sábado, 30 de novembro de 2013

Etty Hillesum

"O jasmim nos fundos da minha casa encontra-se agora completamente destruído pelas chuvadas e temporais dos últimos dias. As suas florzinhas brancas boiam dispersas nas lamacentas poças negras do telhado raso da garagem. Mas, em algum lugar  em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu. E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus. Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado".

"Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o teu grande céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de vez em quando"  (24 de Setembro de 1942).

[In Diário 1941- 1943,  Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 251]



Etty Hillesum

"O que interessa agora é não me deixar dominar por aquilo que neste momento está a acontecer dentro de mim. Deve passar para segundo plano, de uma maneira ou de outra. O que quero dizer é o seguinte: na realidade, uma pessoa nunca deve deixar-se paralisar completamente por uma só coisa, por pior que ela seja, a grande corrente da vida deve continuar a fluir". [ETTY HILLESUM, In Diário 1941-1943. 5 de dezembro de 1941, sexta-feira de manhã, às 9 horas].

(Hoje, 30 de novembro de 2013, 70 anos do martírio de Etty Hillesum)

Isabel Mendes Ferreira

e a montanha vai parindo ratos. brancos de névoa. inchados de adjectivos. cruzados de esteróides de madalenas e tibérios e salomés com pés de chumbo e flores mortas em vez de letras de flaubert. e assim os dias são carne para canhão e feitos de títulos apoetizados pela ganância do medo em hasta pública. são abraços senhores são nomeações fundeadas no artificioso ofício da sobrevivência de uns à custa de outros. e os ratos vão crescendo como falsos bois de ouro e cavalgam-nos pelas costas enquanto o coracão se esconde em torga e na fome do verbo orar. aleatórios os kants e todos os cânticos de baudelaire e mallarmé. aqui del rei que os ratos viram cavalos de tróia e a montanha passa a poeira. pobres e sem rosto e sem livro de horas somos a iguaria do abandono.

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e um dia o mar que foi origem da tua mão no meu ombro veio desfazer-se em olhos tardios. olhos com pestanas de sangue cognitivamente anunciadores da paralisia do futuro. um moinho de conflitos trágicos a ser excesso de fardo na divina ciência dos teus dedos indicadores do fim. e um dia a carne farisaica entrou ressurrecta no teu bolso de alquimista do vento. símbolo de um passado morto aos pés de uma escada descendente. que nunca subiu os passos dos amantes . era a excelência dionísica de um seio novo a amamentar a imortalidade. mesmo que por um só momento. foi assim o mar que devolvemos ao fundo de todos os fundos. de onde se volta nu e degolado. sem destino outro que não seja a morte. e um dia o mar efémero dos teus olhos fez-se eterno na terra do nunca. lá onde o sagrado é origem e verbo irmão da memória amordaçada. um fósforo. uma campânula. uma ressonância madura de monstros e de anjos. lá onde os pássaros explodem serpentinamente. e tu não me vês.

© Isabel Mendes Ferreira - Com permissão da autora.

Panayotis Cacoyannis

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Jorge Luis Borges

O FAZEDOR
Somos o rio que invocaste, Heráclito. 
Somos o tempo. Seu intangível curso 
Arrasta os leões e as montanhas, 
Pranteado amor, cinzas do deleite, 
Insidiosa esperança interminável,
Vastos nomes de impérios que são pó,
Hexâmetros do grego e do romano, 
Lúgubre um mar sob o poder da aurora,
O sono, em que pregustamos a morte,
As armas e o guerreiro, monumentos,
As duas faces de Jano que se ignoram,
Os labirintos de marfim que urdem 
As peças de xadrez no tabuleiro,
A rubra mão de Macbeth que pode 
Ensanguentar os mares, o secreto 
Trabalho dos relógios entre as sombras, 
Um incessante espelho que se fita 
Em outro espelho, e ninguém para vê-los, 
Lâminas aceradas, letra gótica,
Uma barra de enxofre em um armário, 
Pesadas badaladas da insônia,
Auroras e poentes e crepúsculos,
Ecos, ressaca, areia, líquen, sonhos.
Não passo de imagens que o acaso 
Vai embaralhando e que nomeia o tédio.
Com elas, mesmo cego e alquebrado,
Hei de lavrar o verso incorruptível
E (é meu dever) salvar-me. 

[In Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 327]


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ismael Nery

Poema
(1931)
Estou com o olho no telescópio que está dentro da barriga da cúpula. Observo a lua, a filha da lua, a neta da lua, toda a família da lua, menos o marido dela. Eu gosto da cor da lua mas acho incompleta a sua forma. A lua é uma mulher gorda, que parece magra, magríssima, abstrata. Eu gosto das mulheres abstratas que vêm ao mundo sem pai nem mãe nem irmãos, e que não nasceram em nenhum país nem tão pouco no mar. Gosto mais de ter uma mulher em pé na minha cabeça do que pendurada em meu pescoço. O meu pescoço, às vezes, não aguenta bem o peso da minha cabeça, porque ela está cheia de coisas que quase sempre eu não gosto. Tenho uma formidável atração pelo que detesto, inclusive eu mesmo. Ismael Nery: nunca consegui ouvir nem dizer este nome sem sentir uma comoção — mas não sei bem que espécie de comoção eu sinto ouvindo ou dizendo este nome. Há nomes também que me emocionam e me obrigam a inventar um físico para eles. Nunca vi ninguém que escapasse completamente a uma crítica minha — nem eu próprio. Terei que captar a minha sinceridade em alguém que não seja eu, e até muito pelo contrário — que seja diferente de mim. Preferiria olhar as mulheres de cabeça para baixo e suspenso por um fio de aço, do que de outra maneira qualquer. A desorganização das coisas não me agrada, também como a organização. Gostaria de ter um criado moral para arrumar o meu cérebro e consolar nas minhas ausências aqueles que moram comigo, de mim e para mim. O meu maior instinto é o da paternidade, que  a tudo e a todos. A minha maior vontade era a de ser a sombra  de tudo e de todos, a fim de nascer e morrer com todos  e em todos os tempos. Não haverá um homem que me determine moral e fisicamente?  Sou o gérmen de um Deus, toda a gente o é também. 

