
Justifico-me na dor. Não há nada;
não encontro nos meus ossos a cobardia.
Em meu canto inverte-se a agonia;
é um caso de luz incorporada.
Proponho a minha cabeça para se houver
necessidade de suportar um raio.
Não falo apenas por mim. Digo, juro
que a beleza é necessária. Morra
o que deve morrer; o que calo.
Não toques, Deus, meu coração impuro.
In Oração Fria, Antologia. Sel., trad., introd. e posf. de João Moita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 39
pela sede e pela sepultura. Eu queria
expelir um som de alegria;
mas soo a matéria desolada.
Justifico-me na dor. Não há nada;
não encontro nos meus ossos a cobardia.
Em meu canto inverte-se a agonia;
é um caso de luz incorporada.
Proponho a minha cabeça para se houver
necessidade de suportar um raio.
Não falo apenas por mim. Digo, juro
que a beleza é necessária. Morra
o que deve morrer; o que calo.
Não toques, Deus, meu coração impuro.
In Oração Fria, Antologia. Sel., trad., introd. e posf. de João Moita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 39
![]() |
Sir Edward Burne-Jones |
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Walt Whitman
CANÇÃO PELO TEMPO DE LILÁS
Cantai para mim, agora, a alegria do tempo de lilás (voltando à
[memória),
Escolhei para mim, ó língua e lábios, em nome da natureza, souvenirs
[do princípio de verão,
Juntai os sinais bem-vindos (como as crianças com ágatas ou conchas
[penduradas
Colocai em abril ou em maio, as pererecas coaxando nos açudes, o
[ar elástico,
Abelhas, borboletas, o pardal com notas simples,
O azulão e a andorinha que se arremessam, sem esquecer o buraco-
[alto cintilando suas asas douradas,
A tranquila névoa solar, a fumaça que sobe, o vapor,
O tremeluzir das águas com os peixes dentro delas, o azul celeste
[acima,
Tudo o que é aprazível e brilhante, os riachos correndo,
As florestas de carvalho silvestre, os cintilantes dias de fevereiro e
[a fabricação de açúcar,
O pisco de peito ruivo no lugar em que dança, com olhos brilhantes
[e peito marrom,
Com um chamado musical claro na alvorada e, novamente, no
[crepúsculo,
Ou esvoaçando entre as árvores do pomar de macieiras, construindo
[o ninho de seu par,
A neve derretida de março, o salgueiro emitindo seus brotos amarelos
[esverdeados,
Pois o tempo da primavera é aqui! O verão é aqui! E o que é isso
[em si mesmo e de si?
Tu, alma, presa — a inquietação de ir atrás de algo que não sei;
Vem! não nos atrasemos mais por aqui, que possamos subir e ir
[embora!
Ó se alguém pudesse apenas voar como um pássaro!
Ó escapar, para navegar como em um navio!
Deslizar contigo, ó alma, sobre tudo, em tudo, como um navio
[sobre as águas;
Reunindo esses sinais, os prelúdios, o céu azul, a relva, as gotas de
[orvalho matinal,
O perfume de lilás, os arbustos com folhas verde-escuras em forma
[de coração,
Violetas, os pequenos botões delicados e pálidos chamados inocência,
Exemplos e tipos não por si mesmos, mas para a sua atmosfera,
Para agraciar o arbusto que amo — para cantar com os pássaros,
Uma canção pela alegria do tempo de lilases, voltando à memória.
In Folhas da Relva, trad. Luciano Alves Meira, São Paulo, Martin Claret, 2006, pp. 372-373.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
Herberto Helder
Porque ela vai morrer
Porque ela vai morrer.
Cai no sono a água fria, e ferve, no sono de cal a água
fria: ah, a brusca temperatura, a insensatez
das imagens.
O pêlo negro das mães escorrega na sua cara
de criança
voltada.
Só ela tão longamente se voltaria
dormindo,
criança
que se desdobra. Dêem um nome à memória, uma
arrumação
sonora que se escreva
e ofusque — um nome
para morrer.
Porque a criança atravessa tudo e já toca no centro de si
própria.
In Do Mundo, In Ofício Cantante, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 491
![]() |
Hyatt Moore |
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Elizabeth Bishop
PARIS,
SETE DA MANHÃ
Viajo a
cada um dos relógios do apartamento:
histriões,
alguns ponteiros indicam uma direção,
alguns a
outras, a partir de seus ignorantes rostos.
O tempo é
uma Etoile; as horas divergem tanto
que os dias
são travessias ao redor dos subúrbios,
círculos ao
redor de estrelas, círculos que se sobrepõem.
A pequena
escala demi-ton dos climas do inverno
é uma asa
de pombo aberta.
