sábado, 31 de maio de 2014

Eduardo Espina

A VIDA, UM OBJETO RECENTE
A mortalidade de sua matéria é o que
dá para começar: a ponto de permanecer
desejada encontra a pérola e o apelido.
Vida como dádiva duradoura, como foi
a do búfalo e antes, a da pantera.
Entre largos passos até cruzar a bruma
além da alvorada somada à pessoa
do pajem que pergunta pelo anfitrião.
A tempo de possuir o que nunca nasceu,
a manhã derrama lebréis de brilho,
a letra que à voz anuncia nações,
nada mais que a solução de sempre.
Chega a chuva, a rotina da água
e o ócio que por certo cai em desuso:
a lua no feno faz a planície, o
inverno ao cervo que alcança a ceder.
Por sua imundície o lugar foi reduzido,
convertido em algo como corno e aí:
a flecha conhecida ao restar cravada,
o corpo disposto pela possibilidade.
Poderia resumir-se assim: a margem das
lembranças se origina com o gerúndio e a
canção levada ao crocitar do sussurro.
Cervo, erva e logo louvam ao vento:
a casa encontra o limite desconhecido.
De toda sua estatura faz sentir ao céu.
Dorme a pele apesar do que passa.
Os olhos tomam como verdade as palavras
as coisas buscam um lugar na visão.

[In Jardim de Camalões - A poesia neobarroca na América Latina, organização, seleção e notas Cláudio Daniel, tradução Cláudio Daniel, Luiz Roberto Guedes, Glauco Mattoso, São Paulo, Iluminuras, 2004, p. 59].

Salvador Dali

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Alfred Tennyson

LÁGRIMAS, INÚTEIS LÁGRIMAS

Lágrimas, inúteis lágrimas,
Não sei o que significam,
Lágrimas vindas do fundo
De alguma aflição sublime
Emergem no coração,
E chegam até os olhos,
Vendo os alegres campos outonais
E pensando nos dias que não mais existem.

Novas qual primeiro raio
Cintilando numa vela,
Que traz aqui para cima
Os amigos do submundo,
Tristes como as derradeiras
Que fazem corar alguém
Que afunda com tudo o que amamos sob a borda;
Tão tristes novos dias que não mais existem.

Tristes e estranhas como em
Sombria alba de verão
Primeiro pio de aves semilúcidas
Para ouvidos moribundos,
Quando pra olhos decadentes
Lentamente a janela desenvolve
Um quadrado de luz tênue;
Tristes, estranhos dias que não mais existem.

Diletas tal qual os beijos
Na memória após a morte,
E suaves como aqueles
Que em afeto sem fé fingem
Nos lábios que são para outros;
Profundas como é o amor,
Como é o primeiro amor,
E insano com toda a pena;

O Morte em Vida, os dias que não mais existem!


[In Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX, Organização e tradução de José Lino Grünewald, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 91].




quinta-feira, 29 de maio de 2014

Walt Whitman

MURMÚRIOS DA MORTE CELESTIAL
Murmúrios da morte celestial sussurrados ouvi,
Conversa labial da noite, coros sibilantes,
Passos ascendendo suavemente, aragens místicas vogavam amenas e
baixo,
Ondulações de rios invisíveis, marés de uma corrente a fluir, sempre
a fluir,
(Ou será o salpicar de lágrimas? as ilimitadas águas das lágrimas
humanas?)

Vejo, vejo exatamente em direção ao céu, imensas massas de nuvens,
Lugubremente devagar elas flutuam, silenciosamente dilatando-se
e mesclando-se,
Com às vezes uma entristecida estrela, remota e semi-eclipsada.
Aparecendo e desaparecendo.

(Provavelmente algum parto, algum nascimento solene e imortal;
Impenetrável sobre as fronteiras para os olhos,
Alguma alma está passando por cima.)

[In Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX, Organização e tradução de José Lino Grünewald, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 103].


quarta-feira, 28 de maio de 2014

Raul de Leoni

E O POETA FALOU
Afinal, tudo que há de mais nobre e mais puro
Neste mundo de sombras e aparências
Fui eu quem revelou ou concebeu...

Fui a primeira luz neste planeta obscuro!
Fui a suprema voz de todas as consciências!
Fui o mais alto intérprete de Deus!

Dei alma à Natureza indiferente,
Inteligência às cousas, sentimentos
Às forças cegas e automáticas do Cosmos!...

Acompanhei e dirigi os povos
Na sua eterna migração para o Poente:
Levantei os primeiros monumentos

E os primeiros impérios milenários:
Teci as grandes lendas tutelares,
Despertei na memória das criaturas
A sua antiga tradição divina,
Criando as religiões, as fábulas, os mitos
Para iludir a dor universal;
Abri os horizontes infinitos;
Bebi o néctar das primeiras taças;
Plasmei os altos símbolos humanos.
Sutilizei o instinto e imaginei o amor;
Fui a força ideal das civilizações!
O gênio transfigurador da História!
O espírito anônimo dos séculos!
E, harmonioso, profético, profundo,
Passei humanizando as cousas pelo mundo,
Para divinizar os homens sobre a Terra!

[In Luz Mediterrânea, Prefácio de Rodrigo Melo Franco de Andrade, 7a. ed., Martins, São Paulo, 1952, pp. 66-67]

Sobre RAUL DE LEONI





terça-feira, 27 de maio de 2014

Gonzalo Rojas

O QUE SE AMA QUANDO SE AMA? 
O que se ama quando se ama, meu Deus: a terrível luz da vida
ou a luz da morte? O que se busca, o que se encontra, que
é isso: amor? Quem é? A mulher com sua profundidade, suas rosas,
seus vulcões,
ou este sol colorido que é meu sangue furioso
quando nela entrou até as últimas raízes?

Ou tudo é um grande jogo, Deus meu, e não há mulher
nem há homem mas um só corpo: o teu,
repartido em estrelas de formosura, em partículas fugazes
de eternidade visível?

Nisto eu morro, oh Deus, nesta guerra
de ir e vir entre elas pelas ruas, de não poder amar
trezentas de cada vez, porque estou condenado sempre a uma,
a essa uma, a essa única que me deste no velho paraíso.

Sobre GONZALO ROJAS

André Derain


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Rainer Maria Rilke

OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE

Mas havia algo mais. Havia uma voz, a voz que há apenas sete semanas era desconhecida de todos: pois essa não era a voz do camareiro da corte. Essa voz não pertencia a Christoph Detlev, essa voz pertencia à morte de Christoph Detlev.

A morte de Christoph Detlev já habitava há muitos e muitos dias em Ulsgaard, falava com todos e fazia exigências. Exigia ser carregada, exigia o quarto a/ul, exigia o salão pequeno, exigia a sala. Exigia os cães, exigia que se risse, falasse, tocasse música, ficasse em silêncio ou tudo ao mesmo tempo. Exigia a presença de amigos, mulheres e falecidos, e exigia inclusive morrer: exigia. Exigia e gritava.