[Poemas de Ismael Nery recolhidos por Murilo Mendes, in Ismael Nery e Murilo Mendes: reflexos, Leila Maria Fonseca Barbosa & Marisa Timponi Pereira Rodrigues, Juiz de Fora: UFJF/MAMM, 2009, pp. 86-87]. 


AUTORRETRATO
Ismael Nery

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Murilo Mendes

ISMAEL NERY
1
Não é do homem que recebes a glória.
O Verbo te criou desde o princípio
Para transmitires palavras de vida
E para que O mostrasses a outros homens.
Em poucos anos percorreste os séculos
Que medeiam entre o Gênese e o Apocalipse.
O germe da poesia, essencial ao teu ser,
Se prolongará através das gerações.
Eras sábio, vidente, harmonioso e forte:
Mas atrás de ti, que visavas o eterno,
Se erguiam o tempo e as muralhas da China.
Morres lúcido aos trinta e três anos,
Quando se fecha uma idade e se abre outra.
Morres porque nada mais tens que aprender.

É a manhã. Teu corpo jaz na urna.
Mas erguendo os olhos para o céu diviso
Um poderoso Ente que gira sobre si mesmo
Se levantar com o nascimento do sol.

2
Também eu vi aquele
Que vem precedendo a nova era.
Também eu vi aquele
Que foi criado para glória de Deus.
Também eu passei com ele
Sob as arcadas do templo e à beira do mar.
A sabedoria se manifestava pelos seus lábios
E a plenitude da arte pelas suas mãos.
O homem não recebendo sua mensagem,
A eternidade impaciente o reclamou.
Também eu vi os céus se abrirem súbito
E o Julgador lhe atribuir a estrela.

[Poesia Completa e Prosa, Ed. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1994, pp. 258-259]. 


Figuras em azul, 1920
ISMAEL NERY

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Lélia Coelho Frota

ELUCIDÁRIO
Se a manhã nos arma um laço
de margaridas de aço
meu bem, eu fujo na brisa
que voa para Ouro Preto.
Eu voo para Ouro Preto
não para filar venturas
que escapariam de mim.
Eu voo para Ouro Preto
na pontinha de teus pés
e com asas de saíra
para antecipar a morte
de meu eu impaciente
nos planaltos impassíveis:
clara cor clarividente.
Essas melífluas tristuras
que esquinas cotidianas
distribuem no caminho
em Ouro Preto se aguçam
a um tal diapasão
que o ser não resiste e cede
seu lugar a algum inseto
cariátide de altar.
Eu voo para Ouro Preto
não no cultivo de hiper-
requintadas regalias:
eu voo sobre ouropéis
a me confundir nos cerros
que se engolfam na distância
no cerro
no cerro azul
de diamante taful.
Azulvoante volátil
para não ser: ser lembrança
de alguém que nunca existiu
 não usou vestido novo
não se sorriu nos espelhos
deu mão para namorado
e decorou teoremas
e não amou não amou
e não sofreu, diluiu
os olhos em noite insone.
Ser detalhe de paisagem
galicismo, bem-te-vi
principalmente não ser,
não ser, meu bem, eis aí
a razão de ser inversa
que claudica e se tortura
e que se condensa em verso.
Eu voo num voo curto
surdo preto caviloso
com meus pezinhos dourados
eu fujo de mim nos braços
assustados dos ponteiros.

Marília, Dirceu, é hora
dos madrigais mais soturnos:
eu voo para Ouro Preto
valsando nos meus coturnos.

[In Alados Idílios, in Poesia Reunida 1956-2006, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2013, pp. 148-149].


ALBERTO DA VEIGA GUIGNARD
Paisagem onírica de Ouro Preto 



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Ruy Cinatti

DÁLIA
Digo: Dália!
«E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais»
avançam,
senhoras de meia-idade muito atarefadas mas com tempo
[muito para uma conversinha
em que se fala de tudo e nada e muito maldizer, sobretudo a
[coscuvilhice
e a «nossa» vida — credo! — é uma macacada.

Digo: Dália!
E agradeço os plebeísmos de Manuel Bandeira,
o mais fino poeta do Brasil,
ele que é avô do que ainda é novo em Portugal.

Digo: Dália!
Dálias, afinal.
Se as dálias não fossem tão lindas,
a vida seria um enjoo
e nenhum gatinho faria pipi

«com gestos de garçon de Restaurant-Palace...»

[In 56 Poemas, Lisboa: Relógio D´Água, 1992, p. 31]



domingo, 24 de novembro de 2013

Mariana Ianelli

FILHO PRÓDIGO
Um animal 
De grata obediência 
Fui criado.

Sempre os teus favores,
A tua pontualidade,
Minha pele macia
Sem rastro de batalha.

Pai, eu era fraco:
Teu amor me apequenava.

Ver à distância
Eu via apenas por metáfora.
Não me punha em risco,
Não sabia errar.

A mesa dos teus mandamentos 
Onde todos comiam,
Eu definhava.

Difícil partilha dos bens,
Ser o herdeiro
De tua audácia e desertar.

