segunda-feira, 30 de junho de 2014

Edmond Jabès

E Yukel fala:
Busco-te.
O mundo onde te busco é um mundo sem árvores.
Nada além de ruas vazias,
ruas nuas.
O mundo onde te busco é mundo aberto a outros mundos sem nome,
um mundo onde não estás, é aí que te busco.  
Há teus passos,
teus passos que sigo e espero.
Segui o lento caminhar de teus passos sem sombra
sem saber quem eu era,
sem saber para onde ia.
Um dia lá estarás.
Aqui, ou em outro lugar,
um dia como todos os outros.
Talvez, amanhã.
Tenho seguido, para chegar a ti, outros caminhos amargos
onde o sal quebra o sal.
Tenho seguido, para chegar a ti, outras horas, outras orlas.
A noite é uma mão para quem segue a noite
À noite, caem todos os caminhos.
Era necessária essa noite em que peguei tua mão, quando estávamos sozinhos.
Era necessária essa noite como era necessário esse caminho.
No mundo onde te busco és a grama e o degelo.
És o grito perdido em que me extravio.
Mas és também, ali onde nada vela, o esquecimento feito de cinzas de espelho.



sábado, 28 de junho de 2014

Gregório Duvivier

a baía de guanabara é uma sopa de óleo
diesel detritos ferramentas sal de lágrimas
e a saudade dos que já partiram — quando
atingimos seu vórtice devemos jogar cinzas
anéis e outros restos mortais de uma pessoa
a ser engolida pelos deuses subaquáticos
pois para isso cariocas fomos feitos — para
salgar esse imenso caldo que nos banha.

[In Ligue os pontos poemas de amor e big bang, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 35].

SOBRE GREGÓRIO DUVIVIER



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Mário Faustino

DIVISAMOS ASSIM O ADOLESCENTE

Divisamos assim o adolescente,
A rir, desnudo, em praias impolutas.
Amado por um fauno sem presente
E sem passado, eternas prostitutas
Velavam por seu sono. Assim, pendente
O rosto sobre um ombro, pelas grutas
Do tempo o contemplamos, refulgente
Segredo de uma concha sem volutas.
Infância e madureza o cortejavam,
Velhice vigilante o protegia.
E loucos e ladrões acalentavam
Seu sono suave, até que um deus fendia
O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto
Durasse ainda aquele breve encanto.

[In O HOMEM E SUA HORA E OUTROS POEMAS, São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p. 141].


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Adriana Lisboa

DENSIDADE
No  meio do caminho tinha uma pedra porosa. Dava para ver seus grãos. Chegando mais perto, raios finíssimos de sol atravessavam a pedra. Mais perto ainda, um turbilhão, um pequeno redemoinho (uma galáxia minúscula) se movia lá dentro, no leve corpo da pedra.

A pedra, no meio do caminho, era permeável: se chovesse, ficava encharcada. O vento a enchia de poeira, pólen e cadáveres de insetos. O calor do meio-dia a deixava com sono e sede. A neblina que às vezes baixava no fim da tarde invadia a pedra, no seu corpo as nuvens trafegavam sem pressa. Os sons passavam por ela e iam se extinguir em algum lugar desconhecido. Na pequena galáxia dentro da pedra havia pequenos planetas orbitando em torno de sóis de diamante.

[Caligrafias, Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 79]



quarta-feira, 25 de junho de 2014

Astrid Cabral

XXXIII
Pelas ruas de Alepo
(atrás de mesquitas
esculpidas no ouro
de régios crepúsculos)
procuro os hititas.
Se muitos debandaram
pela extensa Anatólia
ou tombaram aos entreveros
contra inimigas hordas
outros se amoitaram
— traidores ou sábios? —
em brandas trincheiras
de sexos alheios ao clã:
séculos vogando veias
de rubrescuros rios
à luz deste Ramadã
quando os transeuntes
óbvios com que cruzo
são todos: resumo vivo
de história saltando
os fundos precipícios
do tempo e da memória.