Pois quando a noite havia chegado e os membros da criadagem esgotada que não tinham vigília a cumprir procuravam adormecer, a morte de Christoph Detlev gritava, gritava e gemia, berrava por tanto tempo e com tanta insistência que os cães, que de início a acompanhavam uivando, emudeciam e não ousavam se deitar, mas, em pé sobre suas pernas longas, delgadas e trêmulas, tinham medo. E quando as pessoas ouviam no povoado, através da noite estival dinamarquesa, vasta e prateada, que a morte berrava, punham-se de pé como faziam quando havia temporal, vestiam-se e ficavam sentadas em tomo da candeia até que tudo tivesse passado. E as mulheres que estavam próximas de dar à luz eram alojadas nos quartos mais afastados e atrás dos tabiques mais espessos; mas elas a ouviam, ouviam-na como se estivesse em seus próprios corpos, e imploravam para que também as deixassem levantar, e iam, brancas e grandes, sentar-se junto aos outros com seus rostos apagados. E as vacas que pariam nessa época estavam desamparadas e ficavam trancadas, e, de uma delas, arrancaram o feto morto e todas as entranhas quando ele não quis sair de maneira alguma. E todos faziam mal o seu trabalho cotidiano e esqueciam-se de recolher o feno porque durante o dia receavam a noite e porque estavam tão fatigados das tantas vigílias e de levantar assustados que não podiam se lembrar de nada. E quando, no domingo, iam à igreja, branca e sossegada, oravam pedindo para que não houvesse mais nenhum senhor em Ulsgaard: pois esse senhor era terrível. E o que todos pensavam e oravam, o pastor dizia em alta voz de cima do púlpito, pois também ele não tinha mais noites e não podia compreender Deus. E também o dizia o sino, que agora tinha um rival apavorante que ressoava a noite inteira e contra o qual, mesmo que começasse a repicar a todo metal, nada podia. Sim, diziam-no todos, e havia um jovem que tinha sonhado que entrara no castelo e matara o senhor com o forcado do estrume, e as pessoas estavam tão irritadas, tão acabadas, tão exaltadas, que todas prestavam atenção nele enquanto contava seu sonho e, inteiramente sem se darem conta, mediam-no para ver se estaria à altura de semelhante ato. Era isso que as pessoas sentiam e era assim que falavam por toda a região em que, havia apenas algumas semanas, o camareiro da corte era amado e lastimado. Mas ainda que as pessoas assim falassem, nada mudou. A morte de Christoph Detlev, que morava em Ulsgaard, não se deixou coagir. Ela tinha vindo para ficar dez semanas, e as cumpriu. E durante esse tempo, foi mais senhoril do que Christoph Detlev Brigge jamais o fora, ela foi qual uma rainha, chamada, depois e para sempre, de a terrível.

Essa não foi a morte de um hidrópico qualquer, essa foi a morte maléfica, principesca, que o camareiro da corte levara durante toda a sua vida dentro de si e alimentara com seu próprio sangue. Todo o excesso de orgulho, vontade e força senhoril que ele próprio não pudera consumir em seus dias tranquilos passara para a sua morte, a morte que agora se encontrava em Ulsgaard e esbanjava.

Com que expressão o camareiro da corte Brigge não teria encarado aquele que lhe pedisse para morrer outra morte que não essa! Ele morreu a sua morte difícil.

[In Os cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução e notas de Renato Zwick,  L&MP, Porto Alegre, 2010, pp. 14-16]



domingo, 25 de maio de 2014

Marco Lucchesi

DUALISMO
Teu rosto é claro se meu sonho é escuro,
só vens me visitar quando não quero,
andas perdido quando te procuro,
se mais confio em ti mais desespero.
Se buscas o passado sou futuro,
se dizes a verdade és insincero,
se temo tua face estou seguro,
se chegas ao encontro não te espero.
Bem sei que em nosso olhar refulge o nada,
que somos, afinal, a negação
mais funda, mais sombria e desolada.
Como lograr, meu Deus, reparação,
enquanto segues longe pela estrada,
de nossa irreparável solidão?

[In Poemas Reunidos, São Paulo, Record, 2000, p. 51]

Sobre MARCO LUCCHESI


sábado, 24 de maio de 2014

Charles Baudelaire

CADA UM COM SUA QUIMERA
Sob um grande céu de cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que marchavam curvados.
Cada um deles trazia às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou o equipamento de um infante romano.
Porém o monstruoso animal não era um peso inerte; ao contrário, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito com suas duas garras imensas; e sua cabeça fabulosa elevava-se por sobre a cabeça do homem, como um desses horríveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo.
Interroguei um daqueles viajantes, indaguei-lhe aonde eles iam assim. Respondeu-me que não sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que evidentemente iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencível de caminhar.
Curioso: nenhum deles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia pendurado ao pescoço e agarrado às costas; dir-se-ia considerá-lo parte integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves dava indício do mínimo desespero; sob a tediosa cúpula do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado como o céu, eles marchavam com o ar resignado daqueles que são condenados a esperar eternamente.
E o cortejo passou ao meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto em que a redonda superfície do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender esse mistério; mas logo a irresistível Indiferença caiu sobre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido do que o estavam aqueles homens pelas suas esmagadoras Quimeras.

[In Pequenos poemas em prosa, tradução de Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro: José Olympio, 1950, pp. 21-22]




sexta-feira, 23 de maio de 2014

Miodrag Pávlovitch

O ESPÍRITO ZOMBA DE CONSTANTINOPLA
Às vezes desço até
às cúpulas lisas — assento de tempestades —
para auscultar o que fazem os carregadores de corpos
fico sentado e a canção deles desliza
por meus joelhos feito formigas
e as vozes ásperas da cartilagem
das praças clamam clemência
do sutil ouvido do mundo.

Desafortunado egoísmo
de seres comprimidos em cachos de carne
o que fazer deles
Dizer-lhes francamente
que nada mais se espera deles,
ou deixar-lhes no lado de cá do jardim do firmamento
a fé nos frutos do sofrimento...

Chamam-me novamente no coro,
vou-me apressado,
as canções erguem-se como poeira debaixo dos passos,
defendo-me do som das palavras com açoite,
silêncio! digo-lhes, enquanto as cúpulas ondulam
feito esguias flores, e o bater dos sinos
toma-se símbolo elevado para mim.
E verto-lhes noite sobre torres e cabeças.

As vezes desço até
os arrebaldes empobrecidos do cosmos
e mal sei por onde começar

[In  Miodrag Pávlovitch, Poetas do Mundo, Bosque da Maldição, Tradução Aleksandar Jovanovic, Brasília: Editora UNB, 2003, p. 50-53].


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Wislawa Szymborska

FIM E COMEÇO

Tradução de Regina Przybycien

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.

Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se afundar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que erguer a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar as janelas.

A cena não rende foto
e pode levar anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor já rondam
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabem
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem,
ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém vai se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.