Perdido
Estranhei meu nome,
Fui jogador,

Do teu ouro fiz jorrar 
A noite alta.

Pai, eu descobri a fome.
No descampado sob o sol 
Amei e fui triste,
Me inventei como se inventam 
Os donos de uma história.

Mais difícil que partir
Eu volto, eu te devolvo
Meu rosto endurecido
Mediante um coração em liberdade.

E festejamos juntos 
E devoramos juntos 
A morte do novilho cevado.

In Treva Alvorada, São Paulo, Iluminuras, 2010, pp. 93-94


GIOVANNI FRANCESCO BARBIERI



Walmir Ayala

O Anjo
bíblia menor

Eram mansos os navios
e o anjo me incitava a percorrer seus quatro andares.

No térreo apalpo os pés onde as navegações se arvoram 
rompendo os periscópios; aí conquisto 
a ilha, solução de areia e cinza, 
e fundo a terra de nascer, chorar.

Depois sou projetado à paralela 
escada e seu degrau de sortilégio, 
e atinjo o coração onde o alvo estame 
do amor fecunda ao vento a unção secreta.

Daí rompo ao terceiro, onde a ciência 
ronda um véu de faróis pelos penhascos, 
e a figueira amamenta os filhos cegos: 
astros de seus sinais e resultantes.

Daí ao plano da coroa, almo terraço 
me incrustro e, visionário, me navego;
 invisto o guarda-pó e urdindo as pinças 
analiso o anjo elétrico de antenas; 
e uma atitude súbita me assalta: 
sou a um tempo jogral e teorema.

Possuo o anjo por definição e fuga, 
e por ter percorrido como mártir 
todos os rumos dados pelo vento.

In Antologia Poética, Rio de Janeiro, Ed. Leitura S.A., 1965, p. 53

Elias e o anjo
Godfrey Kneller

sábado, 23 de novembro de 2013

Tahar Ben Jelloun

Minha voz rompida parava no esboço desesperado da ausência
palavra anulada
quando nossas mães nos carregavam nas costas
nos campos
e até o cemitério
nossas mães resignadas procuravam em nós a infância

Nus em nossa solidão
fazíamos buracos no asfalto
até o dia em que o tempo parou na ponta do nosso despertar.

--------------

Ma voix rompue s’arrêtait en tracé désespéré de l’absence 
nulle la parole
quand nos mères nous portaient sur le dos 
dans les champs 
et jusqu’au cimetière
nos mères résignées cherchaient en nous l’enfance

Nus dans notre solitude
nous faisions des trous dans l’asphalte
jusqu’au jour où le temps s’arrêta sur la pointe de notre réveil.
(Cicatrices du soleil)

In Poetas do Mundo - As cicatrizes do Atlas, seleção, tradução e introdução de Cláudia Falluh Balduino Ferreira, Brasília, Ed. UNB, 2003, pp. 46-47. 


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Luiza Neto Jorge

DIFÍCIL POEMA DE AMOR
    Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

     Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.

     Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.

     Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste maléfico como um pássaro sem bico.

     Num silêncio breve vestiu-se a cidade.

     Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.

     Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

     Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vazados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

     Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu? Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

     Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos. Amas-me demais.

     Confesso: não sei se sou amada por ti.

     Virás quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

     E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?

     Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me. Não me tens amor

     Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.

     Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.

     Ah a cratera o abismo eléctrico!

     Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.

     Calo-me.

     Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

     Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?

     Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu. Existirão tais palavras?

     É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim de ti.

     Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado . As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

     Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

     Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

     Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

     O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.

     A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e morremos.

     Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras. Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.

     Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.

     Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

     Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.

     És tu tão único como a noite é um astro.

     Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu nome profissão morada telefone.

     Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

     Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!

In Luiza Neto Jorge - poesia (1960-19879), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 108-111

PICASSO


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Dantas Motta

SUPLÍCIO DE MONTE SIÃO TAMBÉM AIURUOCA CHAMADO
“Junto dos rios de Babilônia, ali nos sentamos a chorar, lembrando-nos de Sião.”
Salmo CXXXVI: 1.
Março de 1944.

A Carlos Drummond de Andrade

Sim, Monte Sião do País das Gerais esquecida filha.
Quando tuas auras soprarem por sobre os campos de
Ninguém, tuas rosas inda se mostrarão sorrindo?
Chorando? - Não, Monte, que as rosas nem riem nem choram:
Exiladas como as freiras, são mortas para o mundo.
Nem te direi que tuas terras estejam morrendo,
Ou, abandonadas, sejam apenas sepulcros,
Em que nem vida vive, nem pão medra.
Somente esta ausência, que as migrações plantaram,
Lhes dá este ar de interinidade precária.
Ou são as cartas chamando os últimos compadres,
Ou são os filhos buscando os derradeiros pais -
Velhas mineiras de fichu e xaile,
Embarcando num segundão da Rede (Mineira de Viação).
Tristeza maior, no entanto, seu moço, é a dos cemitérios,
Morrendo entre gramas por falta de combustão.
Lá longe, no Favacho, no Angaí, no Ouro Fala,
As fazendas vão crescendo e os sítios desaparecendo.
Piloto, nas estradas, já não late namorando a lua.
E um cantar de galos é terrível na solidão.
Quando parti das tuas terras que a tristeza amua,
Inda deixei alguns, poucos macróbios que,
Ao toque dos sinos, até hoje à vila vão!
Atrás iam ficando as primaveras raquíticas
E coqueiros, solitários, que projetam,
Na amargura do chão inculto,
Apenas o fantasma de suas sombras magras.
.As auroras nasciam do outro lado do mundo,
No País de São Paulo que é belo,
E se alimenta do rumor da alegre semente.
Alguma saudade, no entanto, seu Dantas? - Sim, Monte Sião,
Aiuruoca, Itabira, Vila Risonha de São Romão,
Santa Luzia do Rio das Velhas, Santa Quitéria.
Mas pouca demais
Para conter a inquietação desta miséria.

