sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Ferreira Gullar

A ESTRELA
Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses teus olhos azul-safira
com que me fitas

DOIS POETAS NA PRAIA
É carnaval,
a terra treme:
um casal de poetas conversa
na praia do Leme!

Falam os dois de poesia
e dos banhistas
que nunca leram Drummond nem Mallarmé.
E lerão meu poema?
pergunta ela.
Alguém vai ler.
Pois mesmo que não leia
não vou deixar de dizer
o que vejo nesta areia
que eles pisam sem ver.

E o poeta mais velho
sorri confortado:
a poesia está ali
renascida a seu lado.

SOBRE FERREIRA GULLAR

[In Em alguma parte alguma, 4a. ed - Rio de Janeiro: José Olympio, 2010].






quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Hélia Correia

Eram meses de verão, fartos de ventos, saturados de pó e de aridez. Milena passeava todo o dia uma inesperada e alarmante beleza. No seu encalço atropelavam-se ânsias de homens, invejas de mulheres. Irene habituara-se a segui-la, chinelando, obstinada, com um riso beato.

Pelas irmãs Ferrão veio Ercília a saber de como os inocentes percursos da sobrinha inquietavam as almas a ponto de nas ruas se sentirem pairar morrinhas de pecado.

Surpreendeu-se a velha, pois pouco tinha dado pelas saídas de Milena e muito menos pelo esplendor tardio daquele corpo. Vivia ensimesmada, em árduas rezas, para tentar redimir-se dos seus sonhos em que homens de ombros nus a derrubavam sobre um amontoado de cautelas.

Começou a espreitar os passos da sobrinha, a farejar-lhe a roupa de onde se levantavam vapores enjoativos. Aplicadamente, durante horas, abriu a canivete uma fresta na porta do quarto de Milena.

Sete noites a fio, enquanto a lua enchia, viu-a deitar-se sobre a colcha de algodão e adormecer no seu insuportável e tranquilo sorriso. Até que, encalorada por um luar terníssimo, Milena se despiu e o seu ventre redondo, tenso e resplandecente como uma madrepérola, varou os olhos espiões de Ercília. Era um ventre de grávida.

A pudica senhora quase perdeu a fala. E a ninguém da sua intimidade deixou adivinhar a causa verdadeira da prostração a que se condenou. A sobrinha passava pela mulher a dias, pelas velhas amigas em visita, com uma leve agitação de pálpebras interpretada como um cumprimento. Comia muito pouco, ia à cozinha mastigar hortelã, miúdos de aves. Os seus fatos austeros, de cores secas, apareciam leves, avivados, agarrando-se aos seios, enroscando nas pernas com lampejos, carícias de cetim.

Quando a barriga começou a levantar-se num inchaço arrogante por debaixo das saias e a vila se pasmou da maravilha, Milena abandonou a casa onde crescera. Exactamente dois minutos antes de Ercília decidir que a expulsaria, sentindo, pela dor que lhe açoitava as fontes, que dali em diante ninguém nem força alguma poderia obrigá-la a tomar decisões ou sequer a manter conhecimento sobre coisas lastimáveis e hostis. Ficou então dotada de surdez selectiva, de modo que os ouvidos decifravam apenas as falas optimistas e qualquer má notícia ou mero incómodo esbarravam numa incompreensão argelical.

Naquele sereno entardecer de Junho, preparando-se em vão para reacções de lágrimas e cenas de romance, a velha atravessou o corredor. Pareceu-lhe que no escuro faiscavam iluminações verdes como olhos de felino. Teve medo e benzeu-se, pensando que as batalhas de Deus e do Diabo se travavam tão perto dos humanos que às vezes apareciam a vistas desarmadas. Entrou no quarto da sobrinha e viu, dentro da luz marinha do crepúsculo, a cama por fazer, o armário revolvido, as gavetas abertas e caídas no chão.