Pavel Filonov - O Homem na Carroça (1915)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ernesto Sabato

ABADON O EXTERMINADOR - Excerto
Passei um dia muito ruim, querido B., estão me acontecendo coisas que não consigo explicar, mas enquanto isso e por isso mesmo trato de aferrar-me a este universo diurno das idéias. A tentação do universo platônico! Maior é o tumulto interior, mais tremendas são as pressões que nos acossam, mais nos sentimos inclinados a buscar uma ordem nas idéias. Sempre me ocorreu isso, mas deveria dizer que sempre ocorre isso. Lembra o célebre grego harmonioso com que nos encheram a cabeça no colégio secundário: é uma invenção do século XVIII, e faz parte desse arsenal de lugares comuns em que encontrarás também a fleugma dos britânicos e o espírito de medida dos franceses. As mortíferas e angustiantes tragédias gregas bastariam para aniquilar esta bobagem se não tivéssemos provas mais filosóficas, e particularmente a invenção do platonismo. Cada um busca o que não tem, e se Sócrates busca a Razão é precisamente porque necessita com urgência contra suas paixões: lia-se todos os vícios em seu rosto, lembras? Sócrates inventou a Razão porque era um insensato e Platão repudiou a arte porque era um poeta. Lindos antecedentes para estes propiciadores do Princípio de Contradição! Como vês, a lógica não serve nem mesmo para seus inventores.
Conheço bem essa tentação platônica, e não porque a tenham me contado. Primeiro, a sofri quando era um adolescente, quando me encontrei só, masturbando-me em uma realidade suja e perversa. Então descobri este paraíso, como alguém que se arrastou por um esterqueiro encontra um lago transparente onde limpar-se. E muitos anos mais tarde, em Bruxelas, quando pensei que a tena se abria sob meus pés, quando aquele rapaz francês que depois morreria nas mãos da Gestapo me confessou os horrores do stalinismo. Fugi para Paris, onde não só passei frio e fome no inverno de 1934, mas também desolação. Até que encontrei aquele porteiro da École Normale da Rue d’Ulm que me deixou dormir em sua cama. Todas as noites tinha de entrar por uma janela. Roubei então no Gibert um tratado de cálculo infinitesimal, e ainda recordo o momento em que, enquanto tomava um café quente, abri o livro tremendo, como quem entra em um silencioso santuário após ter escapado, sujo e faminto, de uma cidade saqueada e devastada pelos bárbaros. Aqueles teoremas foram me recolhendo como delicadas enfermeiras recolhem o corpo de alguém que pode ter quebrado a coluna vertebral. E, pouco a pouco, por entre as frestas de meu espírito destroçado, comecei a vislumbrar as belas e graves torres.
Muito tempo permaneci naquele reduto de silêncio. Até que um dia me descobri escutando (não ouvindo, mas escutando, ansiosamente escutando) o rumor dos homens, lá fora. Começava a sentir a nostalgia do sangue e da imundície, porque é a única forma como podemos sentir a vida. E que pode substituir a vida, mesmo com suas penas e finitude? Quem e quantos se suicidaram nos campos de concentração?
Assim estamos feitos, assim passamos de um extremo ao outro. E nestes amargos tempos finais de minha existência, em várias ocasiões voltou a tentar-me aquele território absoluto, jamais pude ver um observatório sem sentir a inversa nostalgia da ordem e da pureza. E embora não tenha desertado desta batalha com meus monstros, embora não tenha cedido à tentação de reingressar a um observatório como um guerreiro a um convento, às vezes o fiz vergonhosamente, refugiando-me nas idéias sobre a ficção: a meio caminho entre o furor do sangue e o convento.

[In Abadon o Exterminador, tradução de Janer Cristaldo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, pp. 72-73].


terça-feira, 20 de maio de 2014

Lélia Coelho Frota

AQUERÔNTICO
É de noite que os mortos voltam
em sua barca de papel
a roçar a porta do sono
em que inermes escurecemos
mais um dia — pulmão de chama
contraindo a luz da manhã!
E de noite, pela amurada
que vêm se debruçar conosco
e indulgem — apenas sorriem
sem qualquer resguardo, sem ênfase
em ir e vir, em ter partido.
Impressões de viagem? Alheias
como a do perfil de uma dracma.
Remiram-nos maliciosos
pensos de ternura se quedam
em sua fosca primavera,
atrás de embaciados acenos,
pacientes, à nossa espera.

[In Poesia Reunida 1956-2006, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2013, p. 256]





sábado, 17 de maio de 2014

Juan Gelman

PRESENÇA DO OUTONO
Devia ter dito te amo.
Mas estava o outono fazendo sinais,
cravando suas portas em minha alma.

Amada, tu, recebe-o.
Vai buscá-lo, transporta a tua doçura
por sua doçura-mãe.
Vai buscá-lo, vai, outono duro,
outono suave em quem reclino meu ar.

Vai buscá-lo, amada.
Não sou eu quem te ama este minuto.
É ele em mim, seu invento.
Um lento assassinato de ternura.

[In Amor que serena, termina? Trad. Eric Nepomuceno,  Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 87]



Juan Gelman

ORAÇÃO
Habita-me, penetra-me.
Seja teu sangue um só com meu sangue.
Tua boca entre em minha boca.
Teu coração aumente o meu até explodir. 
Desgarra-me.
Caias inteira em minhas entranhas.
Andem tuas mãos em minhas mãos.
Teus pés caminhem em meus pés, teus pés. 
Queima-me, arde-me.
Cubra-me com tua doçura.
Banha-me tua saliva o paladar.
Estejas em mim como está a madeira no palito. 
Que já não posso mais assim, com esta sede 
queimando-me.

Com esta sede queimando-me.

A solidão, seus corvos, seus cães, seus pedaços.

[In Amor que serena, termina? Trad. Eric Nepomuceno,  Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 39]

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Túvia Carmi

PEQUENAS PALAVRAS
Tradução: Cecília Meireles

Outrora, um grande oceano corria entre nós
e eu compreendia bem
que tuas marés nas horas noturnas
nada podiam contra as lonjuras da lua.
Agora, uma única rua se condensa entre nós.
E eis que não posso mais compreender
que o teu orgulho diurno
nada possa contra as lonjuras do tempo.

Eis que eu detestava o vento nas vinhas
e as crianças que choram
e a noite estendendo-se aos confins de uma estréia
porque teus passos não haviam ainda ensurdecido os
[meus ouvidos.

Estas horas a teus pés como serpentes malvadas.
O refluxo da minha esperança como uma lua morta
Estas pequenas palavras como uma palpitação.
Os batimentos de meu coração —
eu mesmo.

Ouço apenas meu sangue
empurrando para a sua fonte,
tropeçando, recuando, subindo,
acossado sem saída,
entregando-se à sua alga
o ao lilás que flutuará
branco, sedoso, imaculado
em cima da água.

[In Antologia da Literatura Hebraica Moderna, Rio de Janeiro, Biblos, 1969, p. 86-87].

