quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Armando Silva Carvalho

PELA ALAMEDA de silvas vai o amador
Das vastas alegorias
O pastor enlevado a flauta e as ovelhas.
Vai o barco pela barra e nele o marinheiro.
Teu mar é um palimpsesto
E as tuas ilhas gregas.

Tudo está cheio de deuses aqui no meu caminho.
O burro e a carroça, a bicicleta e o carro
São transportes directos para um Olimpo
Rural, oposto do marinho.

A boca seca, a força braçal dos jornaleiros,
O cuspo, o som das cavas, a entrada do ferro
Das enxadas nas resistentes leivas do Outono
Cenas vivas da terra aberta aos olhos infantis
Que vão saber amar para sempre esses dias inteiros.

Tudo o que a vista toca, a língua cheira,
O ouvido sente, a pele escuta, o nariz fita
Na gramática do corpo na tabuada da alma
As minhas linhas-férreas correm
No leito dos teus rios.

Éramos duas crianças a caminho
Da escrita.

(em Sol a Sol)

SOBRE ARMANDO SILVA CARVALHO

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Keats

ODE A UM VASO GREGO

I

Tu, noiva ainda não desvirginada da quietude,
Tu, criada pelo silêncio e o tempo lento,
Historiadora silvestre, que podes assim expressar
Um conto floral mais suave que nossa rima.
Que lenda de friso de folhas se oculta sob teu traçado
De divindades ou mortais, ou ambos,
No Tempe ou nos vales da Arcádia?
Que homens ou Deuses são eles? Que donzelas relutantes?
Que louca perseguição? Que luta para escapar?
Que flautas e pandeiros? Que êxtase selvagem?

II

As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas
São mais doces; desta maneira, vós, suaves flautas, soai;
Não ao ouvido sensorial, mas, ternamente,
Toquem as melodias espirituais do não-som.
Belo jovem, sob as árvores, não deixarás
Tua canção, como jamais perderão as árvores suas folhas;
Amante audacioso, nunca, nunca beijarás
Embora perto de tua meta - não te aflijas;
Ela não se desvanecerá, e embora não tenhas o deleite,
Sempre amarás, e será ela sempre bela!

III

Ah! Os ramos alegres, alegres! Que não perdereis jamais
Vossas folhas, nem vos despedireis da primavera;
E, músico feliz, incansável,
A tocar melodias sempre novas;
Mais amor feliz! Mais feliz, feliz amor!
Eternamente cálido e para sempre a ser gozado,
Continuamente palpitante e sempre jovial;
Todos eles suspirando a intensa paixão humana,
Que deixa o coração aflito e saciado,
A cabeça quente, e a língua seca.

IV

Quem são aqueles indo ao sacrifício?
A que verde altar, Ó misterioso sacerdote,
Conduzes aquela bezerra berrante aos céus,
E todos seus sedosos flancos com guirlandas?
Qual cidade à beira da praia ou rio,
Ou na montanha cercada por muralhas,
Que está deserta, nesta sagrada manhã?
E, na pequena cidade, tuas ruas sempre estarão
Em silêncio, pois ninguém que poderia contar
Porque estás deserta voltará.

V

Ó estilo Ático, bela Atitude!
De homens e donzelas forjados em mármore,
Com ramos silvestres e relva pisada;
Tu, forma silente, arroja-nos ao sortilégio
Qual a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a velhice arruinar esta geração,
Permanecerás, em meio a outro infortúnio
Que não o nosso, amigo do homem, a quem proferes,
“A Beleza é Verdade, a Verdade Beleza” - isto é tudo
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber.

[In Nas invisíveis asas da poesia, tradução Alberto Marsicano e John Milton, São Paulo, Iluminuras, 1998, pp. 29-33]. 



segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Konstantínos Kaváfis

O SOL DA TARDE

Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.

Ah este quarto, não é nada estranho.

Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.

Estarão ainda os coitados nalgum lugar.

Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.

...De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só . . . Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.

(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)

DOIS JOVENS, DE 23 A 24 ANOS

Desde as dez e meia estava no café,
e esperava que aparecesse logo.
Foi-se meia-noite – e ainda o esperava.
Foi-se uma hora e meia; esvaziara-se
o café quase por inteiro.
Cansou-se de ler jornais
mecanicamente. Dos seus escassos, três xelins
restava apenas um: tanto tempo esperou
que gastou os outros em cafés e conhaque.
Fumou todos os seus cigarros.
Esgotava-o a espera demasiada. Pois
assim sozinho como já estava por horas, começavam
a ocupá-lo pensamentos importunos
da sua vida desviada.

Mas quando viu o seu amigo entrar – de pronto
o cansaço, o tédio, os pensamentos fugiram.

Seu amigo trazia uma notícia inesperada.
Ganhara no jogo de cartas sessenta libras.