— Então, já cá não está. Tanto melhor— comentou dona Ercília. E assentou a mão esquerda sobre o peito, a confortar um coração vazio.

[Excerto de Montedemo, 2a. ed, Lisboa: Ulmeiro, 1984, pp. 27-29]



terça-feira, 25 de agosto de 2015

Marize Castro

existiu em minha vida uma águia
claros olhos a me olharem todos os dias

certa vez fui rever o mundo
e o coração da minha águia parou

sepultaram-na sem meu último abraço

quando retornei a nossa casa
trazia comigo a mais indivisível dor

e a pergunta que ainda hoje
permanece em mim

quando o Grande Mistério
se revelará
enfim?

[In Habitar teu Nome, Natal (RN): Una, 2011, p. 53]



sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Luiza Neto Jorge

O ÊXODO
I
Ninguém duas vezes passa o rio
porque os rios se afastam para morrer
ou, correndo nós,
vivemos, disséssemos,
com os rios morrendo.

E com o nível posto
na baixa altura da nascente
incorressem os vivos e
corressem os mares que não
se ajuntam mais, na mesma igualdade
longínqua.

II

Dentro de dias morre
mais alguém
para o hermético triunfo
das paisagens.

Então os sítios vão
subindo
povoam-se e entreolham-se
desencantam-se.
A órbita apodrece
descrê-se o sol.


O SIMULACRO
Aprendam o simulacro daquilo
que me retém no meu vulto
de animal excessivo de
vegetação mais densa:

um pião pôs-se a rodar no mês de Maio
donde nasceram os lábios e várias forças
que frequentaram a terra, como a música de
concertina, o ventre, o touro.

Fez-se uma roda no mês de Maio, com lotaria
com tudo a sumir-se com tudo a unir-se
velhos a parecerem outra coisa mais leve
peixes converteram-se à fala prédios
ocuparam um lugar acrescentaram-se
vegetações por dentro e por fora.

Foi o simulacro. O touro riu-se.
Animais práticos bem falantes
roçaram pelo meu pelo. Vários voavam
para o centro vários espojavam-se no ar
houve quem sorrisse para dentro de uma
vasilha quem se forrasse de cobra
quem se cobrisse de folhas no sexo e o touro,
no mês astrológico de Maio, a rir-se.

[In Poesia (1960-1989), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 149-151]




quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Ruy Belo

DA POESIA QUE POSSO
Há uma certa maré nas coisas humanas
Espero pelo verão como por outra vida
no inverno é que o verão existe verdadeiramente
É o dia em que segundo alguns jornais
john hoare e david johnstone iniciam
a travessia do atlântico num barco a remos
É o dia das grandes travessias
o mar a vida isso que importa?
Dios qué bueno es el gozo por aquesta manana
aqui na orla da praia mudo e contente do mar
Ao chegar aos cinquenta sessenta anos
Quando os fizer talvez pense nisso
e não agora a tanto tempo de distância
Agora sou do cúmulo da tarde
desta tarde no início do outono
ou do início desta tarde de outono
Só depois é que pergunto que fazer de tudo isto
que torna o cid meu contemporâneo
Dios qué bueno es el gozo por aquesta manana
de um dia em que me achei mais pachorrento
Manhã ou tarde? primavera ou outono?
Não sei pouco me importa
Pouco me importa o quê? Não sei
(o resto vem no pessoa
Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais)
Basta a cada dia a sua própria alegria
e é grande a alegria quando iguala o dia

[In Homem de Palavra[s], Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 3a. edição, 2009, p. 339].