Sobre o autor: Túvia Carmi, nascido em Nova York em 1925  e educado em Israel. Participou da Guerra da Independência. Foi durante muitos anos redator da revista literária “Massá”. Conta com três coleções poéticas caracterizadas pela sua musicalidade e pelo ritmo de seus versos. Fez a tradução para o Hebraico de uma Antologia da poesia francesa contemporânea.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Isabel Mendes Ferreira

(fora de tempo)
de nada te serviu o deslumbre a fome a mirra a fuligem o ouro o vestido o emaranhado das silvas nos cabelos mercuriais nem os seios incontinentes a caírem das árvores como nêsperas cadavéricas nem as cartas aos amigos nem o retrato de vénus em focagem ácida para disfarçar o mal maior da mentira menor. de nada serviu seres o servo disponível e atento como o vento do norte a ser agenda sem data marcada para o passado. porque o presente é um poço onde a tensão da água se sente mar profundo povoado de mistérios e mostrengos. a cada momento foste pombo de correio sem asas e cavalo altivo de pupilas elípticas e palavras elásticas que davam para tudo e para todos e para o futuro. e porém de nada te serviu o fértil envio de metáforas caídas como anjos crucificados no pó. ossos geometricamente calcinados por um punhado de sirenes agudas mesmo ao centro da garganta antes ave agora muda. que nunca mudará nem a honra nem a memória. _______________________ agora sim finalmente fora de qualquer tempo.
em nome de todos os muros. que nada nem ninguém é justificável. apenas pobres heterónimos. fascinação de todos os fins.

Via Facebook. Todos os direitos reservados. 


Nelly Sachs

Preparam-se as camas para as dores
O linho é a sua confidente
Lutam com o arcanjo
que nunca abandona a sua invisibilidade
Hálito carregado de pedra busca vias novas para o
campo aberto
mas a estrela crucificada
cai sempre de novo como fruta no chão
sobre o seu sudário —

[In Poesias, Tradução de Paulo Quintela, Estudo introdutivo de Joseph Bernfeld, Ilustrações de Jean-Michel Perche, Rio de Janeiro, Ed. Opera Mundi, 1975, p. 209].

==========

Quantos mares perdidos na areia,
quanta areia dura de orações na pedra,
quanto tempo chorado na corneta
dos búzios,
quanto abandono de morte
nos olhos de pérola dos peixes,
quantas trombetas matinais no coral,
quantos padrões de estrelas no cristal,
quantos germes de riso na garganta da gaivota,
quantos fios de nostalgia
fiados nas órbitas noturnas dos astros,
quanta terra fecunda
para a raiz desta palavra:
Tu -
atrás de todas as grades em ruínas
dos mistérios
Tu -

Ibidem

==========

Só no sono têm estrelas corações
e bocas.
Arfar de fluxo e refluxo
exercita co’as almas
o último preparativo.
E os penedos, que das águas emergem,
os pesados rostos de pesadelo,
são mesmo baleias ardentes
traspassadas pela alavanca da saudade —
Como porém há de haver amor
no fim das noites,
com os astros tornados transparentes?
Pois minério já não pode ser minério
onde os bem-aventurados estão —

Ibidem

Sobre Nelly Sachs




quarta-feira, 14 de maio de 2014

Ana Luísa Amaral

O SONHO
Vinha de trás, daquela noite
em que escrevera os seus versos mais belos,
depois de ter reunido os conselheiros próximos
e decidido continuar as sementes
que seu pai havia já plantado.
As dunas tinham sido a glosa a romper,
mas, após esses versos,
adormecera sobre a mesa
e sonhara um sonho de mar e marés bonançosas,
cheia de areia branca e arvoredos.

No seu sonho, não havia outra gente:
só a sua.

Munido desse sonho
e da música que ouvira a trovadores,
sempre bem-vindos no seu castelo,
desistira de uma guerra, trocando-a por vilas.
A paz fora firmada,
como as canções que ouvia e que falavam também de paz.

De muito lhe serviu sua mulher,
de flores lendárias no regaço e serventia boa,
como eram então de boa ou má serventia as mulheres
que em silêncio acompanhavam os homens,
fossem eles pequenos ou poderosos.

No sonho, sonhara elmos e cotas de malha,
roupagens de guerra ainda desconhecidas no seu tempo,
mas que de serventia de guerra nada tinham:
só belas e brilhantes.

Vira-os, aos da sua gente,
alguns com barba longa e olhos claros,
chegar em botes a um mar de areia branca.
Os botes tinham sido descidos de navios esguios,
as velas como lenços de cabeça de mulher,
mas imensos e brancos,
desenhados a cruzes.
E os navios do seu sonho
dariam nome a animais delicados
parecidos com nenúfares,
que vogavam à superfície das águas.

Ele vira os olhos da sua gente cheios da cor,
e do céu, e da água transparente dessas praias.
Mas nunca vira no seu sonho
outra gente que não fosse a sua.

Disse quem veio muito depois dele
em seta pelo tempo
que os ramos dos pinheiros e o cheiro a resina
entraram na feitura desses navios,
mas que era feito de carvalho o tabuado do seu casco.

Porém, ele acreditava, porque o sonhara,
que as formas esbeltas e doces
vogando à superfície das águas
levavam no futuro a sua gente
e vinham das sementes pensadas nessa noite.

E, como os quase nenúfares azuis, elas seguiam.

Para a frente e na esteira
dos seus mais belos versos.

[In Vozes, São Paulo, Iluminuras, 2013, pp. 86-87]