Seus belos rostos, sua juventude maravilhosa,
o amor sensual que tinham entre si,
refrescaram-se, avivaram-se, acentuaram-se
com as sessenta libras do jogo de cartas.

E cheios de alegria e força, sentimento e beleza
foram – não para as casas de suas famílias honradas
(onde, aliás, nem os queriam mais):
a uma conhecida, e mui particular,
casa de perdição foram e pediram
quarto de dormir, e bebidas caras, e novamente beberam.

E quando acabaram as bebidas caras,
e quando aproximavam-se as quatro horas,
ao amor entregaram-se felizes.

(Tradução: R. M. Sulis, M. P. V. Jolkesky, A. T. Nicolacópulos)

domingo, 28 de dezembro de 2014

Paul Auster

SOMBRA A SOMBRA
Contra a fachada do crepúsculo:
sombras, fogo e silêncio.
Nem mesmo o silêncio, mas seu fogo
a sombra
que projeta uma respiração.

Por penetrar o silêncio deste muro,
tenho de me deixar para trás.

PROVENCE: EQUINÓCIO
Clara-noite: o osso e o alento
transparentes. Essa jornada
de céu ofertado
para o centro do céu
que habitamos — uma montanha
no ar que desmorona.

Tu, só
dorme-te no fundo
deste ponto,
terra natimorta, como se pudesses sonhar
tão longe
por me dizer da densa, relameada semente
que arde em nós,
e acalmar a lenta, vernal agonia
que lida
no longo processo de arrancar pela raiz
as estrelas.

[Fonte: Todos os poemas, Tradução e prefácio de Caetano W. Galindo, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 163-165].

sábado, 27 de dezembro de 2014

Dora Ferreira da Silva


APOLO
Na ilha, sob a única palmeira, veio à luz
que se ofuscou, embora os anéis de seu cabelo
fossem negro-azulados. Cisnes, seus pássaros;
lira e flauta, brinquedos; e jovens atônitas com seu brilho divino,
fugitivos amores, em flores e arbustos transformados.
Dominou as trevas, sem que os braços brancos se crispassem
ao desferir as setas, célere seguido pela matilha dos presságios.

Eis que me designas, deus, para teu culto na manhã
que desdobra a túnica. Cigarras vibram à tua passagem
e pássaros cedem ao canto grácil, ouvindo-te chegar.
Porte de cipreste, olhos de azul profundo,
traças caminhos no Jônio Mar e às ilhas da Perfeição te achegas
e às claras fontes.

Alguns celebram ainda teu rastro iluminado
e outros nomes dão à beleza nascida
na ilha abraçada pelo Mar. 


APOLO HIPERBÓREO
Ele ama a distância além do inverno,
onde não declinam a luz radiosa e os cantos.

Quando se afasta, pássaros silenciam e a fonte
em Delfos quase se extingue. Lobos uivam.
Imensa é a noite fria em sua ausência.

Mas ouve! O jubiloso peã de novo repercute
nas pedras brilhantes. Corpos e olivais dourados
revivem na dança: o Citaredo retorna coroado de folhas.

[In Hídrias, São Paulo, Odysseus, 2004, pp. 36- 37].



 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Armando Freitas Filho

DUAS NOTAS
Os passos da linguagem
no corredor da fala:
esta palavra que suspiro
e não digo: granada de silêncio
entre os dentes, corcel de vozes
galope, impulso, carga
percurso que não se cumpre
e, por dentro, deflagra um mudo
curto-circuito, uma suíte nua
e elétrica, sem pauta nem pausa.

Escrevo o silêncio com a tinta
branca do invisível: aqui está
o que não falo e o que medo
cala: cada letra ou as estrelas
imaginárias sonhando nas entrelinhas.
O que não consigo e persigo
o que persiste, tateia e segue
seu curso - do ápice ao colapso -
o vário fragmento, tudo o que penso
pousa em mim, e me vence.

[In Armando Freitas Filho, melhores poemas, seleção Heloísa Buarque de Hollanda, Global: São Paulo, 2010, p. 67]

Gustave Coubert

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Yannis Ritsos


A CANÇÃO DE MINHA IRMÃ
(fragmento)


Irmã,
eu não sou mais poeta,
não suporto ser poeta.
Sou uma formiga estropiada
que perdeu seu caminho
dentro da noite imensa.
Revolvo as cinzas
dos incêndios de abril
sem achar uma chispa
com que acender a velha estufa.
Pesaste
os tesouros dos séculos
na tua palma minúscula.
Demoliste as montanhas
onde os poetas repousavam.
Eu não sou mais poeta.
Bem sei:
os poetas
não turvam com lágrimas
as cidades de cristal.
Velam,
com o seu olhar imperturbável,
para medir
as palpitações da luz
e os tremores do universo
Eu, porém,
velo, irmã,
para medir os teus tremores,
a tua respiração.
Torre noturna, apoio-me
ao estrondo inconcebível
dos raios que se cruzam
e, resoluto, toco-lhe as espadas.
Os arcos de luz tombaram
sob tuas pálpebras.
Nada mais vive
fora do círculo lúgubre
que teus olhos cavaram na criação.
Não quero
que os tambores do triunfo
anunciem minha glória
nos bosques primaveris.
O teu sorriso
me basta.
A fonte dos teus olhos
pode matar-me a sede
e fazer minha vida reflorir.