terça-feira, 18 de agosto de 2015

Pablo Neruda

6
Coração meu, sol
de minha pobreza
é este dia,
sabes?
este dia,
quase passou olvidado
entre uma noite
e outra,
entre
o sol e a lua,
os alegres deveres
e o trabalho,
quase passou
correndo
na corrente
quase cruzou
as águas
transparentes
e então
tu em tua mão
o levantaste
fresco
peixe
do céu
calha de frescor,
cheia
de vivente fragrância
umedecida
por aquele
sino matutino
como o tremor
do trevo
na aurora,
assim
passou às minhas mãos
e se fez
bandeira
tua
e minha,
recordo,
e percorremos
outras ruas
buscando
pão,
garrafas
deslumbrantes,
um fragmento
de peru,
uns limões,
um
ramo
em flor
como
aquele
dia
florido
quando
do barco,
rodeada
pelo escuro
azul do mar sagrado
teus pequenos
pés te trouxeram
baixando
degrau por degrau
até meu coração,
e o pão, as flores,
o coro
vertical
do meio-dia,
um abelha marinha
sobre as laranjeiras,
tudo aquilo
a nova
luz que nenhuma
tempestade
apagou na nossa casa
chegou de novo,
surgiu e viveu de novo,
consumiu
de frescor o almanaque.
Louvado seja o dia
E aquele dia.
Louvado seja
este
e todo dia.
O mar
sacudirá seu campanário.
O sol é um pão de ouro.
E o mundo está em festa.
Amor, inesgotável é nosso vinho.

[In Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos, tradução de Alexei Bueno, edição, introdução e notas Darío Oses, prólogo Pere Gimferrer, 1a. edição, José Olympio: Rio de Janeiro, 2015, pp. 41-47]

SOBRE PABLO NERUDA



domingo, 16 de agosto de 2015

José Tolentino Mendonça

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.


sábado, 15 de agosto de 2015

Walt Whitman

8
Ó estrela ocidental navegando pelo céu,
Agora sei o que deves ter procurado me dizer há cerca de um mês,
[quando passei,
Quando andei em silêncio na noite sombria e transparente,
Quando te vi tinhas algo para contar-me, quando te curvaste em
[minha direção, noite após noite,
Quando caíste do céu bem abaixo, como se viesses para o meu lado
[(enquanto todas as demais estrelas observavam),
Quando perambulamos juntos pela noite solene (pois algo que não
[conheço impediu-me de dormir),
Quando a noite avançava e vi na borda do ocidente quão repleta de
[pesar tu estavas,
Quando fiquei de pé no chão saliente, na brisa, na noite fria e transparente,
Quando vi que tinhas algo a me dizer, quando te inclinaste em
[minha direção, noite após noite,
Quando minha alma atormentada afundou na insatisfação, e tal
[como tu, triste orbe,
Findou, caiu na noite, e se foi.

9
Permanece a cantar aí no brejo,
Ó cantor acanhado e gentil, ouço tuas notas, ouço teu chamado,
Ouço, venho agora, compreendo-te,
Mas por um momento deixo-me ficar, pois que a estrela lustrosa
[me deteve,
A estrela, meu companheiro que parte, me abraça e me detém.

[In Folhas da Relva, trad. Luciano Alves Meira, São Paulo, Martin Claret, 2006, pp. 328-329].




sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Nikos Kazantzákis

2 DE FEVEREIRO — Quando acordei, a amendoeira ainda floria em mim. Meu sangue latejava em ritmo musical, cheio de júbilo, tristeza e nostalgia. Seu nome, querida Mariô, pairava sobre ele como uma gaivota sobre o mar. Ah! Como gostaria de ter tempo — e ânimo — para traduzir esse ritmo em palavras, transformando-o num poema! Uma canção bailava em meus lábios e eu dizia: “Ah! Deixem-me em paz hoje, com um lápis e papel!”

Mas o clarim soou o alarme, apanhamos os fuzis. Os rebeldes assomaram a ponta do nariz no cume das Águias, onde estão entrincheirados há meses sem que se consiga desalojá-los. Cumpria matar-se mutuamente. Na hora em que lhe escrevo já é noite, regressamos exaustos, ensanguentados. As perdas de ambos os lados se equivalem, sem o mínimo resultado, nem para eles, nem para nós. 