NOTURNO DE BELO HORIZONTE
O chope não me traz o desejado esquecimento
Os insetos morrem de encontro à lâmpada
Ou se acoitam no sofrimento destas rosas secas.
Vem do Montanhês este ar de farra oculta,
Bem mineira, e um trombone, atravessando
A pensão “Wankie”, próxima à Empresa Funerária,
Acorda os mortos desolados na Rua Varginha.
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça
E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,
O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha.
Tísicos boiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais
Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana.
As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,
Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro
Mandam ao ar esta canção intolerável
Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio.
Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin,
Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa.
Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas
De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas.
O Arrudas desce tranquilo, grosso e pesado,
Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de
Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente
Como no princípio. Somente, ao longe,
Na solidão de um poste, num fim de rua,
O vento agita o capote do guarda.

CANÇÃO DO EXÍLIO
Alma,
Pássaro solitário,
Como é difícil abranger-te!
nem sei como defender-te!
Incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
Visitas todas as terras,
E te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

O ANJO E O LAMPIÃO
Havia um lampião sobre a mesa de jantar.
Necessariamente era noite sobre a mesa,
A mãe, o crochê e o menino triste estudando.
E sobre a noite, lá fora, com João Mancini,
Cel. Fabrício e o pai, jogando, chovia.
Insetos desolados (até hoje os vejo ainda)
Adejavam em torno do cruel abajur.
A cartilha era líquida como um rio.
Necessariamente alguém me deitou.
Deve ter sido minha mãe. E necessariamente
Devo ter dormido. Dormido meu sono de menino pobre,
Enquanto o pai, lá fora, na noite chovendo,
Jogava, e a mãe, na chuva, desfalecida,
(As formigas passeavam-lhe pela boca fria)
Sobre a sepultura do irmão também morto,
Naquela noite, jazia, entre lêndeas
E alas de flores murchas e tristes.
Mas os anjos, os anões e os duendes,
Enquanto o menino pobre dormia,
Desciam à mesa e brincavam ao redor do lampião,
Sozinho na sala, maior que o mundo.

In Suplemento Literário de Minas Gerais, edição 1.350, setembro/outubro de 2013, pp. 37-38

José Franklin Massena de Dantas Motta (Carvalhos, Aiuruoca, Minas Gerais 22 de março de 1913 - 02 de fevereiro de 1974) - Além de poeta, foi advogado. Ao longo de sua vida, estabeleceu intensa relação com Carlos Drummond de Andrade através de cartas e encontros esporádicos. Era muito respeitado entre poetas e críticos. Suas obras mais conhecidas são: Planície dos Mortos (1945), Elegias do País das Gerais (1946), Anjo de Capote (1953), Epístola de São Francisco (1955) e Primeira Epístola de Jm. Jzé. da Sva. Xer., o Tiradentes, aos ladrões ricos (1967) 


ALEXANDRE REIDER

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Czeslaw Milosz

CONJURO
Bela é a razão humana e invencível.
Nem grades, nem arame farpado, nem trituração de livros,
Nem a condenação ao exílio nada podem contra ela.
Ela instala nas línguas ideias universais
E guia nossa mão, de sorte que escrevemos com maiúscula
Verdade e Justiça, e com minúscula mentira e iniquidade.
Acima do que é ela ergue o que deveria ser,
Inimiga do desespero, amiga da esperança.
Ela não conhece judeu nem grego, servo ou senhor,
Confiando a nosso governo o ofício comum do mundo.
Da vil balbúrdia das palavras atormentadas
Ela salva as frases severas e claras.
Ela nos diz que tudo é sempre novo sob o sol,
Abre a mão petrificada do que já foi.
Bela e muito jovem é a Philo-Sophia
E a poesia, sua aliada a serviço do Bem.
A natureza ainda ontem festejou seu nascimento,
O licorne e o eco trouxeram a notícia às montanhas.
Gloriosa será esta amizade, seu tempo não tem fim.
Seus adversários fadaram-se à destruição.

Berkeley, 1968

[Não mais, Coleção Poetas do Mundo, seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski  e Marcelo Paiva de Souza, Brasília, Ed. UNB, 2003, p. 73]

Sobre CZESLAW MILOSZ

Eric Bowman



terça-feira, 19 de novembro de 2013

Antonio Gamoneda

Amei. É incompreensível como o tremor dos álamos. Extraviei-me mas sei que amei.

Vivia num ser e o seu sangue reunia-se ao meu sangue e a música envolvia-me e eu próprio era música.
Agora,
quem é cego nos meus olhos?

Umas mãos passavam sobre o meu rosto e envelhe­ciam lentamente. Que foi viver entre feridas e som­bras? Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu próprio coração?

Só aprendi a esquecer e a ignorar. É estranho.
No entanto o amor 
habita o esquecimento.

