MANUSCRITO DO FOGO
Memento Homo
Antonio Vieira
Ainda não é hora,
Há que tecê-la.
Adubá-la
Para o seu devido tempo.
As chuvas, as unhas lascadas,
O restar na penumbra,
Mas a hora ainda não está madura
As gavetas cheias,
A palha trançando o cesto,
O casaco no ponto da agulha,
Tudo é fruto.
Enquanto acesa a vela
Para a noite do pastor,
Generosa é a doação do fogo.
O braço se estende
Como se coberto de plumas,
Poderia, quem sabe, tentar um voo.
Pernas que, de tão leves,
Não deixariam rastro de fuga
E esta voz maviosa, que canta
São os pequenos grandes eventos
De um diário de bordo:
A poeira sobre a mesa,
Um perfume de laranjas,
O sono dormido em outras camas,
A nostalgia do amanhã.
Quanto cansaço, quanta luz.
Queimam as provas da razão,
Mas o pavio é longo.
Do novo a sede reclama,
O prato esta vazio,
O sexo dilata
Urgências do uma alma
Ancorada na carne e em suas rugas.
E o tributo que se paga
Por estar vivo.
Número do registro,
Licença, currículo,
Passagem.
E os planos traçados
Em sigilo
Para eternizar a duração da rosa.
Dar de comer a um gato,
E caminhar com os pés descalços
Sobre um mar de grãos.
No teatro da quimera,
O mais romanesco dos atos:
Um lugar para morrer
Entre as muralhas de Évora
Numa tarde de maio.
Pássaro do mosaico.
Caligrafia no jarro,
Sete mil contas vidradas.
Assim vai se fazendo a hora.
E queimam os projetos
Desde muito sepultados
De não perguntar
Pelo que não se deve saber,
E menos temer que amar.
Fia-se o tapete, desfia-se,
A areia escorre de um bojo a outro.
Badala o sino, badala o peito,
O sol já rasteja
E, apesar disso, a chama.
Quanta sombra., quanto gozo.
A água para o chá das dez
Borbulhando a um palmo da mão,
O vapor com que se prepara o sono.
E para distrair o acaso
De suas travessuras.
Deixar-se ficar, simplesmente.
Para dar alma à casa
Torna-la necessária
Simplesmente deixar-se ficar.
E se os pés caminhassem.
Levassem o mundo
Para dentro do mundo.,
Se não voltassem mais?
Apenas uma hipótese.
(Mas e quando não voltarem mais?)
Na direção leste do céu. Pégaso.
Então se diz: é verão.
A safra rendeu pouco,
O caule cedeu,
A pele já não tem mais aquele frescor.
Mas a terra permanece
E o vinco marcando a boca
Imprime o sinal
De uma indecifrável alegria
Sobre o rasgo de antigos pavores.
Quantas odisseias escritas
No centenário da estrada,
O correr de um outro rio
Na areia que o vento lava.
O vento e incontáveis passos —
Uns que regressam,
Outros que não chegaram.
Relatos de pioneiros e náufragos.
De repente, a imaginação invade
O que terá sonhado
Aquele homem de mil anos atrás,
Um vassalo na casa do senhor
De quem nenhum outro homem
Se lembra agora.
Baixo-relevo na pedra,
Ânfora pintada.
E se a boca aprendesse
O momento de calar
Para melhor dizer,
Se recitasse mais, saboreasse mais.
Se os olhos, se os dedos,
Ágape dos sentidos,
Se o pêndulo, se a clepsidra.
A cera derrete e se remodela,
Um galo decreta a noite,
cada órbita se cumprindo
Para que a matemática siga
Com seu balé de algarismos
E páginas se acumulem.
Teses, revoluções.
Prepara-se o vaso, o epitáfio,
A moldura do espelho,
A primeira idade do álamo.
Seis manhãs, sete madrugadas
E um rosto emerge do mármore.
Meio século para a construção da abadia,
Segundos para derrubá-la
E assim vai se fazendo a hora.
Erguendo, inclinando.
Tangendo as abstrações,
Materializando
O medo na mordaça,
A morte nos poros vedados,
A simples felicidade num quarto,
A juventude extinta em Cassiana.
A hora ecoando, vertendo,
Inflamando a alegoria
Da balbúrdia das línguas
E dos jardins de canela
E da grande Prostituta
Em escrituras profanas.
O ano do jubileu se exibindo
No produto dos campos.
E na borra da vela consumida
Amontoam-se os erros formidáveis,
A virtude quebrada, o descaminho.
Torna ao pó o aceno desfraldado
Com ternura de mãe, mas nunca visto.
Desaparece de novo e de novo ressuscita
A palavra mal pensada
Que levou embora o amigo.
E o braço se inclina
Como que sob o peso do chumbo.
Pernas que, de tão velhas,
Não ousariam saltar um muro.
E esta voz esgarçada, que range.
Desejo de ser a ave do Nilo
Que renasce da essência do cinamomo.
Treme o farol para aquele que vem
E o quasar na lente do telescópio.
Quantos olhos mais, quantas brasas
Sob a tocaia da lâmpada.
Explode o botão na corola,
Explode o núcleo do urânio.
E o aroma da fertilidade,
É a catinga da devastação.
E quanto dura a restauração da cidade
Diante da sua ruína?
Quanto duram as ruínas?
A caverna dos manuscritos,
O baile dos povos, o hino dos povos,
Sua semeadura, sua vindima.
Quanto dura este círio?
Se fosse possível sair.
Deitar o continente das partes,
O espolio das obras,
Se permitido fosse vagar
Sem os pés, sem o aviso dos ossos,
Eximir-se de ganhos e faltas,
Fugir estando ao redor,
Um instante apenas, um relance.
Pelas mãos aborígines
Que esculpiram essa lança,
Reconsideram-se as cronologias.
E as mãos que cifraram os códigos,
Que tingiram uma prece
Na casca da arvore,
Hosana à memória.
E a mensagem guardada sob as dunas,
Debaixo das mesquitas,
A doze quilômetros no abismo,
A pirâmide que alçou a força escrava
Para o orgulho dos reis
E a amnésia de seus filhos.
O que matando concebeu,
E, por ter sido concebido, morreria.
Assim está feito, posto.
Urdido, enraizado.
Ao alcance dos dedos,
Tão grandioso e tao frágil.
O balanço da candeia
Na sombra desta luz,
Na seiva desta fala.
A hora plena, cinza e dadiva.
(Em Almádena, Iluminuras, SP, 2007)