Correu sangue por nada. . .

Quando Homero descreve os combates dos aqueus e troianos, quando lemos o relato de suas agonias, experimenta-se uma alegria soberana, nosso espírito ganha asas, porque um grande criador soube extrair de um massacre o canto inimitável. Parece então que aquelas vítimas não são mais homens e sim nuvens de formato humano, insensíveis à dor, que se afrontam no meio do éter imarcescível, num simulacro de combate. E o sangue derramado tem a cor púrpura da noite. A poesia não estabelece diferença entre o homem e a nuvem, a morte e a imortalidade. Mas quando tudo se passa sobre a terra e os guerreiros possuem um corpo verdadeiro, composto de carne, osso e pelos, e dotado de alma, que coisa atroz é a guerra, meu amor! 

Parte-se para a batalha com o propósito de não odiar ninguém, de se dominar, continuar humano, mesmo em plena carnificina. Porém, ao ter de defender a própria vida, sente-se no âmago de si mesmo uma fera negra e felpuda que acorda, como um longínquo antepassado esquecido. Nosso rosto humano cede lugar à máscara do gorila, nosso cérebro se converte numa bola de sangue entremeada de pelos. Começa-se a gritar: “Todos à frente, vamos matá-los!” Mas esses gritos não são nossos, embora saiam de nossas bocas. Não são gritos humanos. O próprio metatipo recua apavorado diante desse ancestral das profundezas: o gorila.

Às vezes sou acometido da nostalgia de me deixar matar para resguardar o que me resta de humano e escapar à brutalidade. Mas você me prende à vida, resigno-me. Digo- me que um dia este massacre terá de acabar e poderei abandonar a pele de gorila: a farda, os coturnos, o fuzil.

Então, Mariô querida, voltaremos a Súnio, de mãos dadas, para recitar os versos imortais da Ilíada.

- Excerto de "Os irmãos inimigos", Nikos Kazantzakis, Nova Fronteira, 1965. 


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

T. S. Eliot

PAISAGENS

I. NEW HAMPSHIRE
As vozes das crianças no pomar
Entre o tempo das flores e dos frutos:
Cabeça dourada, cabeça carmesim,
Entre a verde fronde e a raiz.
Asas negras e castanhas pairam;
Vinte anos e a primavera fina;
O hoje sangra, o amanhã lancina,
Cobre-me todo, luz em fólios;
Cabeça dourada e asa negra
Se entrelaçam, oscilando,
Emergindo, cantando,
Fremindo macieira acima.

II. VIRGÍNIA
Ruivo rio, ruivo rio,
Lento flui calor é silêncio
Vontade alguma é imóvel como um rio
Imóvel. O calor se moverá somente
Com a voz do melro tagarela
Antes ouvida? Imóveis colinas
Aguardam. Comportas aguardam. Arvores roxas
E árvores brancas aguardam, aguardam.
Tardam, esgalham. Vivendo, vivendo,
10 Sempre imóveis se movendo.
Pensamentos cruéis comigo vêm
E comigo vão:
Ruivo rio rio rio.

III. USK
Sem alarde quebra-se o ramo,
Ou a esperança de encontrar
O cervo branco atrás da límpida nascente.
Relanceia o olhar, mas não lanceia, não soletra
Antigos sortilégios. Deixa-os dormir.
“Docemente imersos, mas não tanto submersos,”
Ergue teus olhos
Até onde mergulha e emerge a estrada
Busca apenas onde
A luz cinzenta o verde espaço tangencia
A capela do eremita, a prece do peregrino.