In Oração Fria, Antologia. Sel., trad., introd. e posf. de João Moita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 285

Paul Cézanne

Hilda Hilst

Excerto de "A OBSCENA SENHORA D."*
Diante da vila, das casas quase coladas, entre as gentes, sou uma grande porca acinzentada, diante de muitos a quem conheci, sou uma pequena porca ruiva perguntante, rodeando mesas e cantos, focinhando carne e ossatura, tentando chegar perto do macio, do esconso, do branco luzidio do teu osso. Diante de minha mãe, fui apenas pergunta, altanaria, paradoxo, Hillé, diante do pai, foi o segredo, a escuta, a concha. O que é paixão? O que é a sombra? Eu mesmo te per­gunto e eu mesmo te respondo: Hillé, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão e esse aberto do teu peito, e também teu deserto. E sombra, Hillé, é nosso passo, nossa desesperançada subida. E para Ehud, Hillé foi apenas uma letra D, primeira letra de Derrelição, doce curva comprimindo uma haste, verti­calidade sempre reprimida, cancela, trinco, tosco cadeado. Textos, palavras, e de repente a mãe do Porco-Menino me entupindo a boca de terra, de cascalho, de palha. Engasgo neste abismo, cresci procurando, olhava o olho dos bichos frente ao sol, degraus da velha escada, olhava encostando meu olho naquele olho, e via per­guntas boiando naquelas aguaduras, outras desde há muito mortas sedimentando aquele olho, e entrava no corpo do cavalo, do porco, do cachorro, segurava então minha própria cara e chorava.

Que foi, Hillé?
O olho dos bichos, mãe.
Que é que tem o olho dos bichos?
O olho dos bichos é uma pergunta morta.

E depois vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco, e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de medos, garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada, frias, álgidas, vórtices de gentes, os beiços secos, as costelas à mostra, e, rodeando o vórtice, homens engalanados, fraque e cartola, de seus peitos duros saíam palavras, Mentira, Engodo, Morte, Hipocrisia, vi o Porco-Menino estremecendo de gozo vendo o Todo, suas mãozinhas moles reverberavam no cinza oleoso, ele estendia os dedos miúdos para o alto. Procurava quem? Seu irmão gêmeo, estático, os olhos cegos em direção ao próprio peito, a cabeça pendida, o corpo perolado, excrescência e nácar.

(domingo, 17 de outubro de 1993)
* A obscena senhora D. São Paulo, Globo, 2001.

In Cascos & carícias & outras crônicas, São Paulo, Globo, 2013, pp. 122-125. 


By Nancy Rhodes Harper



segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Ruy Belo

O GIRASSOL DE RIO DE ONOR 
Existe juro um girassol em rio de onor 
mais importante por exemplo para mim que seja lá quem for
Eu vi hoje na andaluzia o girassol de rio de onor
à beira de uma estrada pouco antes de chegar a fernan nunez
(Amigos que passais em direcção a córdova ou aos cobres de lucena
dai-me notícias desse girassol menos brilhante sol
mas bem mais acessível pelo menos para nós que não temos raízes
mas pomos o que temos sobre a terra)
Reconheci-o logo embora há muitos anos o não visse além de o conhecer sabia ser ele natural de rio de onor e lá habitualmente residente
E ele raios o partam disse idênticas as pétalas igual a cor
é ele ó céus é ele sem tirar nem pôr
o meu amigo girassol de rio de onor
(é fácil ter na flor um verdadeiro amigo
se o não sabíeis antes desde agora que o sabeis)
Era o mesmo era ele sem tirar nem pôr o girassol de rio de onor há tantos anos visto Mas nós os que lá fomos e por lá passámos nós é que já não somos quem lá fomos
e muito menos nós que somos vivos menos os mesmos somos que tu o meu amigo com as tuas duas pernas pendentes lá da ponte sobre o rio pequena ponte e diminuto rio a dois passos dos olhos tão redondos que solares dessas duas ou três quatro no máximo crianças (meu deus essas crianças onde é hoje o seu país?)
Viajo pela espanha mas é este julgo juro o girassol pois embora não esteja em portugal
não há ainda julgo plantas nacionais
e além disso aquela terra é meio espanhola
Mas nós que assim passamos pelos campos pelos dias
nós que não temos nem nunca tivemos
coisa pequena como uns palmos de país
pomos tudo o que somos nestes seres que passamo
e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos
Era aquele julgo juro o girassol de há anos
mas nós que como sombras por aqui passamos
porventura seremos os que éramos há anos?
Qual é ao certo o nosso verdadeiro país?
Lanço a pergunta aos verdes campos outonais da andaluzia
mas esta paisagem que tanto me diz
quem sou isso é que ela nem ninguém mo diz.


(TRANSPORTE NO TEMPO)

In Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 3a. ed., 2009, pP. 448-449.




domingo, 17 de novembro de 2013

Anna Swir

Eu lavo a camisa
Pela última vez lavo a camisa
do meu pai morto.
A camisa cheira a suor. Lembro
desse suor de minha infância,
por tantos anos
lavei suas camisas e roupas de baixo,
sequei-as
junto ao fogão à lenha na garagem,
ele que as vestia sem passar.
Entre todos os corpos do mundo,
animais, humanos,
apenas um exsudava aquele suor.
Inalei-o
pela última vez. Ao lavar esta camisa
destruí-o
para sempre.
Agora
de meu pai restam apenas os quadros
que cheiram a óleo.

Tradução: Pedro Gonzaga

Sobre Anna Swir



sábado, 16 de novembro de 2013

Paul Celan

CORONA 
De minha mão o outono devora suas folhas: somos amigos
Descascamos o Tempo das nozes e o ensinamos a partir:
O Tempo regressa à casca

No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala veracidade.

Meu olhar desce para o sexo da amante:
Vemos-nos,
falamos sombrios,
amamos-nos como papoula e memória,
adormecemos como vinho nas conchas,
como o mar no brilho sanguíneo da lua.

 Estamos abraçados à janela, vêem-nos da rua:
é tempo de saber!
é tempo da pedra se preparar para florescer
que a inquietação faça pulsar um coração.
É tempo de ser tempo.

