sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Olga Fiódorovna Bierggólis

Detesto o som do telefone
Quando não há ninguém do outro lado.
“Quem é?” Ninguém responde: silêncio.
Silêncio e um som distante, como um gemido.
Quem foi que ligou mas, de repente, decidiu não falar,
Por medo, escudado nas quatro paredes de seu quarto?
Meu amigo distante,
                     meu verdadeiro e tão desejado amigo,
Será você? Fale comigo!
Estamos divididos por uma dor comum,
Unidos por uma única tristeza sem palavras,
Mas, nessa mudez, falemos um com o outro.
Não podemos, não devemos ficar em silêncio!

Mas talvez seja o meu antigo inimigo
Querendo saber se estou em casa ou não -
E que, ao ouvir a minha voz conhecida, ficou satisfeito,
Ficou satisfeito e um pouquinho comovido também.
Não, não posso e não quero escondê-lo:
Aberta a tudo, como o é a minha família,
Estou tão acostumada, hoje, a sair de casa
Que, ao partir, esqueço-me de me despedir.
A separação já não me assusta mais:
Sei que sou uma dentro do todo, não estou sozinha.
Mas, Senhor, como me sinto solitária, de repente,
Quando esse silêncio me sufoca!
Seja lá quem fores, amigo ou inimigo,
Estou te ouvindo! Fala! Diz alguma coisa!

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E eu te digo que não foram em vão
os anos que vivi,
nem inúteis os caminhos que percorri,
nem sem sentido tudo o que ouvi.
Não são impermeáveis ao mundo,
nem um presente imaginário dos anos,
esses meus amores que não foram em vão,
amores falsos ou doentes
com sua luz limpa, imortal,
sempre em mim,
                        sempre de mim.
Nunca é tarde demais para de novo
recomeçar a vida,
retomar a estrada,
para que do passado nem uma só palavra,
nem um só gemido fique destruído.

[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp. 220-221]

Olga Fiódorovna Bierggólts (1910-1975), escritora russa. Tornou-se símbolo da resistência e da determinação do povo russo durante o cerco de Leningrado por seu trabalho de encorajamento à população no rádio. Suas memórias, Dias de Estrela (1959), foram transformadas em filme em 1968. 








quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Adão Ventura

UM
Em negro
teceram-me a pele
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma nova África.

Carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.

Mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis.

(In ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA, Organização, seleção, notas e apresentação de Olga Savary, Rio de Janeiro, Fundação Rio/Hipocampo, 1992, p. 1)


[O poeta Adão Ventura nasceu em Santo Antonio do Itambé, Minas Gerais, em 1946. Formado em  Direito pela UFMG, escreveu "Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul" (1970), "As musculaturas do Arco do Triunfo" (1976), "A Cor da Pele" (1981), "Jequitinhonha - Poemas do Vale" (1980), "Texturaafro" (1992) e "Litanias de Cão" (2002). Foi professor de Literatura Brasileira na University of New Mexico na década de 70. Morreu em junho de 2004].





terça-feira, 28 de outubro de 2014

Luiza Neto Jorge

BALADA APÓCRIFA
Olhai os lírios do campo
meninas de saia rodada
íris de teias de aranha
desvendam o mar nas searas

Olhai os lírios de pedra
em copos de limonada

Os soldados em manobras
enterram a sombra caiada
Bebei os lírios de água
(com grandes bicos de aves)

Sofreram sempre derrota
deixaram mãos enforcadas
sem lençóis com clarins
grades de pernas doadas

Olhai os lírios do tempo
meninas virgens por dentro

Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
Colhei os lírios do corpo
meninas de saia travada

[In Luiza Neto Jorge - poesia (1960-19879), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 46]


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Iacyr Anderson Freitas

A POÉTICA DO ESCASSO
Viste, através da chama de uma vela,
manhãs mais belas que em qualquer janela.

Mapas, postais mandaste, sem selar,
a todos os cometas, Bachelard.

Alguns poucos chegaram ao destino
ainda quentes, sob o sol a pino

(quando o verso em pânico de Murilo
queimava os que não quiseram ouvi-lo).

Outros se perderam, de parte a parte,
para que fome alguma então te farte.

Palavras, medos, nuvens são matérias
para escavar, do asfalto, tuas férias.

De teu dicionário pululam ventos
que multiplicam os quatro elementos.

Multiplicam pela raiz quadrada
de um número vivo, entre o ser e o nada

(quando o dia que surge é quarta-feira
e o sabemos igual, queira ou não queira,

quando a roupa da infância, já lavada,
inda guarda a lição que nos enfada

quando, para atar os quatro elementos,
esqueceste um acento nos assentos,

quando não viste, na luz de uma vela,
nada que não fosse incenso ou janela).