O inverno
vive sob a asa de um pombo, de um pombo morto e com
[as plumas
viscosas.
Olhe para
baixo, no pátio. Todas as casas
estão
construídas assim, com urnas ornamentais
no cimo das
mansardas onde os pombos
passeiam. É
como introspecção
o olhar
para o interior, ou como retrospecção,
uma estrela
dentro de um retângulo, uma recordação:
este
quadrado vazio poderia ter estado lá.
— Os fortes
de neve da infância, erigidos em invernos mais
[brilhantes,
poderiam
ter assumido esta proporção e converter-se em casas;
os
poderosos fortes de neve de quatro ou cinco andares,
se
resistissem à primavera como os de areia às marés,
seus muros,
sua forma, não se teriam dissolvido e morto,
mas somente
teriam um se sobreposto ao outro, tornados pedras,
agora
acinzentados e amarelecidos como são as pedras.
Aonde as
munições, as bolas de canhão em pilhas,
com seus
corações de gelo como estilhaços de estrelas?
Este céu
não é um pombo-correio-guerreiro
que sabe
safar-se da intersecçâo de intermináveis círculos.
É um céu
morto, ou o céu do qual caiu um pombo morto.
Suas
cinzas, ou plumas, estão guardadas nestas urnas.
Quando se
fundiria a estrela, ou teria ela sido capturada
pela sequência
de quadrados e quadrados, de círculos e círculos?
E os
relógios, saberão? Estará a estrela lá embaixo,
a ponto de
despencar sobre a neve?
Bishop,
Elizabeth. Poemas. tr. e intr. de Horácio Costa, São Paulo, Companhia das
Letras, 1990, pp. 51-53
terça-feira, 10 de setembro de 2013
Adonis
CELEBRAÇÃO DE BEIRUTE, 1982.
O tempo avança,
na mão um cajado de ossos de corpos.
A lâmina da insônia
marca o pescoço da noite.
Crânios – uns servem sangue
outros se embriagam e deliram.
O fogo se suja?
o vento se infla?
Fumaça é nuvens.
Nuvens tem forma de cabeças.
Letras caídas
são impressas dispersas no chão
- pedaços de corpos.
Hoje o horizonte recomendou a seu filho
o vento que não saísse.
Como não se cansam as pedras do caminho?
Nem mesmo o sol consegue
iluminar este corpo que sangra sombra.
Dias cobertos de pó
tem feições de velhos.
Mariposas queimam
Subindo a escada do sono.
A cinza, princesa,
toma assento e recebe as honras.
O míssil, rei,
arrasta a cauda
sobre os corpos dos súditos.
O sol está prestes a dizer
à luz: ofusca meus olhos.
Será a vida um erro
que a matança corrige?
Onde está a cova aberta para acolher as lágrimas?
E o buraco que acolherá a alma?
A coisa elimina a coisa.
Não terá outro seio
este céu?
Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?
Está sempre lendo seu amor.
O dia tem medo do dia
e a noite se esconde da noite.
Agradeço
ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,
ao intervalo entre uma bomba e outra,
ao piso que sempre aguenta meus passos,
agradeço às pedras que ensinam a paciência.
Apagou-se a luz.
Vou acender a estrela dos meus sonhos.
Leva-me, amor,
e me mantém trancado.
ADONIS [poemas], São Paulo, Companhia das Letras, 2012, seleção e tradução do árabe Michel Sleiman, pp. 175-178.
CELEBRAÇÃO DA INFÂNCIA
Lembro a loucura
apoiando-se, pela primeira vez, no travesseiro do juízo:
eu falando com meu corpo.
Meu corpo era um pesamento
que eu escrevia em vermelho:
o vermelho era o mais belo assento do sol
e todas as outras cores rezavam
em cima de um tapete vermelho.
A noite era outro lampião.
Em cada galho havia um braço:
carta carregada pelo espaço
confirmada pelo corpo do vento.
O sol insistia, nesses tempos,
se vestia de bruma
em nossos encontros:
era reprimenda da luz?
Ah meus dias idos...
caminhavam sonâmbulos
e eu apoiado em seus ombros.
O amor e o sonho são parênteses
onde interponho o meu corpo
e nisso conheço o mundo.
Muitas vezes
vi o vento voar com pés de erva
vi o caminho dançar com pés de vento.
Meus desejos são rosas
manchadas por meus dias.
Cedo me feri
cedo soube
que as feridas me criaram.
Não paro de andar atrás da criança
que não para de andar dentro de mim.
Agora ela para no topo de uma escada de luz
à procura de um canto para descansar
e de novo ler o rosto da noite.
Se a lua fosse uma casa
meus pés recusavam cruzar sua soleira:
eu seria tomado pela poeira
que me traz o vento das estações.