 É tempo.



quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ingeborg Bachmann

EM VERDADE
Para Ana Ajmátova
Para aquele que nunca ficou sem palavras, 
eu vo-lo digo, 
aquele que só sabe ajudar-se a si mesmo 
com as palavras, 

este não pode ser  ajudado 
nem pelo caminho curto 
nem pelo caminho longo.

Fazer sustentável uma única frase,
agüentar  o ding-dong das palavras.

Que ninguém escreva esta frase
que não a assine.

               *****

NADA DE DELIKATESSEN
Já não gosto de nada.

Devo 
enfeitar uma metáfora 
com uma flor da amendoeira?
Crucificar a sintaxe 
sobre um efeito de luz?
Quem vai quebrar a cabeça 
por coisas tão supérfluas?

Eu aprendi a ser sensata 
com as palavras 
que há 
(para a classe mais baixa).

Fome, 
desonra, 
lágrimas 

trevas.

Com os soluços depurados,
com a desesperança
(e desespero da desesperança)
por tanta miséria,
pelo estado dos enfermos,  o custo da vida,
darei um jeito.

Não descuido da escritura,
mas de mim mesma.
Os outros sabem 
Deus sabe 
o que fazer com as palavras.
Eu não sou o meu assistente.

Devo aprisionar um pensamento 
e levá-lo à cela iluminada de uma frase?
Alimentar olhos e ouvidos 
com bocados de palavras de primeira?
Investigar a libido de uma vogal,
descobrir o valor diletante das nossas consoantes?

Mesmo com 
a cabeça apedrejada, 
com o espasmo de escrever nesta mão
sob a pressão de trezentas noites 
devo romper o papel, 
varrer as urdidas óperas de palavras, 
destruindo assim : eu, tu e ele, ela, 
nós, vós?

(Que seja. Que sejam os outros).

Que se perca a minha parte.

Tradução do espanhol: Alejandro Carvajal


Otto Mueller



                       

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Fiama Hasse Pais Brandão

[Quando eu vir vaguear por dentro da casa]
Quando eu vir vaguear por dentro da casa
o abeto que cresceu no bosque, hei-de
ajoelhar no soalho. Todas as coisas
comunicam entre si a totalidade das suas formas.
A mão que vai surgir do abeto apontará para mim.

Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias,
as cadeias de ouro dos rins. Deixar
que as unhas longas da árvore passem
entre mim e o imo dos quartos interiores da casa.

Se essa figura imponente, a árvore, me reconhecer,
vou interromper o que escrevo, esperar ansiosa
atracção que a insónia desse vulto
há - de exercer sobre mim. Rodo
até à tontura da morte.
           Torturo-me
até à alegria. Encontro na casa
o tema da despossuição e a agonia.

A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.

Sou eu que me vergo ao domínio.
Que me poise a marca incandescente na testa.
Tocará na meninge como num cofre.
Aceito coroas para depor sobre mim.
Deixo os pés do abeto empurrar
com a biqueira violetas. A fragrância
delas leva-me a imaginar poemas
em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento
de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.

In Área Branca, 1978
Sobre Fiama Hasse Pais Brandão





María Victoria Atencia

Epitáfio para uma jovem
Porque te foi negado o tempo da ventura
teu coração descansa já tão alheio às rosas.
Teu sangue e carne foram teu vestido mais rico
e a terra nunca soube o firme de teus passos.

Começa aqui e acaba tua semeadura
- tal se enterra um vencido no final do combate -,
onde em novembro a água tua ternura embeba
e o latido de um cão tenha voz de presságio.
Tua vida toda quieta sob o tacto da morte,

que sementes domina, cerceando seus gomos,
tu ficaste em botão por abrir, nunca mais
conhecerás o estalido floral da primavera.

In Antologia poética, tradução José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000].


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ruy Cinatti

PETIÇÃO
— Guarda-me a mim, disse o pescador 
(de arrastão) ao despedir-se
de uma conversa entrecortada a medo, 
em cada um sublinhando elos sagrados.

— Guarda-me a mim, guarda-me tu, irmão, 
que me apertaste o antebraço com força
e leva-me contigo por mares bravios
onde arriscas a vida, a tua sofredora alma e brinca com ela
como se nos amássemos no mesmo chão, juntos.
6/11/76

FEZADA
Eu vi a Cristo num país de assombro 
onde rapazes proclamam alto o Teu nome, 
boca alta, sem nenhum atavio, 
que os leve a jogar ao esconde-esconde.
Eu vi e fiquei pávido, pasmado, 
como ancorado num cais um navio novo 
e dei comigo a cantar — Louvo-te Senhor,
 neste meu país, Portugal de assombro, 
com os três rapazes que Daniel cantou, 
afagando ele a boca aos leões.
E agora procuro-os, penso neles, 
a coisa mais natural do mundo 
e desafio a que me procurem 
onde Jesus andou com as criancinhas, 
os pobres e os privados do seu Nome.
8/7/76

[In 56 Poemas, Lisboa: Relógio D´Água, 1992, pp. 62-63].