[In Torna-Viagem, In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 123].


terça-feira, 24 de junho de 2014

Herberto Helder

AOS AMIGOS
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

[In Ou o Poema Contínuo, São Paulo: A Girafa Editora, 2006, p. 125]

By Daniel Tjongari - 2014

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Emily Dickinson

Foi como um Furacão aberto ao meio
Que mais e mais se aproximando 
Estreitasse o seu Círculo de fúria 
Até que uma Aflição

Pôs-se fria a brincar com o arremate
De uma Bainha imaginária -
E algo partiu-se - e às cegas tu caíste -
E acordaste afinal -

Foi como se um Duende com uma Escala
Todas as Horas conferisse -
Até que o teu Segundo sem remédio
Foi aos seus Pés cair -

E nem mais os teus Nervos te acudiam -
Tua razão abandonou-te -
E Deus então - lembrou-se - aí o Demo
Te soltou - e se foi -

Como se o frio dos Porões deixando
Para cumprir tua Sentença
Do conforto da Dúvida saísses
Para a Forca - e o Além -

E quando um Véu te costurava os olhos
Viesse alguém bradar - “Já chega!”
Que Tortura maior então seria -
Perecer - ou viver?

[In A branca voz da solidão, tradução de José Lira, São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 223].



domingo, 22 de junho de 2014

Stefan Zweig

O MUNDO QUE EU VI - Excerto
Pessoas dessa espécie, tão rara, foram de grande vantagem para um principiante; mas ainda me faltava receber o ensinamento decisivo, o ensinamento que deveria servir para a vida inteira e que me foi dado, como um presente, pelo acaso. Em casa de Verhaeren travamos discussões com um historiador da arte, que declarou haver terminado a época da grande plástica e da pintura. Protestei energicamente. Perguntei se ainda não existia Rodin, que como plástico não era menor do que os grandes do passado. Principiei a enumerar as suas obras e, como sempre quando alguém combate uma opinião, tornei-me quase colérico. Verhaeren sorria consigo mesmo. Por fim disse: « Quem gosta tanto de Rodin deveria conhecê-lo pessoalmente. Amanhã irei ao seu atelier. Se quiseres, poderás ir comigo ».

Está claro que eu haveria de querer. Não pude dormir de alegria. Mas em casa de Rodin fiquei sem poder falar. Nem pude dirigir-lhe a palavra e fiquei entre as estátuas corno uma delas. Parece que esse meu embaraço agradou a Rodin, pois à despedida o bom velho me perguntou se eu queria ver o seu verdadeiro atelier, em Meudon, e convidou-me mesmo para almoçar. Eu tivera o primeiro ensinamento, a saber, que os grandes homens são sempre os mais bondosos.

O segundo foi que eles quase sempre são em sua vida os mais simples. Em casa desse homem, cuja fama enchia o mundo, cujas obras estavam presentes, linha por linha, à nossa geração, a comida era tão simples como em casa dum camponês de condição média: uma carne substancial e boa, algumas azeitonas, frutas em abundância e, além disso, um saboroso vinho nacional. Isso deu-me mais ânimo, por fim eu já falava com desembaraço, como se esse velho e sua esposa fossem meus íntimos desde muitos anos.

Após a refeição fomos ao atelier. Era uma grande sala em que estavam as mais importantes de suas obras em gesso; entre elas viam-se também centenas de preciosos pequenos estudos — uma mão, um braço, uma crina de cavalo, uma orelha de mulher, a maior parte delas apenas em gesso; ainda hoje conservo perfeitamente a lembrança de alguns desses esboços feitos apenas para exercício, e poderia falar durante horas sobre a hora que passei naquele atelier. Por fim, o mestre me levou para junto dum pedestal sobre o qual estava a sua última obra, coberta com panos úmidos, uma estátua de mulher. Com suas mãos pesadas e enrugadas, de camponês, retirou os panos e recuou. Sem querer soltei um «admirável! » e imediatamente me envergonhei dessa banalidade. Mas com a serena objetividade, em que não poderia encontrar-se uma partícula de vaidade, contemplando sua obra, murmurou ele: « De fato ». Depois hesitou. « Apenas ali na espádua... um momento! » Sacou do casaco, vestiu a blusa branca, pegou uma espátula e com um movimento magistral alisou a pele macia da espádua daquela mulher, .que parecia estar viva e respirar. Novamente recuou. « E agora aqui », murmurou ele. Outra vez, com um diminuto pormenor, fora aumentado o efeito. Depois não falou mais. Avançou e recuou, olhou a estátua num espelho, murmurou e proferiu sons ininteligiveis, modificou, corrigiu. Seus olhos, que à mesa se mostravam afáveis e distraídos, nesse momento tremiam sob a influência de luzes estranhas, parecia que ele se tornara mais alto e mais moço. Trabalhou, trabalhou, trabalhou com toda a diligência e força de seu corpo vigoroso e pesado; toda vez que energicamente avançava ou recuava, o assoalho estalava. Mas ele não ouvia os estalos. Não notava que atrás dele estava, sem dizer palavra, um jovem embevecido, ditoso por poder ver um mestre daqueles em seu trabalho. Ele se esquecera inteiramente de mim. Para ele eu não estava ali. Para ele ali só estava a estátua, a obra e, por trás dela, invisivelmente, a visão da perfeição absoluta.