IV. RANNOCH, POR GLENCOE
Aqui definha o corvo, aqui o cervo conformado
Procria para o rifle. Entre a tenra charneca
E o céu macio, escasso é o espaço para o voo
Ou para o salto. A substância se esfacela,
No ar exíguo lua fria ou lua ígnea. A estrada
Ondula na apatia de uma guerra antiga,
Langor de aço espedaçado, 
Clamor de erro obscuro, ao silêncio
Resignado. A memória perdura
Para além dos ossos. Orgulho degolado,
Longa é a sombra do orgulho, na garganta esguia
Nenhum colóquio de ossos.

V. CABO ANN
Depressa depressa depressa, escuta o pardal canoro,
O pardal palustre, o pardal astuto, o pardal vespertino
Da alba e do crepúsculo. Acompanha a dança
Do pintassilgo ao meio-dia. Dá uma chance
Ao pintarroxo gorjeante, ao esquivo. Saúda
Com estrídulo assobio o pio da codorna, da codorniz
Gingando entre as moitas da baía. Segue o pé
Do melro-ribeirinho, do andarilho. Persegue o voo
Da seta bailarina, da andorinha. Aclama
Em silêncio o noitibó. São todos audíveis. Doce doce doce.
Mas ao fim renuncia a esta gleba, deixa-a
Ao seu real proprietário, à pertinaz, à gaivota.
E basta de palavreado.

(In POESIA, Tradução, apresentação, introdução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, pp. 177-179)

Winslow Homer




sábado, 8 de agosto de 2015

Yves Bonnefoy

VERO NOME
Chamarei deserto a este castelo que tu foste,
Noite à tua voz, ausência à tua face,
E quando caíres sobre a terra estéril,
Chamarei nada ao raio que te trouxe.

Morrer é um país que tu amavas. E eu venho
Eternamente por teus sombrios caminhos.
Destruo teu desejo, tua forma, tua memória,
Sou teu inimigo que não terá piedade.

Chamar-te-ei guerra e sobre ti
Tomarei as liberdades da guerra. Terei então
Em minhas mãos o teu rosto, obscuro e trespassado,
E em meu coração o país que acende a tempestade.

Da crepitação noturna de uma terra supliciada,
Necessita a luz para surgir
E é de bosques tenebrosos que a flama salta.
O próprio verbo sonha a essência,
Uma plácida margem além do canto.

Para que vivas, precisarás transpor a morte.
A mais imácula presença é um sangue entornado.

[Tradução de Lenilde Freitas]


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Nathan Alterman

UMA CARTA
Meus olhos hoje se abriram de repente em cima de ti.
Meu deus meu,
eu sou inocente.
Lembra-me, quando o sol vai pascendo sobre a água,
Que nasci gêmeo diante de ti.
Agora é o crepúsculo. Adensaste as vidraças,
Apagaste o candelabro e embaçaste as imagens.
Porque morreu em mim teu único, o filho que amavas,
Sobre o qual levantei a mão no prado.
Estou inocente, meu deus. Bati lentamente, docemente.
Arrastei-o do teto maternal para o mercado.
Tirei-lhe a túnica. Esperava por suas lágrimas.
Amarrei-lhe os braços, mas ele sorria em silêncio.
Não o sabia desde sempre — que ele é mais precioso
[do que eu.
E ele, só ele, é para ti o querido, o único.
Sobre o berço de suas dores, eu me curvava como uma
[ama.
Para ele, tocava árias no meu acordeon.
Quando a noite estrangeira se abriu para me chamar
[para ti,
E que eu fugia para ele, encantado pelo seu fascínio —
Meu irmão que lutava, meu irmão que acabava de
morrer,
Ficou sem água nem confissão. 
Hoje, minha alma quer descansar em ti, no
esquecimento...
Tu és para mim uma floresta espessa, pesada de fôrça
[e triste.
Se tivesses visto, ao menos, entre a noite e a
[madrugada.
Como em tuas portas minhas mãos imploravam — o
[arrependimento!
Se apenas tivesses visto como meus dias maravilhosos
Faziam dançar um urso no mercado, para o pão e o
[amor.
— Os porteiros se lançariam a seus pés, meu deus,
Quando eu os trouxer diante de ti para que os vejas.
Preparo-me para a viagem da estrada que soçobra.
Em sua fria brisa, tão doce à minha boca
Direi à minha terra:
Lembra-te da minha carícia
Eu sou a mão que se levantou sobre os teus lilases.
Foi bom que eu não tivesse fugido para longe com a
[solidão glacial
E que os tumultos do estrangeiro me tivessem recebido
[em seu seio
Ao menos se quisesses também perdoar este trabalho
poético
E aceitá-lo como um riso'simples que tivesse rido aqui. 
A uma árvore pesada, meu deus, chegará coxeando
[meu ser.
Deixará cair seu pobre saco, e sucumbido...
. .. Hoje tive vontade de te compor uma carta,
Mas, ao tocar o coração do poema, a pena se quebrou.