SINFONIA DE PRIMAVERA
(fragmento)


Fecho as pálpebras
sob a noite tranquila
e ouço miríades de astros cantarem
ali onde os teus dedos correram
pela minha carne.
Sou
o céu estrelado
de verão.

Tão belo e tão profundo
tão grande me tornei
pelo teu amor
que já não consegues mais
abraçar-me.

Amada
vamos partilhar
o dom que me trouxeste.
Vê: o bosque se curva
ao peso de suas flores e de suas folhas.


MEDO DA VIDA

Dia de pedra
sol de pedra
silêncio de pedra

Morreram os cavalos na montanha
morreram as árvores na cal
tu não morreste

O som de seus cascos ao longe
o som do velho ofego
dentro do meio-dia marmóreo

E o medo de que talvez não tenhas morrido
e o medo da água que irá correr
o medo, a água, a respiração — vida.

(De Notas à margem do tempo [Simeióseis stà
Perithória toü Xrônou], 1938-1941)


O MORRO

Alguém tinha muitos mortos.
Cavou o chão e os enterrou sozinho.
Pedra por pedra, torrão por torrão,
ergueu um morro.
Sobre o morro
construiu a sua cabana voltada para o sol.

Depois traçou ruelas
plantou árvores
cuidadosa, geométrica, meditadamente.
Seus olhos sorriam.
Suas mãos não tremiam quase.
O morro.

Por ele subiam nas tardes de domingo
as mães empurrando seus carrinhos de bebê
e os trabalhadores da redondeza, de camisa limpa,
que vinham tomar um pouco de sol, respirar um pouco
de ar.
Ali os casais de namorados, de noitinha,
passeavam e aprendiam a ler os astros.
Debaixo das árvores um menino tocava a sua gaita de
boca.

O vendedor de refrescos anunciava suas gasosas.

O alto do morro, todos o sabiam,
estava mais perto do céu.

Ninguém sabia, porém, como nascera o morro
ninguém sabia quantos dormiam nas entranhas do morro.

[Idem]


O SIGNIFICADO DA SIMPLICIDADE

Escondo-me atrás das coisas simples para que vocês me
encontrem;

se não me encontrarem, hão de achar as coisas,
tocarão aquilo que minha mão tocou,
os caminhos de nossas mãos irão se unir.

A lua de agosto rebrilha na cozinha
qual uma panela estanhada (isso por causa do que lhes
digo)

ilumina a casa vazia e o silêncio ajoelhado da casa —
o silêncio está sempre ajoelhado.

Toda palavra é uma saída
para um encontro muitas vezes obstado
e será uma palavra verdadeira se insistir no encontro.

 (De Parênteses [Paréntheseis], 1946-1947)

PANELA SUJA DE FULIGEM
(fragmento)


Perto de ti o aleijado antes de ir-se deitar retira a perna,
deixa-a num canto — uma perna oca de madeira —
é preciso que a enchas como se enche de terra um vaso
para plantar flores
como a escuridão se enche de estrelas
como pouco a pouco enche-se a pobreza de pensamentos
e de amor.

Decidimos que um dia todos os homens hão de ter as
duas pernas
uma ponte ditosa de um olhar a outro
de um coração a outro. Por isso onde estejas sentado
entre os sacos no passadiço de partida para o exílio
por trás das grades da seção de trânsito
perto da morte que não diz “amanhã”

entre milhares de muletas de anos amargamente aleijados
dizes “amanhã” e ficas sentado tranquilo e seguro
como um homem justo diante de outros homens.

Estas marcas rubras nas paredes podem ser de sangue
— tudo quanto seja rubro hoje em dia é sangue —
pode ser também o sol batendo na parede fronteira.

A cada crepúsculo as coisas ficam rubras antes de apagar-se
e a morte mais perto. Do lado de fora da cerca
estão as vozes das crianças e o apito do trem.

(...)

Nessas horas apertas a mão do companheiro teu,
o silêncio se enche de árvores
o cigarro partido ao meio corre de boca em boca
como lanterna a perscrutar o bosque. — Encontramos a
veia
que leva ao coração da primavera. E sorrimos.
Então as celas se tornam mais estreitas
e é mister pensares na luz de um campo com espigas de
trigo
e no pão sobre a mesa dos pobres
e nas mães que sorriem às janelas
para achares um lugarzinho onde esticar as pernas.