By Monet

terça-feira, 13 de maio de 2014

Lautréamont

OS CANTOS DE MALDOROR - Excerto do Canto Segundo

"Agarro a pena que vai construir o segundo canto... instrumento arrancado às asas de alguma águia real vermelha! Mas... o que têm meus dedos? As articulações permanecem paralisadas, desde que comecei meu trabalho. No entanto, preciso escrever...É impossível! Pois bem! Repito que preciso escrever meu pensamento; tenho o direito, como qualquer outro, de submeter-me a essa lei natural...Mas não, não, a pena permanece inerte!...Veja, vejam só, através dos campos, o relâmpago que brilha ao longe. A tempestade percorre o espaço. Chove...Chove sempre...Como chove!...O relâmpago explodiu...Abateu-se sobre minha janela entreaberta, e estendeu-me no assoalho, atingindo a testa. Por que esta tempestade, e por que a paralisia dos meus dedos?Será um aviso do alto para me impedir de escrever, e para pensar melhor nisso a que me exponho, ao destilar a baba da minha boca quadrada? Mas essa tempestade não me atemorizou. Que me importaria uma legião de tempestades! Esses agentes da polícia celeste cumprem com zelo seu penoso dever, a julgar sumariamente por minha testa ferida. Nada tenho a agradecer ao Todo Poderoso, por sua notável destreza; ele enviou um raio de modo a cortar precisamente meu rosto em dois, desde a testa, lugar onde a ferida foi mais perigosa: que um outro o felicite! Mas as tempestades atacam alguém mais forte que elas. Assim, pois, horrível Eterno com cara de víbora foi preciso que, não contente por teres colocado minha alma entre as fronteiras da loucura e os pensamentos de furor que matam com lentidão, tenhas acreditado, além disso, ser mais conveniente a tua majestade, depois de um maduro exame, fazer que saísse da minha testa uma taça de sangue!... Mas, enfim, quem se queixa? Sabes que não te amo, e que, ao contrário, te odeio; porque insistes: Quando teu comportamento deixará de envolver nas aparências da extravagância? Fala-me com franqueza, como a um amigo: não desconfias que estás a mostrar nessa perseguição odiosa, uma precipitação ingênua, cujo ridículo nenhum dos teus serafins ousaria por em evidência? Que cólera toma conta de ti? Fica sabendo que, se me deixasses viver a salvo de tuas perseguições, meu reconhecimento te pertenceria... Vamos, Sultão, com tua língua, livra-me desse sangue que suja o assoalho. O curativo está pronto; minha testa, estancada, foi lavada com água salgada, e enrolei ataduras através do meu rosto. O resultado não é infinito: quatro camisas cheias de sangue e dois lenços. Ninguém acreditaria, à primeira vista, que Maldoror contivesse tanto sangue em suas artérias; pois em seu rosto apenas brilham os reflexos de cadáver. Mas, enfim, é isso. Talvez tenha sido quase todo o sangue que seu corpo pudesse conter, e é provável que não tenha sobrado muito. Basta, basta, cão ávido; deixa o assoalho como está; tens a barriga cheia. Não deves continuar a beber, pois logo vomitarás. Estás devidamente saciado, vai te deitar em teu canil; faz de contas que nadas na felicidade: pois não pensarás na fome durante três dias imensos, graças aos glóbulos que fizeste descer por tua goela com uma satisfação solenemente visível. Tu, Léman, pega uma vassoura; eu também gostaria de pegar uma, mas faltam-me as forças. Compreendes, não é, que me faltem as forças? Guarda tuas lágrimas na bainha; ou então, não acreditarei que tenhas a coragem de contemplar, a sangue frio, a grade cutilada, ocasionada por um suplício que para mim já está perdido na noite dos tempos passados. Irás à fonte, apanhar dois baldes d´água. Lavado o chão, guardarás esses panos no quarto ao lado. Se a lavadeira retornar esta tarde, como deverá fazê-lo, tu os entregarás a ela; mas como chove muito, já faz uma hora, e continuará a chover, não creio que ela vá sair de casa; então, virá amanhã pela manhã. Se te perguntar de onde veio tanto sangue, não tens a obrigação de responder-lhe. Ó! como estou fraco! Não importa; ainda terei forças para erguer a caneta, e a coragem de escavar em meu pensamento. O que deu no Criador, para atormentar-me, como se eu fosse uma criança, com uma tempestade que carrega o relâmpago: Nem por isso persisto menos em minha resolução de escrever. Estas ataduras me incomodam, e a atmosfera do meu quarto recende a sangue..."

[In Os cantos de Maldoror Poesias Cartas, Tradução, prefácio e notas de Cláudio Willer,  2a. ed. rev. e ampl., São Paulo: Iluminuras, 2005, pp. 109-111]



segunda-feira, 12 de maio de 2014

García Lorca

ELEGIA A DONA JOANA, A LOUCA
DEZEMBRO DE 1918
(Granada)
A MELCHOR FERNÁNDEZ ALMAGRO

PRINCESA enamorada sem ser correspondida.
Cravo vermelho num vale profundo e desolado.
A tumba que te guarda ressuma tua tristeza
através dos olhos que abriu sobre o mármore.

Eras uma pomba com alma gigantesca
cujo ninho foi sangue de solo castelhano,
derramaste teu fogo sobre um cálice de neve
e ao querer alentá-lo tuas asas se partiram.

Sonhavas que teu amor fosse como o infante
que te segue submisso recolhendo teu manto.
E em vez de flores, versos e colares de pérolas,
te deu a Morte rosas murchas em um ramo.

Tinhas no peito a formidável aurora
de Isabel de Segura. Melibéia. Teu canto,
como calhandra que olha quebrar-se o horizonte,
se toma de repente monótono e amargo.

E teu grito estremece os alicerces de Burgos.
E oprime a salmodia do coro cartusiano.
E choca com os ecos dos lentos sinos,
perdendo-se na sombra tremente e lacerado.

Tinhas a paixão que dá o céu da Espanha.
A paixão do punhal, da olheira e do pranto.
Oh! princesa divina de crepúsculo vermelho,
com a roca de ferro, e de aço o fiado!

Nunca tiveste o ninho, nem o madrigal dolente,
nem o alaúde jogralesco que soluça distante.
Teu jogral foi um mancebo com escamas de prata,
e um eco de trombeta sua voz enamorada.

E, sem embargo, estavas para o amor formada,
feita para o suspiro, o mimo e o desmaio,
para chorar tristeza sobre o peito querido,
desfolhando uma rosa de olor entre os lábios.

Para olhar a lua bordada sobre o rio
e sentir a nostalgia que em si leva o rebanho
e olhar os eternos jardins da sombra,
oh! princesa morena que dormes sob o mármore!

Tens os olhos negros abertos à luz?
Ou se enroscam serpentes em teus seios exaustos...
Para onde foram teus beijos lançados aos ventos?
Para onde foi a tristeza de teu amor desgraçado?

No cofre de chumbo, dentro de teu esqueleto,
terás o coração partido em mil pedaços.
E Granada te guarda como santa relíquia,
oh! princesa morena que dormes sob o mármore!

Heloísa e Julieta foram duas margaridas,
mas tu foste um vermelho cravo ensanguentado
que veio da terra dourada de Castela
para dormir entre neve e ciprestais castos.

Granada era teu leito de morte, Dona Joana,
os ciprestes, teus círios; a serra, teu retábulo.
Um retábulo de neve que mitigue tuas ânsias,
com a água que passa junto a ti! A do Douro!

Granada era teu leito de morte, Dona Joana,
a das torres velhas e do jardim calado,
a da hera morta sobre os muros vermelhos,
a da névoa azul e da murta romântica.

Princesa enamorada e mal correspondida.
Cravo vermelho num vale profundo e desolado.
A tumba que te guarda ressuma tua tristeza
através dos olhos que abriu sobre o mármore.

[In Livro de Poemas (1921), In Obra Poética Completa, Tradução de Willian Angel de Mello, Martins Fontes, São Paulo, 1996, pp. 29-31].





domingo, 11 de maio de 2014

Ailton Volpato

E se foi, com a música,
o músico na pauta bamba que é a vida.
Esteve só, nos sóis tocados,
inflamando o peito;
até ouvirem orbitar a Terra e os seus dons,
alqueires de homens semeados
em luz e sombra - o amor.

E as chuvas musicais,
executadas na batuta criadora
de ações e repousos,
alagaram os sons,
- penhasco sulcado dos olhos
ao barro batido aos pés -
uma nova criação.