Passou-se um quarto de hora, meia hora; já não sei quanto tempo se passou. Os grandes momentos estão sempre fora do tempo. Rodin estava tão absorto, tão engolfado em seu trabalho que nem um trovão o teria distraído dele. Seus movimentos iam-se tornando cada vez mais violentos, quase coléricos; ele fora tomado de uma espécie de exaltação ou de ebriedade, trabalhava cada vez mais depressa. Depois as mãos se tornaram hesitantes. Pareciam haver reconhecido que nada mais lhes restava fazer. Ele recuou uma, duas, três vezes, sem modificar nada mais. Depois murmurou algumas palavras, colocou os panos em torno da estátua tão carinhosamente como alguém põe um chale sobre os ombros da mulher amada. Respirou profundamente e aliviado. Seu corpo pareceu tornar-se de novo mais pesado. O fogo extinguira-se. Deu-se então o que eu ignorava, deu-se o grande ensinamento. Rodin despiu a blusa, vestiu o casaco e já ia sair. Nessa hora de extrema concentração esquecera-se inteiramente de mim. Já não sabia que um jovem, que ele próprio levara ao atelier para lhe mostrar suas obras, estivera ali atrás dele, com a respiração opressa, imóvel como as estátuas.

Encaminhou-se para a porta; no momento em que ia fechá-la deu comigo e fitou-me quase zangado: quem era esse jovem desconhecido que havia entrado às escondidas no seu atelier? Mas imediatamente se lembrou de tudo e quase envergonhado se dirigiu para mim: « Desculpe-me », disse ele, mas eu não o deixei continuar a falar e peguei agradecido a sua mão e tive vontade de beijá-la. Eu acabara de ver revelado o eterno segredo de toda grande arte, verdadeiramente de toda produção de valor nesse mundo: concentração, reunião de todas as forças, de todos os sentidos, empolgamento do artista todo. Eu aprendera alguma coisa para o resto de minha vida.

[In O mundo que eu vi (minhas memórias), Tradução de Odilon Gallotti, Rio de Janeiro, Guanabara, 1944, pp. 138-140].

sábado, 21 de junho de 2014

Yehuda Amichai

DE TODOS OS VAZIOS...
De todos os vazios entre os tempos,
de todas as distâncias entre as filas de soldados,
das brechas do tapume,
das portas que fechamos mal,
das mãos que não juntamos bem,
do vazio entre os nossos corpos que não apertamos
um contra o outro —
nasce uma extensão vasta que se desdobra,
uma planície, um deserto,
por onde nossa alma irá sem esperança, depois da morte.

A MORTE DE MEU PAI
Meu pai, de repente, de todos os aposentos
partiu para suas estranhas lonjuras.

Ele partiu para chamar seu Deus
para que nos viesse ajudar agora.

E Deus já chegou, como um operário, servente
e pendurou seu casaco num prego da lua.

Mas nosso pai, que foi buscá-lo,
Deus o guardará para sempre consigo.

TUA VIDA E TUA MORTE, MEU PAI
Tua vida e tua morte, meu pai,
estão pousadas nos meus ombros.
Minha mulher nos trará
água.

Vem e bebamos, meu pai,
às minhas flores, às idéias,
pois tu me esperavas
e já não sou mais esperado agora.