Sorrimos para dentro. Este sorriso o escondemos agora.
Um sorriso ilegal — como ilegal tornou-se o sol
ilegal a verdade. Escondemos o sorriso
como se esconde no bolso a foto da mulher amada
como se esconde a ideia de liberdade nos refolhos do
coração.

Aqui todos temos um céu e o mesmo sorriso.

Amanhã poderão matar-nos. Mas este sorriso
e este céu não nos poderão tomar.

MUDANÇAS

Levaram o arado para o campo;
trouxeram o campo para casa —
uma incessante mudança afeiçoou
o significado das coisas.

A mulher trocou de lugar com a andorinha,
sentou-se no ninho sobre o teto e pôs-se a gorjear.

A andorinha sentou-se ao tear e foi tecendo
estrelas, pássaros, peixes, flores e barcos à vela.

Se soubesses como é bela a tua boca
me beijarias nos olhos para que eu não visse.

[De Exercícios]

OPERÁRIO DA PALAVRA

Trabalhou a vida toda duramente, incondicionalmente,
com ardor, com arrebatamento, quase com fé na
imortalidade
e na sua própria imortalidade, decerto. Até que certa noite
soprou um vento repentino. A porta se fechou por si
mesma.
Viu as estátuas tombarem de frente. Compreendeu.
As palavras que escreveu assim, ano após ano,
enrijeceram; sentiu-as sob os dedos
como o pelo seco e neutro de um bicho morto.

No outro dia, contudo, retomou regularmente seu trabalho
e chegou a confundir imortalidade e morte, embriaguez
e olvido,
mas esclareceu com rigor o que é trabalho
entre futilidade e altivez. E as batidas
do relógio tinham o som de um tambor dentro da noite
ritmando a marcha de soldados sonolentos
entre duas batalhas.

[Idem]

ARTISTA ESQUECIDO

Um desenhista, durante a tarde, desenhou um trem.
O último vagão destacou-se do papel
e voltou sozinho para o depósito.

Exatamente nesse vagão é que estava sentado o desenhista.
[Idem]

DELEITE

A quadra da velhice, serenidade além da alegria ou da
dor,
e além da ansiedade. Ela conta seu tempo
sem impaciência —quase não o conta; distrai-se
com uma vespa que se aprofunda em seu zumbido,
com um copo cujo círculo diáfano voga no ar.

Quadra tranquila, ilimitada, após a responsabilidade e a
ação,
doce quadra silente qual uma mulher deitada
mulher que depois do prazer deleitosamente medisse na
palma da mão
o brando peso dos órgãos sexuais do homem.

DA “SUÍTE PEQUENA EM VERMELHO MAIOR”

Os dedos da mão
os dedos do pé
falos
entre os cinco dedos
quatro vulvas
— vinte e dezesseis —
antes de conseguires
fazer a soma
teu esperma jorra
nos lábios da estátua.
(De Poemas eróticos [Tà Erotiká], 1981)



[In POESIA MODERNA DA GRÉCIA, Seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 195-204]


SOBRE YANNIS RITSOS


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Tiziana Cera Rosco

A TAREFA

Bebo no osso da cadeira sem mesa
uma infusão perfeita.
Daqui a pouco até esta cadeira
será derrotada.
Talvez seja preciso estar assim
sem lugar algum para apoiar os cotovelos
para reaprender uma postura

Sempre tive medo de uma distensão.
Me vejo com menos de trinta
dois filhos e um casamento quebrado.
É a quarta casa que habito em quatro anos.

Mas é silencioso manter todos os pedaços num inteiro.
Não emitir a dor.

Chove.

Sem mais som sobre o qual apoiar
uma palavra.

[Tiziana Cera Rosco, é artista plástica e poeta, nascida em Milão, em 1973, onde reside].

Laura Riding

ABRIR DE OLHOS

Pensamento dando para pensamento 
Faz de alguém um olho. 
Um é a mente cega-de-si, 
O outro é pensamento ido 
Para ser visto de longe e não sabido. 
Assim se faz um universo brevemente.

A suposição imensa nada em círculos,
E cabeças ficam mais sábias
Enquanto notam a grandeza,
E a dimensão imbecil
Espaça a Natureza,

E ouvidos reportam primeiro os ecos,
Depois os sons, distinguem palavras
Cujos sentidos chegam por último ─
Vocabulários jorram das bocas
Como por encanto.
E assim falsos horizontes se ufanam em ser
Distância na cabeça
Que a cabeça concebe lá fora.

O maravilhar-se, que escapa dos olhos,
Regressa a cada lição.
O tudo, antes segredo,
Agora é o conhecível,
A vista da carne, a grandeza da mente.