E as criaturas  se recriam
e se reprocriam
nas vivas sinfonias de Deus.
© Ailton Volpato - Todos os direitos reservados





sábado, 10 de maio de 2014

Octavio Paz

A POESIA
Por que tocas novamente meu peito?
Chegas, silenciosa, em segredo, armada,
como guerreiros numa cidade adormecida;
queimas minha língua com teus lábios, polvo,
e despertas fúrias, alegrias
e esta angústia sem fim
que queima o que toca
e gera em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se derrete
como o metal no fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
só, despido, despojado,
sobre a imensa rocha do silêncio
como um combatente solitário
contra hostes invisíveis.

Abrasadora verdade
essa a que me empurras?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta;
Para que esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz
de conter-te,
avidez que só na sede se sacia,
chama que a todos os lábios consome,
espírito que não tem nenhuma forma
mas faz arder todas as formas
com um fogo indestrutível em segredo.

Mas insistes, lágrimas escarnecida
e alças em mim teu império desolado.

Escalas o mais profundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Creces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Só tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.

Teus fantasmas batem em meu peito
despertas meu tato,
congelas meu rosto
e tornas proféticos meus olhos.

Percebo o mundo e te toco
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Nublam meus olhos imagens opostas,
e as mesmas imagens
outras, mais profundas, negam-nas
ardente balbucio,
águas que inundam uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são a mesma coisa.

Insiste, vencedora,
porque só existo porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer apenas tua existência
e tuas sílabas secretas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És somente um sonho,
mas em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Roço ao tocar teu peito
a elétrica fronteira da vida,
a treva do sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda por destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém em nenhuma forma
nem se demora sobre o que gera.

Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, minha mãe,
despertando-me de tudo,
faz-me sonhar teu sonho,
unta meus olhos com azeite
para que ao conhecer-te me conheças.

Sobre Octavio Paz

By Christian Vizl

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Matilde Espinosa

NADA MAIS CERTO
        A Luis Carlos Pérez
        In memoriam

Nada mais certo
que tua ausência
e este incansável vento.
Revestida de sombras
a cor dos dias
recolhe-se nos meus e nos teus
silêncios
e roço teu pensamento

Às vezes o mundo se espatifa
em minhas mãos
e ouço um grito que marcha à tua frente
"Onde se escondem as horas
sem o terror noturno?"

A pergunta se perde
e as dobradiças doloridas
da porta entreaberta
são os passos misteriosos
deste vento implacável.

24 de fevereiro de 2004




quarta-feira, 7 de maio de 2014

Eloy Sánchez Rosillo

O VIAJANTE
Às vezes me pergunto o que teria sido de mim
sem as recordações que tão diligentemente guardo:
aquele beco que cheirava a madeira e fruta
num bairro úmido de Paris,
as árvores dormindo ao sol
numa antiga praça de Florença,
o órgão que vibrava na catedral de Orvieto
num amanhecer distante,
o barulho da chuva na janela
de um quarto no qual sofri,
os olhos escuros que me miraram
num crepúsculo de nem sei mais onde...

Quando a urgência dos trabalhos cotidianos
traspassa meus ossos e me impede
de respirar com amor os espessos odores,
frios, sem luz, como de hábito,
fecho os olhos, retorno lentamente
às terras que percorri em outro tempo,
aos lugares em que o olvido não impôs seu silêncio.
Acaricio os dias passados,
as horas que brilham na distância
como cidades reclinadas à beira da noite.

E penso com tristeza como era bonito andar tantos
[caminhos,
mas você  sabe que só posso pisá-los
com o pobre suporte da memória. 




terça-feira, 6 de maio de 2014

Nathan Alterman

LUA
Mesmo as imagens familiares têm um instante de nascimento.
Céus sem pássaros
são estranhos e fechados.
A noite fica à janela, ao luar,
e a cidade está mergulhada nas lágrimas dos grilos.

E ao ver que um caminho espera ainda um passante
e a lua
em cima da baioneta do cipreste,
dizes: meu Deus, tudo isso ainda existe?
Pode-se ainda, em voz baixa, perguntar como estão passando?

A água das poças olha-nos e reflete-nos.
A árvore descansa
com seus brincos vermelhos.
Nunca, meu Deus, arrancarão de mim
o sofrimento dos teus grandes brinquedos.

[Trad. Cecília Meireles]

[In Antologia da Literatura Hebraica Moderna, Rio de Janeiro, Biblos, 1969, pp. 42-43].

SOBRE NATHAN ALTERMAN

Pintura: Valevskaya Valentina Mihaylovna



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Marianne Moore

O ARGONAUTA
   Para a autoridade com esperanças
que o mercenário é que concebe?
   O escritor seduzido pela
   fama do chá das cinco e pelo
conforto do trabalhador? Para eles não é que
   a fêmea do argonauta
   faz fina concha de vidro.

   Oferecendo o perecedouro
suvenir de esperança, o exterior
   de branco fosco e a superfície
   interna de bordas macias
acetinada como o oceano, a fazedora
   vigilante dela toma
   conta dia e noite; quase

   não come antes de chocar os ovos.
Em seus oito braços sepultada
   oito vezes, porque é num certo
   sentido uma espécie de polvo,
a carga de vidro velino-ovino embalada
   está oculta, não moída;
tal como Hércules, unhado

   por caranguejo leal à hidra,
teve êxito por tenacidade,
   os ovos intensivamente
   vigiados que saem da
concha a libertam ao ganharem liberdade —
   deixando o vespeiro de eivas
   de branco no branco e as dobras

   jônicas estreitas de quitão
iguais àquelas linhas na crina
   de um cavalo do Pártenon,
   em torno às quais os braços se
feriram, como se soubessem que a única
   fortaleza em cuja força
   se confia é o amor.

[In Poemas, seleção João Moura Jr.; tradução e posfácio José Antonio Arantes. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, pp. 113-115].


domingo, 4 de maio de 2014

Hanna Senesh

COLHEMOS FLORES
Colhemos flores nos campos, nas montanhas,
Inspiramos o renovado ar da primavera.
O sol nos banhou com o calor de seus raios
Em nossa pátria, um lar que prospera.
Vamos ao encontro de nossos irmãos no exílio
Através do frio que o rigoroso inverno produz.
O coração trazendo a promessa da primavera.
Os lábios entoando uma canção de luz.
[Início de março, 1944].

MONTANHAS CELESTES...
Montanhas celestes para sempre banhadas em calma
Com calma me contagiaram.
Senhor! Permita que leve impressa na alma
O que as montanhas me inspiraram.
[Biela-Voda (Eslováquia), 1938].

NAS FOGUEIRAS DA GUERRA
Nas fogueiras da guerra, no incêndio, na queimada,
Dias tensos que o sangue sente bem,
Aqui estou com a minha pequena lanterna,
Procurando, procurando alguém.

As chamas do incêndio abafam minha luz,
O fogo me ofusca e não consigo ver;
Como olhar, observar, saber, intuir,
Quando na minha frente ele estiver?