[A poética do escasso, livro editado em
A soleira e o século (2002)]

QUINTO MIRANTE
A quem doar essa manhã? A quem?
E essas corolas rubras, esse sal
de muitas e muitas chuvas, desdém
que fere de encantos o céu final?
A quem doar essa manhã? Sim, ponde
aqui a vossa enorme tribulação.
Ninguém sabe o que ocorreu. Quando? Onde?
E é preciso que a tudo digais não.
Dentro de cada espanto vós coubestes.
Em cada aposento, em cada sudário
fazeis de fezes vossas próprias vestes.
A quem doar essa manhã? É vário
o sol que aniquila os vossos ciprestes
e corre os vossos rios ao contrário.

[Mirante (1999)]

SOBRE IACYR ANDERSON FREITAS






sábado, 25 de outubro de 2014

Marco Antonio Poço

OLHOS NA ESCURIDÃO

Estava, ele, na minha frente —
ao alcance de alguns passos —
sentado no asfalto negro daquela pequena rua sem
[saída,
envolvido pela escuridão da noite.

Um gato negro.
Seus olhos verde-amarelados brilhavam,
atraindo minha atenção.
Meu olhar fixo naqueles olhos
que pareciam me olhar.

O gato — negro —
no asfalto - negro -
na noite - negra —;
e seus olhos brilhando
soltos na escuridão.
Criou-se mistério.
O mistério...

Porém, agora sei,
o mistério não estava naqueles olhos,
nem na noite que os cercava;
mas em mim,
em meus olhos que viam mistério.

[Dimensão da transparência (1986)]

Marco Antonio Poço - Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Formado em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi professor universitário. Autor de histórias infantis, participou da antologia O conto e o dono do conto (1987, organização de Heli Samuel e Hélio Moraes). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1990. Obra poética: Dimensão da transparência (1986).

[In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 80, Seleção e Prefácio Ricardo Vieira Lima, São Paulo: Global, 2010, p. 194].

JOHN BRENT


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Emily Dickinson

Ha algo mais calmo do que o sono
Neste quarto sem luz.
Ele usa um ramo sobre o peito -
E seu nome não diz.

Vêm uns tocá-lo, outros o beijam
Tomam-lhe a fria mão -
No aspecto dele eu não entendo
A calma introspecção.

No lugar deles não chorava -
Como é feio gemer!
Pode assustar seres do bosque
E fazê-los voltar!

Enquanto os bons vizinhos falam
Do “Jovem no caixão” -
Dada a perífrases, observo
Que as Aves já se vão.

[In A branca voz da solidão, tradução de José Lira, São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 97]

Por Picasso

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

José De Arimatéia Silva

VIADUTO DO CHÁ
Dizia minha pobre mãe que o tempo muda de direção.
A infância que perdi.
A juventude que também perdi;
o velho cão asmático.
Havia um riacho cheio de peixes translúcidos;
e a grama coberta pela geada.
O automóvel azul.
Eu guardei segredos,
guardei moedas que já não tem valor.
O medo, o espasmo.
O primeiro amor que nunca veio.
Curau de milho.
Chumbo derretido sobre a placa de zinco.
As casas inacabadas;
pequenos prêmios em palitos de sorvete.
Surpresas e goiabas.
As palmeiras imperiais que indiferentes me fitam
quando cruzo o Viaduto do Chá,
no tempo em que o tempo muda de direção.

O CISNE NEGRO, O ORNITORRINCO, O RELÓGIO PARADO
O que não se apresenta de maneira habitual;
o que é incomum; o que é raro. Isso. É o insólito.

A casa azul subitamente vista na colina verdejante.
O morcego que rasante passa pelo quarto em silêncio.
O cisne negro, o ornitorrinco, o relógio parado.

No campo de flores vermelhas a cobrir a planície,
o lagarto, a ave de rapina, a cascavel que espreita um rato.

Por Carolin Vdg

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Umberto Saba

CARMEN
O meu desespero regressa a ti.
Depois de tanto ter errado, hoje o meu amor
regressa ao teu altivo volúvel ardor,
nada mais pede que a tua honestidade.

Nestes longos dias de palpitação,
que sem luta e sem paz correndo vão,
e sem a tua gaia crueldade;
com a minha solitária alma magoada
por todo o lado a tua imagem gravada,
sonhei que eras também por mim assassinada,
pela embriaguez de chorar por ti.

Inculpável amiga, filha austera
do amor, se a vida hoje te desterra,
com a música junto de mim te sinto até.
Tenho ciúmes não de dom José,
não de Escamillo; mas de quem antes um canto
entoou à tua pureza e ao teu santo
bravor indo ao encontro da tua verdade.

Nem sequer vives num distante lugar,
de mim a ânsia ao teu amor sempre voltada,
e não busco em Sevilha a tua morada.
Só vagueava na manhã de uma jornada
de festa, e entre a escura multidão de fútil ar
tu me apareceste no traje popular
de Florença; a tua mão estendida tinhas
a soerguer de uma igreja as cortinas,
as rubras e amarelas cortinas da entrada.

Parecias doente, parecias-me prostrada,
mas reconheci-te, por teres sido tão amada.

Eu que só a custo retive um grito,
acabei por merecer um teu sorriso.