Tua boca entreaberta, meu pai,
cantava e eu não ouvi.
A árvore do pátio era profeta
e eu não o soube.

Só teu passo, meu pai,
continua a caminhar no meu sangue.
Outrora foste o meu acompanhante.
Sou eu que te acompanho agora.

(Tradução: Cecília Meireles)

[In Antologia da Literatura Hebraica Moderna, Rio de Janeiro, Biblos, 1969, pp. 84-85]





Yehuda Amichai, nascido na Alemanha em 1924 e educado em Israel. Participou da Guerra da Independência e estudou a Língua Hebraica. Publicou três coleções poéticas que lhe valeram o prêmio Shlonski. Faleceu em Jerusalém no ano 2000.






sexta-feira, 20 de junho de 2014

Rui Costa

PARQUE DA CIDADE
o cão é uma extensão da floresta,
foi posto ali para compensar o nosso desprezo
por mapas e satélites que nos indicam sempre
uma saída. já não podemos perder-nos na floresta
com celulares no bolso, e seria tão bom que pudéssemos
amar-nos também assim, com o frio da noite a roer-nos os
ossos e a fome a disputar a atenção das nossas bocas, desalojados
definitivamente do mundo.
deixámos em casa os produtos da tecnologia. levámos apenas os nossos
corpos, sabendo que há dez mil anos que não os sujeitamos aos necessários
upgrades. os teus pés não doíam nos meus sapatos, e a minha impaciência
entretinha-se com o teu pescoço.
quando a trilha escureceu eu comecei a acreditar.
dissolvia-se a memória das casas no último verde tocado
pelo sol. um inocente segundo passo separava-nos da dignidade
do assombro. em breve estaríamos perdidos, amarrados a um
labirinto maior que todos os nossos sonhos. morreríamos abraçados, lindos,
e todos os amantes da História teriam inveja de nós.
Mas eu esquecera-me que neste país algumas pessoas constroem
casas no meio de florestas públicas como a floresta da Tijuca.
Privilégios herdados, que são o fruto de histórias feitas
com armas menos ingénuas do que as nossas, meu amor.
E os dentes do cão que corria para nós pareceram-me grandes como
as estratégias dos homens que me vencem na política.
Quer dizer, tive medo.
Toda a minha concentração foi usada na criação de um
semblante calmo, de um corpo estável, e quando tu te escondeste
atrás de mim e me agarraste as costas, eu nem sequer tremia.
Conclusão: não nos perdemos na floresta, como eu queria, mas também
não fomos devorados pelo rottweiller de olhos brilhantes.
A vida tem destas coisas. Tem muitas coisas destas.
Regressámos pela mesma trilha ao centro da cidade, jantámos,
tomámos, café, e só não morremos abraçados para sempre
porque às 8 horas em ponto da noite de domingo um ónibus te levaria,
com excessos de ar condicionado, da (nossa) eterna cidade do Rio de Janeiro.

SOBRE RUI COSTA


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Glória de Sant'Anna

POEMA
A água é funda, a água é funda.
Não tem destino que se pressinta.
(O que nos liga são nossas mágoas
e nossas iras.)

A água é grave, a água é grave.
Não há remorso que a dilacere.
(O que nos liga são nossa fome
e nossa espera.)

A água é pura, a água é pura.
Não há segredo que a deteriore.
(O que nos liga são nossas ilhas
e nossos mortos.) 

POEMA AGRESTE
Não sei por que buscas palavras longas
para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes
cm prender meus passos nesse limite.

[In Amaranto, Coimbra, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988, pp. 110-111]



quarta-feira, 18 de junho de 2014

Rainer Maria Rilke

OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE - EXCERTO

Às vezes passo diante de pequenas lojas na Rue de Seine, por exemplo. Negociantes de coisas velhas ou pequenos alfarrabistas ou vendedores de gravuras em cobre com vitrines abarrotadas. Jamais alguém entra em seus estabelecimentos; é manifesto que não fazem negócios. Quando olhamos para dentro, porém, eles estão sentados, estão sentados e leem sem preocupações; não se preocupam com o amanhã, não se inquietam com o sucesso, têm um cão, que fica sentado diante deles, bem-disposto, ou um gato que toma o silêncio ainda maior ao passar pelas fileiras de livros como se apagasse os nomes das lombadas.