Mas e quanto ao sigilo,
Pensamento individido, pensando
Um todo simples de ver?
Essa mente morre sempre instantaneamente
Ao prever em si, de repente demais,
A visão evidente demais,
Enquanto lábios sem boca se abrem
Mundamente atônitos para ensaiar
O verso simples e impronunciável.

SOBRE LAURA RIDING
(In Revista Poesia Sempre, tradução de Rodrigo Garcia Lopes)


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Ricardo Pedrosa Alves

INEVITÁVEL MAIS DESEJOS
Tudo o que girassóis vêm nascendo
mais cedo que reluzem o pó de tudo,
prevê-se, cilícios em que o medo se escarlate
nas cócegas de nunca arder
Vida de escandir ondas nos vincos dos dedos
e ilíadas para a pele
Ser na berlinda entrepistas
de morenas taísas pitonisas:
o fúlgido agouro tatuado, cada luz
de palavra rompendo nada o osso,
caldos de mais-cores banhando
a pele-escorpião
Agora faina do fluxo-gêiser verbo e tal
versejo e tal até que daí
erupção o sumo o suco podre das significações,
verseja-se, cábula das semelhanças,
fendendo realismos ismos
Tudo o reluzem, vinde nascente
mais ouro cedo do sol:
na tua luz que, ei-las, asas
saem caudalosas
em flagrante flamância

OLHO EMPECILHO DO OLHAR E O MAR DA ONDA
SEM MAR

Como apresentar o ar que se estilhaçando
quase flocos e furto ao caos,
sempre espicaçado, flor que transpetalada
peça o céu de gotas de nada?

No furo fundo da voz é menos falar
de brisa que giz insista como grito
vagir-se em segredo.

Pequeno valer-se do corpo fosse farsa,
a verdade é sobrevoo e
procurando o sonho é hipocampo sem asas,
porém inflado e à luz alado.

Então pior que saia a sombra
do corpo, giros dos cascos do vento,
surpresa vai-se fotocravejada,
cravejada, fóssil histérico
de novo em convulsão

(In Desencantos mínimos, São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 38-39)

Ricardo Pedrosa Alves nasceu em Governador Valadares (MG), em 1970. É graduado em Sociologia, pela Unicamp.   Seu primeiro livro se intitula Desencantos mínimos (São Paulo: Iluminuras, 1996). 

 

domingo, 21 de dezembro de 2014

Clarice Lispector

Daniel era um menino estranho, sensível e orgulhoso, difícil de se amar. Ele não sabia dar um pretexto para esconder. Mesmo quando caía em fantasias estas eram precavidas, familiares; ele não tinha coragem de inventar e era sempre ela quem numa facilidade surpreendente mentia pelos dois; ele era sincero e duro, detestava o que não via. Com seus olhos limpos e secos vivia como só com Virgínia dentro da Granja. Desde que a irmã nascera ele a tomara e secretamente ela era apenas sua. Ainda muito pequena, os cabelos compridos e sujos nos olhos, as pernas curtas hesitando sobre os pés descalços, ela agarrava com uma das mãos os fundos das calças de Daniel e o irmão, o rosto queimado e sem doçura, os olhos seguros, subia pelas encostas das montanhas, com movimentos obstinados como se não sentisse o peso de Virgínia, a inclinação resistente dos morros, o vento que soprava firme e frio contra o seu corpo. Não a amava sequer mas ela era doce e tola, fácil de se conduzir a qualquer ideia. E mesmo nas épocas em que ele se fechava severo e bruto dando-lhe ordens, ela obedecia porque sentia-o perto de si, ocupando-se dela — ele era a criatura mais perfeita que ela conhecia. Passava então os dias numa estranha euforia, como o vento, alta, calma e silenciosa. Deus meu, não sabia ela que pensava, ela só tinha ardor, nada mais, nem mesmo um motivo. E ele — ele só tinha raiva, nada mais, nem mesmo um motivo. Apesar de tudo Daniel pisava sem forca, permitia que nela vivesse aquele seu desespero desajeitado e atento, uma aguda fraqueza, a possibilidade de perceber pelo nariz, de pressentir dentro do silêncio, de viver profundamente sem executar um movimento. E de fechada num quarto estar em perigo. Sim, sim, aos poucos, baixo, de sua ignorância ia nascendo a ideia de que possuía uma vida. Era uma sensação sem pensamentos anteriores nem posteriores, súbita, completa e una, que não poderia se acrescentar nem alterar com a idade ou com a sabedoria. Não era como viver, viver e então saber que possuía uma vida, mas era como olhar e ver de uma só vez. A sensação não vinha dos fatos presentes nem passados mas dela mesmo como um movimento. E se morresse cedo ou se enclausurasse, o aviso de ter uma vida valia como ter vivido. Por isso também ela era um pouco cansada talvez, desde sempre; às vezes só por um esforço imperceptível mantinha-se à tona. E acima de tudo, sempre fora séria e falsa.