Caminho
ponho uma mão no ar
e a outra nas tranças que imagino.
A estrela é também uma pedrinha
no campo astral.
Só quem se misturou com o horizonte
pode abrir um caminho.
A lua, uma velha...
seu assento é a noite, seu cajado é a luz.
O que direi àquele meu corpo
que deixei entre as ruínas da casa onde nasci?
Não. Só poderão contar minha infância
as estrelas que cintilam em cima daquela casa
e pontilham com seus passos as direções da noite.
Minha infância ainda
nasce entre as mãos de uma luz
cujo nome desconheço e me dá nome.
Aquele rio.
Fazia dele um espelho
para perguntar-lhe sobre suas tristezas,
das tristezas fazia chuva
para imitar as nuvens.
Pequena aldeia tua infância
e apesar disto
não ultrapassarás suas fronteiras
por mais que te afaste a viagem.
Seus dias são lagos
suas lembranças corpos flutuantes.
Tu que caíste das alturas
nas montanhas do passado
como poderás subi-las
de novo?
Tempo: porta trancada
tento não consigo abri-la.
Meu encantamento está cansado
meus amuletos, dormentes.
Nasci numa aldeia
pequena, reclusa, como o útero
e ainda não saí dela.
Meu amor vai pelo oceano
não pelas praias.
Id. Ibid, pp. 179-183.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Murilo Mendes
Ideia Fortíssima
Uma ideia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu
cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.
Ideia que me acompanha
De uma a
outra lua,
De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,
Que me arranca do tempo e
sobrevoa a história,
Que me separa de mim mesmo,
Que me corta em dois como o
gládio divino.
Uma idéia que anula as paisagens exteriores,
Que me provoca terror e febre,
Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis,
Uma idéia que verruma todos os
poros do meu corpo
E só não se torna o grande cáustico
Porque é um alívio
diante da ideia muito mais forte e violenta de
[Deus.
Companheira
Companheira, dou-te as sombras que me acompanham,
Todas as
sombras criadas pelos vivos.
Companheira, dou-te a alegria
Do que nada tem a esperar do
esforço humano.
Dou-te a cantiga do asilado,
O suspiro do menino que olha em vão
O velocípede do menino
vizinho.
Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio
Em épocas muito
remotas.
Companheira,
Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira
comunhão.
Dou-te o desconsolo do que está sendo destruído
Pelos crimes que não
cometeu,
Pelos crimes de outros em época
distante.
Pastoral
Traze a sandália e o bordão para passearmos no campo sereno.
Somos contemporâneos de raças extintas,
Viemos de torres golpeadas e de
hóstias profanadas.
Até que desçamos para os rios
invisíveis
Convém dançar entre os humanos, comer o pão e o mel.
Os imortais nos aguardam nas
esferas da música:
Muitos pássaros, muitas luas viajantes têm nostalgia de nós.
Esquadrilhas de mitos são enviadas para nos protegerem.
Hospedamos companheiros
imprevistos,
O Máscara de Ferro, Nosferatu,
Ou então a Órfã do Castelo Negro.
As fontes esperam nosso sinal
para murmurarem,
E os germes da peste se contêm
ante a nossa benção.
Paz aos corpos insaciados de
amor, aos membros genitais em delírio:
Suspendei de novo no azul a gaiola dos anjos,
domingo, 8 de setembro de 2013
Emily Dickinson
Nunca me senti em Casa — Aqui —
E lá nos Belos Céus
Jamais me sentirei em Casa — eu sei —
Não gosto do Paraíso —
Porque é Domingo — todo o tempo lá —
E nunca — há Intervalo
—
E o Éden é tão triste nas brilhantes
Tardes de Quarta-feira
—
Se Deus fosse em visita —
Ou fizesse uma Sesta —
De forma a não nos ver — mas dizem
Que Ele é — um Telescópio
Que nos vigia
Perene —
Eu fugiria D’Ele —
Do Espírito Santo — de Todos —
Mas há o dito «Dia do Juízo Final»!
In Cem Poemas, trad. Ana Luísa Amaral, Lisboa, Ed. Relógio D´Água, 2010, p. 71.
Assinar:
Postagens (Atom)
Fernando Paixão
Os berros das ovelhas de tão articulados quebram os motivos. Um lençol de silêncio cobre a tudo e todos. Passam os homens velho...
-
ÂNGELA.- Continuei a andar pela cidade à toa. Na praça quem dá milho aos pombos são as prostitutas e os vagabundos — filhos de Deus mais do ...
-
PÃO-PAZ O Pão chega pela manhã em nossa casa. Traz um resto de madrugada. Cheiro de forno aquecido, de levedo e de lenha queimada. Traz as...
-
ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO. I É bom que seja assim, Dionísio , que não venhas. Voz e vento ...