quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Tonino Guerra

ÁGUA NA BOCA
Tinha uma sede impossível a terra
palácios e árvores estremeciam com aquele ar seco
até o Pai eterno dificilmente respirava.
Nasciam fogos como quem tivesse lançado gasolina
e todo o trigo e todo o milho se queimou.
Em redor a planície esboroada
até aos joelhos
transformava-se num mundo de pó que chegava às montanhas.
As florestas, enormes velas de cinza que desabam.
Pássaros e animais fugiam dos céus
e da terra, mas os escaravelhos
as lesmas e os ratos morreram de boca aberta.
Depois levantou-se um vento que parecia arrebatar
a planura e nuvens negras
ensombraram até Bolonha
estradas telhados e homens.
Começou a chover às duas da manha de quinze de outubro
depois de quatro meses e um dia.
Todos despertaram do seu sono e não acreditavam.
Pegaram em baldes, cântaros, alguidares e até em copos
e foram para o meio da estrada.
E houve descarados que dançavam.
Eu, que então tinha oito anos,
de rosto contra o céu
deixei que chovesse em minha boca.

[In Histórias para uma noite de calmaria, tradução de Mário Rui de Oliveira, Assyrio & Alvim, 2002]


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Tonino Guerra

O HOMEM QUE CONTEMPLA
UM PEDAÇO DE TERRA

Vivia num grande quarto, com uma porta de vidro, sob uma pequena porção de terra, circundada por um muro. Não tinha nada cultivado. Da Primavera ao Outono, com a porta aberta, fixava aquele rectângulo de terra. Sobre o rectângulo via poisar todos os pássaros da zona que talvez viessem beber, pois colocara um prato de água num canto. Faltava apenas um melro. E ele esperava-o. Contemplava, entretanto, a vida das formigas e as silvas que, abundantes, cresciam de ano para ano. Numa Primavera seguiu a viagem de um caracol que, em três meses, assinalou, com uma linha branca, todo o muro. Os ruídos e as notícias das cidades pareciam distantes daquele lugar e da sua mente, ocupada numa preguiçosa meditação. Às vezes chovia. Raramente nevava.
Finalmente, um ano, o melro chegou, mas a porta encontrava- -se fechada e o velho já morto. Estava sepultado sob aquela terra que tinha contemplado por tantos anos e o pássaro poisado exacta- mente no meio da erva que crescera por cima dele. E bebia do recipiente do lado, cheio de água das chuvas.

O SECRETO SEDUTOR
Por diversas noites, uma jovem religiosa, que sofria mais do que qualquer outra criatura a renúncia aos prazeres do corpo, recolheu os folhetos que alguém, secretamente, fizera passar por baixo da porta fechada de sua cela. Eram pedaços de um papel muito branco, sobre o qual se distinguia a marca, provavelmente o desenho de uma parte do rosto. Primeiro um olho, uma madeixa de cabelo, depois uma orelha, a boca, a testa, o queixo. A religiosa, unindo os fragmentos, procurou compor o rosto e, com terror, sofria cada vez mais o fascínio que exalava aquela imagem ainda incompleta. Na última noite, quando estava certa que encontraria o último fragmento para completar o rosto do secreto sedutor, acendeu uma vela para queimar aquela imagem de tentação. E apercebeu-se que se tratava do rosto de Deus. Então, um a um, como se fossem hóstias consagradas, engoliu os fragmentos de todo aquele papel.

[In Histórias para uma noite de calmaria, tradução de Mário Rui de Oliveira, Assyrio & Alvim, 2002]

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