Ah, se isso bastasse: às vezes, gostaria de comprar uma dessas vitrines repletas e me sentar atrás dela com um cão durante vinte anos.

É bom dizer em voz alta: “Não aconteceu nada”. Mais uma vez: “Não aconteceu nada”. Isso ajuda?

[In Os cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução e notas de Renato Zwick, Porto Alegre, L&PM, 2010, pp. 33-37]. 


segunda-feira, 16 de junho de 2014

Marco Lucchesi

GALA PLACÍDIA
Ó Gala, nos teus olhos considero
os astros que se apagam, junto ao mar,
levados pelo vento, áspero e fero,
no dorso amanhecente do jaguar.
Imersa no segredo, enquanto espero,
nas pedras de um mosaico circular,
descansa teu semblante tão severo
e sonha com a glória de além-mar.
As Cidades, distantes e perdidas,
renascem no mistério que consome
as cidades submersas, esquecidas.
Ó Gala, não desistas de teu nome,
que o Cristo Pantocrator das ermidas
se abisma no infinito dessa fome.

[In Poemas Reunidos, São Paulo, Record, 2000, p. 55]



Maria do Rosário Pedreira

Quando eu morrer; não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema — como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite — porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

[In O canto do vento nos ciprestes, São Paulo, Escrituras, 2008, p. 43]





domingo, 15 de junho de 2014

David Mourão-Ferreira

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos    E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites      não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

[In Matura Idade]

Sobre David Mourão-Ferreira

Foto by Lucio Piacentini


sábado, 14 de junho de 2014

Glória de Sant'Anna

PARALELO
Dentro da água eu sou exacta.

Minhas mãos buscam ( não como defuntas mãos
segurando por acaso translúcidas algas)
mas abandonadas.

Entre a areia lúcida do fundo
e a claridade caíndo predestinada,
meu corpo não é morto
mas se deslassa.

A mesma transparente identidade
brota de mim e da água,
e deslizam indiferentes a nós
pequenos peixes de prata.

A tranquila vaga que me sustém
e onde o meu rosto quieto se alaga,
é tão nítida e simples como eu
que resvalo sem rumo na límpida estrada.

Sem vestido ou lembrança
onde o conhecimento se desfaça,
meu cabelo se alonga
e prossigo descalça.

As nuvens que me perseguem
são de água
e se desdobrarão
no vento que as desata.

[In Amaranto, Coimbra, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988, p. 64]





quinta-feira, 12 de junho de 2014

Boris Pasternak

Ah, se eu antes soubera desta sina,
Quando me preparava para a estreia,
Que há morte nestas linhas, – assassinas!,
como um golpe de sangue na traqueia.
Os folguedos desta busca de avessos
Eu deixaria, inúteis, de uma vez
Já tão remoto o esforço do começo,
Tão temeroso o primeiro interesse.
Mas a velhice é Roma. Não lhe peça
Que venha com estórias de ninar.
Ela exige do ator mais que uma peça,
Uma entrega total, um naufragar.
Quando o verso é um ditado do mais íntimo,
Ele imola um escravo em cena aberta.
E aqui termina a arte, o pano fecha,
Ao respirar da terra e do destino.
(1932)

[Tradução de Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos]


terça-feira, 10 de junho de 2014

Luís Miguel Nava

SEM OUTRO INTUITO
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

[In Poesia Completa: 1979-1994, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2002].


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Rogério Luz

POEMAS SELECIONADOS
FRANCIS BACON
Está todo ser vivo
tingido pelo fim. Uma pintura
vermelha no tecido
de momentos obscuros
envolve esta ferida que não cura.

MINOTAURO
Perdeu-se o Minotauro
no próprio labirinto. Agora erra
divino e sanguinário
pelos muros de Creta
na fúria sem caminhos desta Terra.

MNEMOSINE
O que passou perdura
em algum tempo, lugar ou sentimento
ou morreu à procura
de mais esquecimento
do que permite a humana desventura?
na fúria sem caminhos desta Terra.