(Excerto de O LUSTRE, 3a. ed. José Alvaro: Rio de Janeiro, 1967, pp. 24-25)

By MARTIN STRANKA

sábado, 20 de dezembro de 2014

Alberto Bresciani

MITOLOGIA

O muro não me libertará
(sei porque sou tempo)

Conhecendo também
suas entranhas, armadilhas
saliências e entraves

eu o escalo
até o alto
onde ameias são faces tantas
e arranham ou assaltam
a vida

Lá, debruço-me
pendo, estico-me
jogo as mãos
a pele

e mesmo que não encontre
matéria de igual trama
ainda tenho

céu, vento, ar
ou desejo e dúvida e ilusão

Este (é um murmúrio)
o meu plano de voo
ramo de salvação

Sim, no relume das horas
arranco uma ou outra
de suas plumas e
do cimo
sinto

o doce estrépito
de um corpo
que arde e responde
                 sob o meu.

HALO
Para Maria de Assis Calsing

Essa casa não tem janelas
não tem portas, paredes

A solidez rejeita a ameaça
mas não pesa sobre a água

Translúcido é o nome solto no ar
no perfume, nas açucenas

Leve e diáfana casa
aninha o que flutua, o que não cai

tudo nela germina e enflora
abriga sim e a tudo afirma

E nela, clara casa, não há não
caminhos se abrem

e sopram à cálida folhagem
a brisa, a carícia do lago

Sobre ela, firme e branda casa,
palavras brincam com a luz

são imagens que a alma canta
(e eu digo: alada mão as deixou).

MARGHE(RITA)

Não valem os dias
além dos corações
que neles batem
São caminhos

Essa única vista
me verte o sim
Você fala por ela
e repete as imagens

A porta que abre
verdeja
e floresce
para dentro do corpo

história maior
do que antigas lembranças

Do teu nome,
margaridas nascem sobre a lava.

[In Incompleto Movimento, Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp. 24-25, 33, 64]




sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Cesare Pavese

A VOZ

Cada dia o silêncio do quarto isolado
se recolhe no leve marulho dos gestos
como o ar. Cada dia a estreita janela
se abre imóvel ao ar que se cala. A voz
rouca e doce não volta no fresco silêncio.

O ar imóvel se abre ao alento de quem
vai falar e se cala. É assim todo dia.
E a voz é a mesma, mas não rompe o silêncio,
rouca e igual como sempre na imobilidade
da memória. A clara janela acompanha
com sua breve batida o antigo sossego.

Cada gesto percute o antigo sossego.
Se soasse a voz, voltariam as dores.
Voltariam os gestos no ar espantado
e palavras, palavras à voz submissa.
Se essa voz ressoasse, até a breve batida
do silêncio que dura seria uma dor.

(In Trabalhar Cansa, Tradução e introdução Maurício Santana Dias, São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 269)



quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Helder Magalhães

POEMA PARA DIZER NATAL

trago um menino no peito
e os dedos cobertos de musgo
vêm adorá-lo
tocam-lhe a melodia dos anjos
sobre a cicatriz exposta
lateja mais forte
que as baladas que o anunciam
o pai é-o sem ter sido filho
e a mãe cose-lhe botões e botões
de flores
trago um menino no peito
rebenta-lhe o choro de ver a luz
do parto todos os dias
os dedos cobertos de musgo
peregrinos do rosto
submerso em um líquido
de matéria interestelar
a casa compreende-se entre
paredes de silêncio e águas-furtadas
a céu aberto
trago um menino no peito
e os dedos cobertos de musgo
arranham uma fome
e um frio de deslumbre
há-de cumprir-se pela gotícula
do orvalho sobre o jarro
aberto.
(Poema reproduzido com autorização do autor)
Ilustração: Rogier van der Weyden (1400-1464), São Lucas desenha a Virgem, têmpera, no Museu de Belas Artes de Boston.  





quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Elizabeth Bishop

ANÁFORA
In memoriam de Marjorie Carr Stevens

Cada dia, cerimonioso,
começa com pássaros, e fábricas
a apitar, estrepitosas;
diante de céus aurialvos
tão claros nossos olhos se abrem,
e por um instante perguntamos:
“De onde esta força, esta melodia?
Para qual inefável criatura
que não vimos, foi feito este dia?”
Logo, logo ela surge, e assume
          sua natureza terrena
          e cai vítima da intriga,
          sob o
ônus da memória,
          da mortal, mortal fadiga.

