domingo, 24 de novembro de 2019
Graça Pires
Um dia nos pátios das casas
hão-de acender-se fogueiras
para atrair a chuva
como uma crendice de tempos remotos.
Seremos, passo a passo,
errantes de longínquas viagens
ou peregrinos perseguidos em tempos de oração.
------
Escavo no peito um declive de seara
para ceifar o pão e roçar o ventre
no aroma dos fenos, até que o fermento
levede o trigo por entre os dedos do estio.
As farpas de um arado podem sulcar-me a pele
porque é de terra o molde do meu corpo.
------
Escrevemos mar como se fosse a palavra
única que nos circunda a fala.
Quando éramos crianças tínhamos os barcos de papel.
E havia traineiras em que os pescadores manchados
de sal e sangue enfrentavam a tormenta de cada dia.
Agora, de quilha inquieta, os navios ferem
as entranhas da água e cingem-nos no olhar
o negro das marés e dos limos
que morrem na praia, onda após onda,
num extenuado adeus ao apelo dos corais.
(Em Uma vara de medir o sol, São Paulo: Intermeios, 2012)
SOBRE GRAÇA PIRES
domingo, 10 de novembro de 2019
Maria Gabriela Llansol
Quatro garotos com suas calças curtas, e de alturas
Desiguais, disseram-lhes:
—
Este é o ponto extremo
de nossos corpos. -
— (...)
—
Para além, deixamos de
ser humanos.
Foram incapazes esses homens de subir para o
Veículo da
noite estrelada, facetado com o último
Rosto das crianças. O próprio texto
uivava sobre
Seus pés. Nesse horizonte nenhum bicho rasgaria
A paisagem, mas
eram almas humanas girando
Na sua aterradora liberdade.
///
Principia por ser um líquido escuro numa farmacopeia Abandonada. Espesso, espera ser dividido em porções
Mais líquidas, que o transformem numa poção de cura Homeopática. Um prazer curado que regressa
À fulgurância. Não desejo rapto
Mas santidade.
///
A santidade é o mais forte de todos os sentimentos
Verdadeiros.
O seu trabalho é de uma beleza aterradora.
A sua perturbação invade o peito deslumbrado sem que,
Todavia, oscile para além do tranquilo.
Dá oito horas
No relógio da cidade velha.
Por ser uma alegria que
Rejubila com a alegria que se aprofunda, ela as transforma,
As horas (digo), as cansa, as regenera.
No fundo do peito,
Abrigando-se sob sentimentos humanamente tão usados
(Que, todavia, cintilam) adquire a sua única certeza
A de um trabalho que se gera
Para além de qualquer contrariedade.
[Em O começo de um livro é precioso, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003]
A santidade é o mais forte de todos os sentimentos
Verdadeiros.
O seu trabalho é de uma beleza aterradora.
A sua perturbação invade o peito deslumbrado sem que,
Todavia, oscile para além do tranquilo.
Dá oito horas
No relógio da cidade velha.
Por ser uma alegria que
Rejubila com a alegria que se aprofunda, ela as transforma,
As horas (digo), as cansa, as regenera.
No fundo do peito,
Abrigando-se sob sentimentos humanamente tão usados
(Que, todavia, cintilam) adquire a sua única certeza
A de um trabalho que se gera
Para além de qualquer contrariedade.
[Em O começo de um livro é precioso, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003]
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
José Tolentino Mendonça
A TUA ESTRELA BRILHARÁ
A TUA ESTRELA BRILHARÁ sobre os nossos dias irresolúveis, entre a escassez e a sede; brilhará sobre os motivos ávidos que nos prendem a um comércio repelido e sonâmbulo; sobre a vida que, mesmo sem querermos, permanece adiada.
A tua estrela brilhará sobre a austeridade imposta também aos afetos; sobre a dança interrompida, as mãos de repente caladas; sobre o silêncio que nos coube mastigar em solidão.
A tua estrela brilhará sobre os trilhos que fazemos para chegar a nenhuma parte; sobre os nossos passos em falso e as direções onde desembarcamos por engano; sobre esta aliança dolorosamente hesitante; sobre a imperfeição das promessas que acendemos e que são as únicas de que somos capazes; sobre o inacabado da prece e do dom.
A tua estrela brilhará sobre as viagens precárias que arriscamos, aceitando que não percebemos tudo; sobre as coisas não resolvidas do nosso coração que, a dada altura, se amontoam; sobre essas difíceis encruzilhadas estrada fora. A tua estrela brilhará sobre o desalento e a cinza que nos faz temer que seja irremediável o tempo e que já não tenhamos a força para nos reconciliarmos com o horizonte da vida multiplicada.
[O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, Lisboa: Quetzal, 2017]
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