[In Antologia da Literatura Hebraica Moderna, Rio de Janeiro, Biblos, 1969, pp. 45-47].





quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Miranda

No tempo em que eu tinha quintal
Foi quando eu era menina
Tinha pai e um desespero
De desbravar este mundo
Mas ele me desbravou
E mansa do coração
Mas brusca na atitude
Na aptidão messalina
Ferindo por ser ferida
Perdendo por ser perdida
E encontrada depois
Vivendo meus pesadelos
Numa pena e num tinteiro
Na barra do meu vestido
Na juventude das coxas
Na inocência esquecida
Nas roxas saias de Deus
Ah quantas vezes fui rude
Ah tantas vezes fui má
Tudo passa tudo passa
Não passa o que eu desejar
A menina tão afoita
A menina tão aflita
Às turras com o destino
Como fosse condenada
A um nunca desistir
Flor de uma obsessão
Flor da paixão ardente

[In Prece a uma aldeia perdida, Record: São Paulo, 2004, p. 107]

SOBRE ANA MIRANDA

Simon Shawn Andrews

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Maria do Sameiro Barroso

28.
Depois da trovoada, as camélias
molhadas.
O medo passou.
A terra está fresca,
como uma lamparina a alumiar
a infância,
quando refrescos de groselha,
açucenas, matagais de amoras,
perfumavam o horizonte aberto.
Mais tarde, hortelã.

E cerejas a iluminar o palco
com a arte dos beijos.


29.
Ainda, a casa, o linho, as trepadeiras,
o orvalho.
À noite, o obscuro, o enigma,
o duplo gume,
os animais de sombra abandonando
os disfarces,
metamorfoseando-se em deuses,
sugando o corpo,
devorando o sangue,
percorrendo a manhã bicéfala,

incendiando a boca negra da lua.


[In O CORPO LUGAR DE EXÍLIO, Lisboa, 2013, pp. 28-29]

Oleg Trofimov




segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Manuel Gusmão

um risco na página
um gesto furtivo
um movimento
de queda
na sombra
da sombra
de um corpo, uma boca
: alguém chama — palavras contra
o sentido, contra a direcção
do vento

***
O rio divide-te entre
as margens montanhosas
pelas pedras
que saltando
vais de
onde vens
rosto de quem
uma borboleta
brilha na claridade
do súbito assombro.

***
a lagartixa
o pequeno sáurio
miniatura sobrevivente
de uma adaga pré-histórica
deixa cortada
e de si separada
a cauda, a lâmina em movimento
que fica para trás e deixa fugir
o tronco e os seus velocíssimos
dois pares de pés.

***
o comboio de corda
cruza o sítio de partida
e fecha um dos zeros
do 8 deitado no mapa
celeste
e se leste
até ao fim o seu movimento
viste-o fechar o outro zero
e caíste infinitamente
na terra finita.

[in Pequeno Tratado das Figuras, Assírio & Alvim, 2013]

Bibliotecário de Babel

SOBRE MANUEL GUSMÃO

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...