AGOSTINHO
Jamais cidade alguma
extinguirá, sedentária, tua fome:
as cidades (as duas,
a de deus e a dos homens)
pouso não te darão, pois não tens nome.

CONRAD
l.
O limite de sombra.

Obrigado a abrigar
o inimigo mortal dentro do peito
na luta desigual o destino antevês
de um ser que ser mortal o fez perfeito.

II.
Água parada, o rio
move o dorso do ar rumo ao obscuro
abismo sem destino.
A treva não tem rumo
e o próprio sangue flui sob este luto.

[In Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, edição 1.353, p. 15]

Rogerio Luz (Rio de Janeiro, 1936), poeta, artista plástico e ensaísta, com trabalhos publicados nas áreas de estética, psicanálise e crítica de arte, foi professor universitário na UFPb, UFF, UFRJ e UERJ. Publicou, além de poemas em revistas e coletâneas, os seguintes livros de poesia: Diverso entre contrários (Rio: Contra Capa, 2004), Correio Sentimental (S.Paulo: Giz Editorial, 2006) e Escritas (Goiânia: Editora UFG, 2011).


domingo, 8 de junho de 2014

Weydson Barros Leal

A HERANÇA
Nada resta a este inventário - feitas
as contas depois da viagem - além  
das perdas do esquecimento ou
o surdo motivo de uma lembrança.

Afinal, um testamento é só o calendário
onde a cada dia podes contar teus bens
e lembrar que o relógio é a moenda
por onde a vida passa e tudo isso acaba.

Por isso eu te guardo, e lembro, e canto,
como a herança que, se fosse declarada,
seria entregue ao mundo como a chama
que acende a vida e jamais se apaga.

POEMA DO AMOR MELHOR
Amo a imperfeição das sebes,
as dúvidas do tempo no
relógio da chuva,
as instâncias do fogo ao respirar
a própria luta,
o talho da semente
ao explodir em planta, em fruta.
O amor não caminha sempre reto,
sem mácula, imune,
o amor também é o fardo
de sua incompletude,
é a incoerência de algo
que lhe custe.
O amor é o entendimento
do imprevisto, do louco, do absurdo,
é o corpo que não cabe
mais na roupa, no seu molde,
em seu ajuste,
mas quando tudo está perdido
é o amor a esperança que nutre.
O amor às vezes
se desnuda
sob a dor que ausenta e pune
na distância do abraço
quando um nó confunde o laço.
O amor resiste sendo carne, flecha, alvo,
pois em seu íntimo organismo vive
a força intraduzível,
a definição
do mais difícil.
Vencer um rio imenso,
um deserto ou a mais alta
cordilheira,
não é nada diante desse fogo
que sabe a vida inteira
a certeza do outro.

(Inéditos)

Photo by Renato Santicchia‎


sábado, 7 de junho de 2014

Maria do Rosário Pedreira

O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira —
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes

porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos — Deus tem as mãos grandes.

[In O canto do vento nos ciprestes, São Paulo, Escrituras, 2008, p. 13]

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Boris Pasternak

A FAMA É RELES
Ter fama é reles; a escalada
ao apogeu segue outras leis.
Arquivos não servem de nada,
Não tremas sobre os teus papéis.

Criar é se entregar de todo,
e não sucesso ou alarido.
É vergonhoso, sendo engodo,
virar provérbio difundido.

Cumpre viver, mas sem disfarce,
para atrair-se enfim o puro
amor do espaço ou escutar-se
o apelo, ao longe, do futuro.

Deixa as lacunas no destino,
nas obras, não. Qualquer passagem,
qualquer capítulo ou domínio
de tua vida – anota à margem.

Some no anonimato e esconde
teus passos como sítio oculto
por brumas muito espessas onde
não há como entrever seu vulto.

Outros, que irão por tua rota,
seguem teu rastro, passo a passo.
Mas não te cabe ser quem opta
entre um sucesso ou um fracasso.

Não rendas nunca, por motivo
algum, teu rosto, tua estrada;
prossegue vivo, apenas vivo
até o fim, vivo e mais nada.
(1956)

QUERO CHEGAR
Quero chegar em tudo ao cerne,
ao mais oculto.
Buscando a rota, no afazer, no
peito em tumulto.