Emad Rizk





segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Rose Ausländer

Ainda estás aqui
Atira tua angústia
no ar

Num átimo
teu tempo passa
num átimo
o céu cresce
sob o gramado
caem teus sonhos
nenhures

Ainda
recende o cravo
canta o tordo
ainda tens o direito de amar
ofertar palavras
ainda estás aqui

Sê o que és
Oferece o que tens

Réptil
O tempo um réptil
me devorou

Não digerida eu fico
em seu corpo comprido
meio morta meio viva

Isso eu sonhei
quando dividi o cárcere
com José

Os dias magros jazem em
meu estômago

José está morto

Seu trigo armazenado
derrama-se
no Mar Morto

Os forasteiros
Trens trazem os forasteiros
que desembarcam
e olham atordoados
Nos seus olhos nadam
angustiados peixes
Eles portam narizes estranhos
tristes lábios

Ninguém veio apanhá-los.
Eles esperam pelo crepúsculo
que não faz qualquer diferença
então têm permissão
para visitar seus parentes
na Via-Láctea
nos vales da lua

Um toca gaita -
melodias incomuns.
Uma outra escala
mora no instrumento
uma inaudível seqüência
de solidões.

Fonte: Revista Piaui, Edição 37, Outubro de 2009.

Sobre Rose Ausländer

By Sebastião Salgado

domingo, 10 de novembro de 2013

Adélia Prado

A SAGRADA FACE
A dentadura encravou-se? Rezai,
prometei abstinências por um ano
para que a prótese malfeita se despregue da boca.
Ó Deus, como éreis bom,
rosas, dentes postiços,
touceiras de coqueirinho,
a profusão dos milagres.
Casimiro de Abreu, que não era santo,
mas que estava nos livros,
também ele dizia, como Jó,
como meu pai e minha mãe diziam:
“um Ser que nós não vemos
é maior que o mar que nós tememos...”
Que faço agora que Vos descubro em silêncio,
mas, dentro de mim, em meus ossos,
vertiginosa doçura?
Os dentistas fazem as próteses, não Vós,
a terra é quem gera as rosas.
Desde a juventude pedi, quero ver Teu Rosto,
mostra-me Tua Face.
Então é este o esplendor,
este deserto ardente, claro,
de tão claro sem caminhos!
Esta doçura nova me empobrece,
nascer sem pai, sem mãe,
objeto de um amor em mim mesma gerado.
Flor não é Deus, terra não é, eu não sou.
Pobre e desvalida entrego-me ao que seja
esta força de perdão e descanso, paciência infinita.
Quase posso dizer, eu amo.

In O Pelicano, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987, p. 43.

JÔ TURQUEZZA


sábado, 9 de novembro de 2013

Ingeborg Bachmann

Em casa deito-me no chão e espero, eu ofego e me afogo, me afogo cada vez mais; é mais grave do que algumas sístoles adicionais, eu não quero morrer antes que Malina chegue, olho para o despertador, os minutos não passam e, no entanto, tenho a impressão de que minha vida está passando. Não sei como cheguei ao banheiro, ponho as mãos embaixo da torneira de água fria, a água corre pelos braços até o cotovelo, esfrego os braços e os pés e as pernas com um pano gelado, na direção do coração, os minutos não passam, mas agora Malina deve chegar, e então Malina chega, imediatamente estou menos tensa, finalmente, meu Deus, por que você chegou tão tarde?!

Certa vez, em um navio, eu estava sentada no bar com um grupo de passageiros que iam para a América, alguns eu já conhecia. Então um deles começou a queimar as costas da mão com um cigarro aceso. Ele foi o único a rir, não sabíamos se também deveríamos rir. Na maioria das vezes não se sabe por que as pessoas fazem mal a si mesmas, elas não o dizem a ninguém, ou então dizem algo bem diferente, para que não se descubra o verdadeiro motivo. Em um apartamento em Berlim encontrei certa vez um homem que bebia um copo de vodca atrás do outro mas nunca ficava bêbado; horas depois continuava conversando comigo incrivelmente sóbrio e, quando ninguém estava prestando atenção, ele me perguntou se podia me rever, pois queria me rever de qualquer jeito, e meu silêncio foi tão inequívoco que era o mesmo que um consentimento. Depois falou-se sobre a situação mundial, e alguém pôs um disco no toca-discos, L'Ascenseur a l'échafaud. Quando os acordes soavam baixinho e a conversa havia chegado ao telefone vermelho entre Washington e Moscou, o homem me perguntou, no tom mais natural possível, como pouco antes, quando perguntara se eu não ficaria melhor vestida de veludo, ele preferia me ver em veludo: A senhora já matou alguém? Respondi no tom mais natural possível: Não, claro que não, e o senhor? O homem disse: Eu sim, eu sou um assassino. Por um momento eu não disse nada, ele me olhou docemente e acrescentou: A senhora pode acreditar! E de fato acreditei, pois deveria ser verdade; ele foi o terceiro assassino com quem estive sentada em uma mesa, mas o primeiro e o único a confessá-lo. As duas outras vezes foi em noitadas em Viena, e fiquei sabendo depois a caminho de casa. Vez por outra quis anotar algo sobre essas três noites, separadas por muitos anos, e em uma folha avulsa escrevi, como tentativas: Três assassinos. Mas aí não fui adiante, pois só queria anotar algo sobre esses três para chamar a atenção sobre um quarto, pois a história de meus três assassinos não dá uma história; não tornei a ver nenhum deles, hoje eles estão vivendo em algum lugar, jantando com outras pessoas, fazendo mal a si mesmos. Um deles não está mais preso em Steinhof, o outro está na América com o nome trocado, o último bebe, para ficar cada vez mais sóbrio, e não está mais em Berlim. Do quarto não posso falar, não me lembro dele, eu esqueço, não me lembro...

(Mas corri contra o arame farpado eletrificado.) Lembro-me desse detalhe insignificante. Uma vez joguei fora minha comida, dia após dia, mesmo o chá, às escondidas; devo ter sabido por quê.