Mais lentamente, aparecem
os rostos sarapintados,
condensam sua luz, e a escurecem;
apesar de tantos sonhos
gastos nela em tal olhar,
atura nosso uso e abuso,
mergulha no fluxo de corpos,
mergulha no fluxo de classes
até chegar ao mendigo exausto
sem livro, sem luz, no lusco-fusco,
          imerso em estupendos estudos:
          este incandescente evento
          de cada dia em constante
          constante consentimento.

[In Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop, Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 161]


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Armando Freitas Filho


TRÍPTICO
imitando Francis Bacon

O arquiteto
Emparedado ou preparado no quarto-forte
no aparelho sem janela, cada dia
à cabeceira, o copo d'água
se envenena, escurece, o relógio
de pulso retroativo, vai em frente
irredutível, bate seco na quadra
do tempo, na superfície da vida.
Sonho preto de labiríntica engenharia
se levanta em linha reta, contra a luz
do sol, ao ar livre, pronto para o assalto.

Homem-bomba
O corpo insuportável erra, se auto-empurra
calcificado, intramuros, e no caminho.
Atravessa trincheiras incorporando
o entulho das paredes repetentes
entranhadas em si, indissociáveis, com o que tem
de similar à alvenaria: osso, dente, unha, cálculo
cumprindo o destino mal traçado nas linhas da mão
no seu alcance máximo, e purga, na implosão da fé.

Ecce homo
Asfalto pânico. A flor não fura mais
a dura casca preta. O terno, depois
o carro blindado até os dentes do radiador.
Colete à prova de bala, roda de titânio
que o terror sem rosto dirige, explosivo
invisível, atrás de vidros negros —
fúnebre e fantasma — cheiro de couro
virgem, carne de caralho, loção
pós-guerra, punho, pulso no volante
segurando não sei quantos cavalos.

(In Raro Mar, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 52-53)





segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Lélia Coelho Frota

MÁXIMA POLIDA
A um audaz parceiro
Lembra a emoção que sentiste,
que não sendo grande amor
Floriu mesmo em amor grande
(grande mas não para mim -
só ao prestígio da imagem
que declararam ser minha)
eu, que ignorando previra
minha sorte no flautim
de certo
pícaro bardo
que se disfarçou de cardo
dissimulando ternuras.


Que fique pois nossa dança
com o sabor acre de um brinde
atirado na parede
sobressaindo na argila
nossa polca inacabada
nesta comarca de sonho.
[In Poesia Lembrada, in Poesia Reunida 1956-2006, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2013, p. 82].


domingo, 14 de dezembro de 2014

Tasso da Silveira

CANÇÕES À COMPANHEIRA
1
Por que, quando apareceste,
amanheceu em mim?
Quando amanhece na Terra,
e tudo se enche de beleza
e de força fecunda
e de frescor infinito,
é porque as esferas imensas
serenissimamente completaram
nos abismos sem fundo
um passo mais da sua dança eterna.
Por que, porém, quando apareceste,
amanheceu em mim?

2
Eis o que sou neste instante, Amiga:
uma sombra no chão.
Não uma sombra de árvore
sobre o caminho longo,
no qual ainda ressoam passos de passantes.
Não uma sombra leve
de barco na água mansa.
Não uma sombra fresca
de pomar ou jardim.
Mas uma sombra infinitamente perdida.
Como a de um rochedo morto,
ao luar,
sobre a areia infecunda
de alguma enorme, incomunicável Solidão.

[In Poemas, organização e seleção de Ildásio Tavares, São Paulo: Coedição da ABL e Edições GRD, 2003, pp. 130-131].

SOBRE TASSO DA SILVEIRA




sábado, 13 de dezembro de 2014

Hélio Pellegrino

L´HOMME RÉVOLTÉ
Venho de um negro tempo irredutível,
anterior a mim.
Vou para um negro tempo desmedido,
infinito campo de ébano
onde me apagarei.
De uma escarpa a outra,
transfixado entre negro e negror,
danço — centelha breve — o meu furor.

A CEGUEIRA DE ÉDIPO
Caminha errante o velho rei da terra,
sangrando a cada passo o seu desterro.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.

Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.

Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte

desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente.

QUADRILÁTERO FERRÍFERO
Em tuas colinas rasas
não há vinhedos nem olivais.
Há — púrpura difícil — a hematita,
uva das Minas Gerais.

Uva sáfara, mineral,
fermentando uma pinga de poeira
cujo álcool — lâmina de rocha e cal —
torna triste a embriaguez mineira.

Embriaguez vertical, contida,
cujas cores explodem dentro
do peito: ocre violento, lacre
e prata, sol — e lua ferida.





sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Armando Freitas Filho

MARCEL E CLARICE
Para Carlos Mendes de Souza

À mesa o tempo não passa.
O lustre paralisado sonha
com a luz de outra época
que vai abrindo o leque
rápido e retrospectivo
a partir da xícara de chá
e do gosto da madeleine
mergulhada naquela infusão
da Índia ou de tília, da memória
trazendo toda a recordação até
ao licor de anis, de fruição fugidia
apoiada num instante isolado
e calmo - claro - estabelecido
no calor do álcool, na evaporação
da cor, no gole que combinava
as sensações de pertencimento
a perda, no sabor espraiado
de uma manhã à outra, ambas
vencidas, pretéritas, mas vivas
ao saírem das noites passadas.