Dê um sinal, Senhor, uma marca em sua fronte,
Para que no fogo, queimada e no sangue também,
Eu reconheça o brilho puro e eterno,
Como o tenho buscado: alguém.
[11 de outubro de 1940].

ÀS MÃES DA DIÁSPORA
Um dia e mais outro, uma semana ou duas,
Um ano ou década - esperar
Uma carta, uma linha ou até uma letra chegar.

Incontáveis as noites
Passadas sob os açoites
De imagens sonhadas com pavor.
Esconder num vasto mar
De sangue, de pesar,
Uma lágrima.
Que podemos responder deveras?
Um olhar, uma palavra apenas:
Mãe!
[18 de maio de 1942]. 

SEMENTE
Uma semente caiu, plantou-se, um amarelado grão,
Não entre as rochas, nem sobre a calçada, no chão.
Acolha-o - com sua camada de pó escuro,
Proteja-o do sol quente, do inverno duro,
Semente de vida encerrada em casca.
Segredo eterno, grânulo, gota, lasca,
Esperando sua deixa, na terra apertada ele vigia,
Por um sinal de primavera, raio de luz, sol, dia.
[24 de dezembro de 1942].

UM— DOIS — TRÊS
Um —Dois—Três... oito de extensão,
Dois passos é a largura da minha cela na prisão...
A vida paira sobre mim como uma interrogação.

Um—Dois—Três... mais uma semana, talvez,
Ou quem sabe eu ainda esteja aqui no fim do mês,
Mas sinto que a morte se aproxima com rapidez.

Eu podia ter feito vinte e três anos em julho.

O que é mais precioso, apostar decidi.
Dados foram lançados.
Perdi.
[Budapeste, 20 de junho de 1944].

A DANÇA DOS MINUTOS
A luz das lanternas empalidece na rua,
No céus, como brasa, as estrelas seguem queimando.
No meu coração uma nova esperança se acentua,
Pelo caminho da vida continuo vagando.
Ao meu redor, numa fila oculta ao olhar,
Surgem os momentos, numa roda a dançar
Um clamor e um êxtase vindos do além;
Eu os observo com um pouco de susto,
E. curiosa, por fim lhes pergunto,
O que, dentro de si, escondem tão bem?

Uns são a imagem da pura alegria,
Outros manifestam amargura sombria.
Um, carinhoso, só mostra afeições,
O outro se gaba de quebrar corações.

Todos se vão, outros logo aparecem,
São todos distintos, porém se parecem,
E esta animada cadeia continua,
Até o dia em que desapareça a lua.
Eles vêm sem cumprimentar,
E se vão sem se importar,
Flutuam sempre em silêncio absoluto,
Rumo ao infinito dissoluto.
[Fevereiro de 1937].

Sobre Hanna Senesh

[In Diários, Poesias, Cartas, Organização e Tradução do Hebraico, Inglês e Espanhol de Frida Milgrom, Tordesilhas, São Paulo, 2011].



sábado, 3 de maio de 2014

Katherine Mansfield

DIÁRIO
24 de dezembro de 1915
     Sentar-se em frente a um fogo de lenha, mãos cruzadas no colo, olhos fechados. Imaginar-se vendo, além das pálpebras, toda a beleza dançante do dia. Sentir na garganta o calor, como eu imaginava sentir a mancha amarela, quando Bogey segurava sob o queixo um botão-de-ouro, quando a respiração é tão gostosa que se tem medo até de respirar, é como sentir no peito o adejar de uma borboleta. Provar o calor do sol que se derreteu na boca; sentir ainda a branca fragrância maleável que se estende sobre os campos de junquilhos e o odor selvagem e saboroso do alecrim que cresce em pequenos tufos entre as tochas vermelhas próximas da beira-mar.
     A lua está surgindo, mas o dia relutante se prolonga entre o mar e o céu. O mar está salpicado de um tom rosa, da cor das cerejas ainda não maduras, e no céu há uma luz amarela flutuante, como as asas dos canários. Muito resistentes e firmes são os troncos das palmeiras. Emergindo de seu topo, os rijos buquês verdes parecem cortar o ar da tarde e entre eles as árvores de goma azuis, altas e esguias, com folhas em formato de foice e ramos pendentes meio azuis, meio violetas. A luz está justamente acima da montanha atrás da aldeia. Os cães sabem que ela está lá; já começam a latir. Os pescadores gritam e assobiam uns para os outros, enquanto recolhem os barcos. Alguns jovens cantam à meia-voz lá embaixo, na praia, e há som de choro de criança, criancinhas com as faces queimadas e com areia entre os dedos, sendo levadas para casa, para a cama.
     Estou cansada, alegremente cansada. Você acha que as margaridas se sentem alegremente cansadas, quando se recolhem para a noite e o orvalho desce sobre elas?

1916
22 de janeiro — O que é, realmente, que desejo escrever? Eu me pergunto: sou agora menos escritora do que costumava ser? A necessidade de escrever é agora menos urgente? Ainda me parece natural buscar essa forma de expressão? A linguagem a terá preenchido? Eu pretendo algo mais que relatar, relembrar, encorajar-me?
     Há ocasiões em que esses pensamentos me deixam meio assustada e quase me convencem. Eu digo: “Você está agora tão satisfeita consigo mesma, por estar ativa, por estar viva, por viver, por aspirar a um sentido maior para a vida e a um sentimento de amor mais profundo, que aquela outra coisa se foi de você.”
     Mas não, no fundo não estou convencida, pois no fundo jamais meu desejo foi tão ardente. Apenas a forma que eu escolheria mudou por completo. Não me preocupa mais a mesma aparência das coisas. As pessoas que viveram, ou que eu desejava trazer para minhas histórias, não me interessam mais. Os enredos de minhas histórias me deixam inteiramente desinteressada. Admitindo que essas pessoas existam e todas as diferenças, complexidade e resoluções sejam verdadeiras para elas — por que iria eu escrever sobre elas? Não estão próximas de mim. Todos os fios falsos que me prendiam a elas estão cortados por completo.
     Agora, agora quero escrever as recordações de meu país natal até que o estoque se acabe. Não apenas por ser uma “dívida sagrada” que saldo com meu país, por termos nascido lá, meu irmão e eu, mas também porque em meus pensamentos caminhamos os dois por todos aqueles lugares relembrados. Nunca me sinto longe deles. Desejo ardentemente recriá-los ao escrever.
     Ah, as pessoas — as pessoas que amamos, lá — sobre elas também eu quero escrever. Outra “dívida de amor”. Por um momento eu quero fazer nosso país desconhecido saltar aos olhos do Velho Mundo. Ele deve ser misterioso, como se flutuasse. Deve tirar o fôlego. Deve ser “uma daquelas ilhas”. Vou contar tudo, até mesmo como a cesta de lavanderia guinchava e chiava. Mas tudo deve ser contado com um senso de mistério, uma luminosidade, um arrebol, porque você, meu pequeno sol, se pôs. Você perpassou a ofuscante orla do mundo. Agora eu devo fazer a minha parte.
     Depois, quero escrever poesia. Sempre estremeço ante a poesia. A amendoeira, os pássaros, o bosquezinho onde você está, as flores que você não vê, a janela aberta sobre a qual eu me debruço e sonho que você está encostado em meu ombro, as vezes em que sua fotografia parece triste. Mas quero escrever, sobretudo eu quero escrever uma espécie de longa elegia para você. Talvez não em poesia. Nem em prosa, talvez. Quase com certeza num tipo de prosa especial.