[Excerto de "Malina", tradução de Ruth Röhl, São Paulo, Ed. Siciliano, 1993, pp. 226-227]

Sobre Ingeborg Bachmann







sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Isabel Mendes Ferreira

 curvo-me aos teus pés em dois tempos narrantes e submeto-me à permanência telúrica das tuas pedras como um coração circular e sem estratégia. ergo-me deste chão como de um ventre sibilino onde tudo é raiz e o pouco não se demora. são terços de urze punhos de xisto quente rosário da memória fonte de todas as rondas e de todas as estevas. sou mais deste seio imenso que das estradas ou margens. é um pulo e uma garganta em chama uma lua que esmaga o diabo e faz do ar um pronome brilhante. regresso-te como se ao rio faltasse esta foz_____________________onde me corporizo em pedra solar. como tu terra sempre renascente. a caminho do maior heterónimo do silêncio. curvo-me à beira de ti para melhor me ser mais perto e maior. errante e peregrina de toda a linguagem.

Inédito. Proibida a reprodução
© Isabel Mendes Ferreira  

Profeta Oséias, obra  do Aleijadinho,
em Congonhas do Campo - MG - Brasil
                                                                     
  

Tahar Ben Jelloun

Sou um menino que zomba da inocência

Fui nutrido com o leite da esfinge
e cedo carreguei uma aranha no fígado em voz baixa

Gerei a cidade das trevas humilhadas
e voltado para mim mesmo
serpente sem cabeça, fiel ao sol

Provoquei o astro obsceno do mestre e do Imã
e o maculei de sangue no pátio dos milagres
o astro das areias que se apagou pela manhã
e me deparei com o Livro ao contrário

Tomei o trem para fomentar as turvações na água
estagnada
do sono ancestral
sacudi os carvalhos
e vi a morte rir escondido diante do espetáculo das cabeças
que caíam
Minha voz rompida parava no esboço desesperado da ausência 
palavra anulada
quando nossas mães nos carregavam nas costas 
nos campos 
e até o cemitério
nossas mães resignadas procuravam em nós a infância

Nus em nossa solidão 
fazíamos buracos no asfalto
até o dia em que o tempo parou na ponta do nosso despertar.

In Poetas do Mundo - As cicatrizes do Atlas, seleção, tradução e introdução de Cláudia Falluh Balduino Ferreira, Brasília, Ed. UNB, 2003, pp. 44-45. 


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Edwin Morgan

O DIVISOR
Continuo pensando em você - o que é ridículo. 
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo 
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu pelos Stones; 
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem. 
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou, 
mesmo que eu não possa ser o que sou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa 
que eu teria jogado sobre você - havia apenas 
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia, 
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar 
e não se preocupar, e aquilo 
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete 
não senti nada além de uma punhalada 
de dor me dizendo o que era, 
e não posso dizer para você, nem uma palavra.

[In Edwin Morgan - Poetas do Mundo, seleção, tradução e introdução de Virna Teixeira, Brasília, Ed. UNB, 2006, pp. 29-31]. 



quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Hilda Hilst

Galopando insana pela casa

S.O.S.! Help! Socorro! Aiuto! Ayuda! Aide!

Tô no poço, no bueiro, na cova ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26 (todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian Gray o meu é lindo e mais pro “Dorian Gay”, e eu na carne, velhíssima, tris­tíssima, paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por exemplo, que tem uma “anomalia de distribuição de sulcos” segundo meu admirável professor de biologia, que me fazia decorar tudo aquilo de anélidas platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou comprem meus dentes, ao menos para sorrir amare­lo), comprem minhas frases (se as houver) na agonia visceral da despedida, e se eu nada disser comprem o silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro, meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem comprem! Tô inteirinha à venda, negada!

Estamos todos à venda, os escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra onde a palavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha rábula, ou se for um guia pra tua melhor trepada.

Mas a verdade é que há este amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo a quem chamo de Vivo, também ele um poeta, que para me arrancar desta noite de som­bras e de mitos, leu para mim, este seu poema, enquan­to eu maldizia a mim mesma e a Deus:

Deixa-me tatear teu hálito 
obscuro que estou 
de todos os sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir 
que essa ilusão de formas 
é apenas minha inconclusa 
maneira de ocultar-te.

Deixa-me (em sigilo) 
beirar a secura do teu corpo 
— o abismo de tocar-te.

P. S.: Dialogozinho esotérico à maneira da URV*: Depois disso ela morreu, é?
“Não sei ao certo. Mas alguém teve a liberdade de enterrá-la” (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E “Gloomy Sunday” pra vocês também.

(domingo, 13 de março de 1994)

In Cascos & carícias & outras crônicas, São Paulo, Globo, 2013, pp. 202-203


“A Velha” – Giorgione, Veneza – Itália

Nota do blogueiro: 
* Ninguém tem obrigação de lembrar o que foi a  URV, né, Sra. Hilst? Pedimos socorro à Wikipédia: Unidade Real de Valor ou URV (sigla pela qual se popularizou) foi a parte escritural da atual moeda corrente do Brasil, cujo curso obrigatório se iniciou em 1º de março de 19941 . Foi um índice que procurou refletir a variação do poder aquisitivo da moeda, servindo apenas como unidade de conta e referência de valores. Teve curso juntamente com o Cruzeiro Real (CR$) até o dia 1º de julho de 1994, quando foi lançada a nova base monetária nacional, o Real (R$).
Instituída pela Medida Provisória nº 434 (posteriormente transformada na Lei nº 8.8882 ), foi parte fundamental do Plano Real, contribuindo positivamente para a mudança de moeda, para a estabilização monetária e econômica, sem medidas de choque como confiscos e congelamentos.

Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...