[In Relâmpago, Revista de Poesia, Nº 34,  Ed. Relógio d´Água]

SOBRE ARMANDO FREITAS FILHO 

Richard Collins, A Family of Three at Tea, 1727 

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Lara de Lemos

Condição de Jó

“A terra foi entregue nas mãos do
ímpio, o qual cobre com o véu os
olhos dos seus juízes.”
Livro de Jó,  9,24

Onde encontrar a raiz

da palavra raiva
o centro da cegueira
do ódio, da ira.
O mal da malícia
da maldade
da maledicência?

A mola que move

o punho, o soco
a mão que agride
fere, ferra.
O dente que morde.
A força que retesa o arco
dispara a flecha inflexível
contra o coração do homem?

É um tempo de ciladas

de falsos testemunhos.
As palavras não atam
não unem 
não ungem
não curam
não consolam.
São facas aguçadas
pedras ponteagudas
jogadas no rosto
do pretenso inimigo.

Ninguém é poupado

do assassinato diário.
O punhal, o tiro
o veneno, o rancor
o cacetete, a droga
o gás lacrimogêneo
as metralhas
— são faces escuras
do extermínio.

A morte exata

ascética
é enviada pelo correio
em cartas-bombas.
Por todos os lados
se armam laços
lanças, lama
estilhaços
cercas, cercos
contra o retirante
o colono, o índio
o proscrito.
Seres em desamparo
doentes, baços
sem braços, sem dentes
sem pernas, sem sangue.
Precários bichos
silenciosos.

Onde a raiz da injustiça

da impiedade, da traição
da aleivosia
dos algozes
das algemas
deste dia? 

A hora é horizontal

como um réptil. Escura
como noite invernosa.
Traiçoeira como areia
movediça.

Como Jó clamamos

pela aurora.

[In Revista Oitenta, Porto Alegre, Brasil, L&PM, vol. 6, pp. 113-115, março de 1982]


Sobre Lara de Lemos



by Francis Gruber

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Pier Paolo Pasolini

A DESTRUIÇÃO DA IDEIA DE SI
Vieste, pois, a esta casa para destruir.
O que destruíste em mim?
Destruíste, simplesmente
— com toda a minha vida passada —,
a ideia que sempre tive de mim mesmo.
Pois, se há muito tempo
eu assumira a forma que devia assumir
e a minha imagem era de certo modo perfeita,
agora o que me resta?
Não vejo nada que  possa me reintegrar
na minha identidade. Olho-te: não me escutas
com imparcialidade — porque não te divides em partes —,
mas com dedicação — porque te dás todo a cada um.
Como pode, todavia, a tua presença consoladora
ser assim pura, a ponto de manifestar
quase uma clara vontade de separação?
De que serve me consolar, se tu, se quisesses,
poderias adiar, quem sabe para sempre,
a tua partida? Mas, ao contrário, vais partir:
quanto a isso não há
mais a menor dúvida.
A tua piedade está, portanto, subordinada
a um outro desígnio misterioso.
Queres talvez me dizer (não falando, mas simplesmente,
pelo fato de que és um jovem)
que poderias ser substituído agora
por meu filho ou por minha filha?
Proposta completamente louca (condicionada,
talvez, por uma obscura vontade minha) —,
mas justa, se, ainda que realizada
(o membro nu de meu filho, a vulva nua de minha filha),
não fosse mais do que um símbolo: e se através dessa proposta,
tu me exortasses à perdição mais completa,
a colocar a vida fora de si mesma,
e mantê-la de uma vez para sempre
fora da ordem e do amanhã,
fazendo de tudo isso a única real normalidade.
Talvez porque quem te amou deve
(como, de resto, todo homem — quem não o sabe)
poder reconhecer a todo custo a vida,
a cada instante? Reconhecê-la, e não somente
conhecê-la ou simplesmente vivê-la?
São — dizes generosamente na minha banal linguagem
[burguesa —
as excepcionalidades mais impensáveis,
mais intoleráveis, mais distantes da possibilidade
de serem concebidas e até mesmo nomeadas
que se apresentam como os meios
mais eficazes
para reconhecer a vida?
Excepcionalidades que, entretanto, não podem
ser senão símbolos
— se na realidade, como toda coisa real,
são feitas de nada e destinadas ao nada?


[In Teorema, tradução de Fernando Travassos, São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 90-91]

SOBRE PIER PAOLO PASOLINI



Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...