[...]
 .
17 de fevereiro — Estou triste, hoje. Talvez seja o velho vento lúgubre. Pensar em você, em espírito, não é o bastante neste momento. Quero você ao meu lado. Preciso me lançar a fundo no meu livro. Então, ficarei feliz. Perder-me, perder-me para encontrar você, querido. Ah, quero que este livro seja escrito. Preciso fazê-lo. Ele deve ser encadernado, empacotado e mandado para a Nova Zelândia. Sinto isso, de todo o coração. Assim será feito.

[Excerto de Diário & Cartas, Tradução de Julieta Cupertino, Revan, Rio de Janeiro, 1996, pp. 60-62]

Sobre Katherine Mansfield





sexta-feira, 2 de maio de 2014

Hélia Correia

EXCERTO DE "A CASA ETERNA"

   «Suba, tome sentido nos degraus», recomenda a mulher e toma a dianteira. Alterou-se-lhe a voz que era fraca, hesitante e agora empurra autoritariamente as vibrações do ar.
    Esta casa que eu tanto imaginara, querendo ver levantados os cheiros, as paredes, circula no entanto como um redemoinho de pós e de bolores em tomo das chinelas de Perpétua. O que quer que existiu aqui está já desfeito. Não houve tempo para que a podridão tratasse dos lugares a seu modo, um por um, conforme os usos, conforme as horas que lhes foram dedicadas. É um corredor velho e sem memória. Está reduzido à sua própria sombra. «Olhe se põe um pé em falso, olhe o soalho», diz a mulher, mas não me guia os passos. As suas chinelitas de fazenda parecem saltitar, tomam-se leves e como que doiradas naquela escuridão, brilham e apagam-se à maneira dos insectos. A madeira ressoa cavamente, está feita um algodão, fofa, sem consistência. E os passos flutuam numa fascinação de pesadelo.
    O que há por trás das portas? vou dizendo. Nada, coisas, responde. Bicharada. Há com certeza luz, vidraças por abrir. A caseira rirá, terá essa luxúria de me pôr aos tacteios, de me fazer talvez torcer um tornozelo, limpa que traz a superfície de consciência. «Bem avisei, não quis tomar cautela...» Terminando-se assim esta intrusão em acabrunhamento, em vergonha dorida. «Uma estranha, dirá, depois, na padaria, chegar ali como uma estranha, a querer ver tudo.» E encolherá os ombros, indignada.

    «Pronto, aqui era o quarto», diz Perpétua e cola-se à ombreira para me deixar passar. Avisto a colcha de algodão adamascado, cor de romã, ainda arrepanhada, sob uma manta e os estilhaços do entulho. «Vê a perna da cama? É com os livros. Ou vinha tudo por aí abaixo.»
    A casa deve ter os seus recursos para se limpar de todas as presenças. Faz sentir que jamais alguém aqui entrou. O espírito dos anos lambeu-se e sacudiu-se como um bicho de pêlo. E tudo se tomou silencioso e vazio.

    «Não esteve aqui ninguém», penso em voz alta. Mas a mulher aceita a frase sem ouvir, põe-se de novo a chinelar à minha frente. Leva-me ao rés-do-chão, ao lado da cozinha, ao que fora talvez uma casa da lenha, um cubículo fresco, com janelo. «Aqui, trazia-a mais debaixo de olho.»
    Há como que um instinto narrativo na escala com que ordena esta visita, um faro que estabelece e isola os fulcros onde o que quer que fosse de ousado e misterioso veio a ter um lugar. Também aqui não restam vestígios da sobrinha, a não ser umas tachas que afixavam decerto cartazes nas paredes. «Tinha aí um divã, as roupas numa cesta. Queria era tomar banhos que eu sei lá.»
    Aos poucos reencontra o gosto pela fala. Aliviou o medo e eu prefiro parar de lhe fazer perguntas. Dá-me entrada na sala de jantar onde os aparadores descaem levemente porque o chão abateu. Na grande mesa de castanho, aberta, amontoam-se malgas amarelas, garrafões com a palha apodrecida. No lambril de azulejos há emendas absurdas, pastoras e moinhos cortam aqui e além aquilo que parece um antigo painel com cenas de tapada. Junto às duas janelas com banquinhos, alguém deu grandes chapadões de cal para alisar o esventramento da parede.
    Perpétua faz subir uma vidraça, debruça-se a cheirar as árvores, o terreiro, e isso fá-la cobrar alguma cor. «Sentava-se-me aqui, diz ela, a tarde inteira.» Não compreendo acerca de quem fala. O sol-poente pega-lhe ao cabelo um fogo quase negro, de carvão.
    Dos buracos do chão vem o bafo das velhas areias de uma adega onde durante muitos anos azedaram as espumas do vinho que fervia. Não sinto encantamento algum em tudo aquilo e é por isso que faço brutalmente a pergunta:
    — Acha que não passou de uma história de amor?
    A mulher vira a cara para mim, mas por acção do sol ou do que quer que seja, deixou completamente de me ver.
    — Assim — insisto ainda — como nestas novelas?
    Ela sacode os ombros, fatigada. Conduz-me, chinelando, para a saída, tomada de repente por uma pressa, um tique de ansiedade. Dir-se-ia que quer expulsar-me antes da noite. À porta, ri-se e encara-me por fim:
    — Aquilo foi o diabo. E o que foi.
    Fica a dizer-me adeus, hospitaleira, amável, tendo aos pés o cão fulvo que a chegada da noite agora arroxeou.

[In A Casa Eterna, Relógio D´Água, Lisboa, 1999, pp. 39-41]

Foto by Ralph Eugene Meatyard

By Ralph Eugene Meatyard


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Maria do Sameiro Barroso

CANÇÃO DAS CEREJEIRAS EM MAIO
Antigamente, as luas rodavam de outra forma,
as
pombas traziam-me a luz, o seu hálito,
por entre plátanos, madressilva e taças cheias
de cerejas, música.

Era quando os rios desaguavam em Maio,
anunciando
os dióspiros, os touros aquáticos, os touros do sol.
No mar, também as velas me festejavam
na sombra, na luz.
No Oriente as cerejeiras confluíam, em seu lume
claro, deslumbrante,
as suas flores caindo de uma só vez.

Nas cordas do ser, os harpejos fluíam e o céu
desprendia-se, de uma só vez,
na finitude amena


dos seus ramos de esplendor.

[In Poemas da Noite incompleta, Ed. Escrituras: São Paulo, 2010, p. 197]. 

Foto: Mauj Alexandre


Rosa Alice Branco

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