Ao bojo dos dias de outrora,
ao próprio centro,
justo às raízes e às escoras,
medula adentro.

Sempre agarrando toda a série
de sinas, fatos,
sentir, pensar, amar, viver e
fazer achados.

E escreveria, ah, se o lograsse,
sobre os diversos
dons da paixão, de todo ou quase,
em oito versos.

Seus crimes, fugas e caçadas,
seus atropelos
acidentais, mãos espalmadas
e cotovelos.

Deduziria a essência inata
e as suas leis,
diria a inicial de cada
nome outra vez.

Dispondo cantos em canteiros,
com veias tensas,
veria as tílias: o horto inteiro
posto em seqüência.

E verteria, em verso, aromas
de rosa e menta,
prado, flor, feno e quanto assoma
numa tormenta.

Assim Chopin verteu – portento
vivo – seu mundo,
sítios, jazigos, bosques, dentro
de seus estudos.

O jogo e o suplício do afã de
vencer de fato –
a corda retesa e vibrante
do arco dobrado.
(1956)

Tradução Boris Schnaiderman

SOBRE BORIS PASTERNAK

Ilustração Nikolai Milioti



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Luiz Ruffato

Pisas comedida etéreos
espaços em busca de pássaros
que à mão se dissolvem.

Catalogas emoções
estendendo esteiras
nas noites insones.

E as pacíficas aventuras
em que te envolves
são vagas a bater eternamente
em rochedos de um mar absoluto.

Se tens nos olhos espalmados
a felicidade adstringente, ó Súcubus,
por que a procuras em raios de sol
que não campos de trigo?

[In As máscaras singulares, São Paulo, Boitempo, 2002, p. 34]

SOBRE LUIZ RUFFATO



quarta-feira, 4 de junho de 2014

Franz Toussaint

A FONTE DAS GAZELAS
Elas só vêm beber quando cai o crepúsculo. Uma a uma e inquietas elas surgem das sombras procurando uma nesga de céu refletido na fonte.

Assim esperas a noite para penetrares em minha casa, e antes de me beijares a boca, procuras ver em meus olhos o encantamento da minha alma!

Sobre FRANZ TOUSSAINT

[In O Jardim das Carícias, tradução de Adalgisa Nery, Rio de Janeiro, José Olympio, 1938, p. 130]


terça-feira, 3 de junho de 2014

Valery Larbaud

A MÁSCARA
Escrevo sempre tendo a máscara no rosto;
sim, essa máscara à antiga moda veneziana,
longa, de testa baixa,
como um grande focinho de cetim branco.
Sentado à mesa e levantando a cabeça,
contemplo-me no espelho, de frente
e de três quartos, e vejo
esse perfil infantil e bestial que eu amo.

Oh, que um leitor, meu irmão, a quem eu falo
através da máscara pálida e brilhante,
venha depor um beijo longo e lento
sobre a testa apertada e essa face tão pálida,
a fim de calcar mais fortemente sobre o meu
esse outro rosto perfumado e oco.

[In Poesia Traduzida, Carlos Drummond de Andrade, São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 209]


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Jacques Prévert

CAFÉ DA MANHÃ
Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.

[In Poemas, Jacques Prévert, Seleção e Tradução de Silviano Santiago, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 107-109]





domingo, 1 de junho de 2014

Ailton Volpato

GRAMÁTICA
O gosto mascado de um verbo impronunciável -/ morde a língua do lápis/ ao traçar no papel/ um poema silenciado, silenciador,/ ainda que sejam três incoerentes versos,/ a existir em seus duetos/ de uma compreensão e muitas incompreensões:/ linguístico fantasma reticente/ a perturbar o sono de um papel manchado./

de testemunho em testemunho/ se diz a inaudita obra,/ certas palavras que emergem do abismo/ grafado em históricas durações;/ e se abatem como ondas despenteadas/ a resvalar nos cimos das pedras,/ rochas a dizer água às águas./

e o poeta, um pedaço de pedra/ tingido na maresia do tempo/ aprende a sentir como o limo tocado/ a amaciar os dedos frágeis da criança/ no descobrimento das letras - /

gramática litorânea de mar e areia.

Eis quando um poema/ é da desordem do absurdo.

© Ailton Volpato


Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...