[Tradução de  José Manuel de Vasconcelos]

SOBRE UMBERTO SABA

Piazza Unitá - Trieste


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Ezra Pound

SOMBRA
Desceu a escuridão sobre a terra
E não há estrelas
O sol do zénite ao nadir caiu
E o ar pesado sufoca-me.
As horas vão rápidas
Mas os minutos são de chumbo fundido, pesado e ardente
Vi-a ontem.
Repara, não há tempo
Cada segundo é a eternidade.
Paz! não me perturbes mais.
Sim, conheço os lagos claros dos teus olhos
Guardando o sol de Verão no seu fundo
Mas não me perturbes
Vi-A ontem.
Paz! o teu cabelo é fabulosa filigrana
Mas não me perturbes
Vi-a ontem à noite.
A escuridão encheu o céu quando ela se foi
E o vento é pesado e indiferente
Quando virá o dia: quando será o sol
Real em generosidade
Saltando do nadir ao zénite?
Porque, repara! os seus cavalos estão cansados, não a tendo
abraçado
Desde o pôr do sol.
Oh que sensatos foram esses cavalos
Erguendo-se para a procurar!
O sol dormiu em Orcus.
Do zénite ao nadir caiu a sua glória
Caiu,  caiu a sua maravilha
Vi-a ontem
Desde então não há sol.

(Tradução  Filipe Jarro)

SOBRE Ezra Weston Loomis Pound 



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Evgueni Mikhaïlovitch Vinokourov

O ANJO TERRÍVEL
O anjo terrível não me legou lira alguma,
nem fui sagrado profeta.
Eu era tímido. E as torrentes de minha música
     jorraram de outra fonte.

A guerra... Eu estava deitado, doente, no meio da planície,
e o espesso casaco de neve pesava sobre os meus ombros.
Foi aí que, subindo-me à garganta, um soluço
anunciou, de repente, a palavra.

Eu já não esperava mais o chamado do Criador
e todo o vigor me abandonara.
De repente, o sangue,
fugindo-me do rosto, afluiu-me ao coração.

E encheu-se de sangue a trincheira
com o som de meu lamento noturno,
vão, é verdade, mas perturbador,
pois exasperado por uma angústia pura.

E - reconheço-o - o anjo terrível,
que nos aponta a meta com sua espada de fogo,
     eclipsou-se
ao ver que, exausto, só me restava um sopro.

-------------

Quando colhi o fruto proibido
na árvore do saber, Adão,
não sabia como o meu castigo
seria pesado. Fui punida
por ter ultrapassado
a barreira do orgulho. Nada
disso teria importância se não fosse
esse gosto de maçã que ainda tenho na boca.

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Poeta Russo, nascido em Leningrado, em 1925. Faleceu em 1993

[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp. 220-221]




domingo, 19 de outubro de 2014

Konstantínos Kaváfis

O OMBRO ENFAIXADO
Disse que bateu em um muro ou que caiu.
Mas provavelmente a razão seria outra
para o ombro ferido e enfaixado.

Por conta de um movimento um tanto brusco
em direção à estante, para descer algumas
fotos que queria ver de perto,
soltou-se a faixa e um pouco de sangue escorreu.

Novamente enfaixei o ombro, e demorei-me
um pouco nesta tarefa, pois não doía
e agradava-me ver o sangue. Coisa
do meu amor era aquele sangue.

Assim que saiu, encontrei sobre a cadeira em
frente
um pano das ataduras manchado de sangue,
pano que parecia dever ir direto pro lixo
e que sobre os meus lábios mantive eu,
e que beijei por longo tempo –
o sangue do meu amor nos meus lábios.

[Tradução de Fernanda Lima. In. Bliss. Editores: Lucas Matos, Clarissa Freitas e Márcio Junqueira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 16].


sábado, 18 de outubro de 2014

Matilde Espinosa

UMA VOZ

Não era uma queixa
muito menos a  voz do caracol
numa praia deserta.

Nem a passagem da besta
por um penhasco  escuro.

Era o presságio que florescia
os ecos e  explosão azul
de uma brincadeira de criança.

Era uma voz sem fundo
aérea como o canto.
Se eu voltasse a escutá-la
compreenderia melhor o viés
de uma voz flagrada
na noite.

UM DIA SEM NOME
Em que momento, amor,
Escureceu tua rua
E sua casa foi o claro
Da sombra?

Uma onda de pó
Choroso e amargo
Criou-se no momento.
Desde então o tempo
Novelo silencioso
Deixa correr seus fios
Para a dura tela
Que defende  minhas luas
Secretas.

Os dias transcendem lentos
Onde só chega
O tremor da luz
No vácuo.


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Horácio Costa

TIRE TUDO DA PAISAGEM
a Milos Sovak, in memoriam

Tire tudo da paisagem,
o serpenteante rio de águas cristalinas,
a neve ocasional, os rebanhos
de branquíssimas ovelhas
que se escondem detrás
das bétulas e das coníferas,
tire as porteiras que dividem
os campos de aveia e de centeio,
tire as velhas casas de pedra
da paisagem,
tire os bulbos de narciso,
os bulbos de lírio, de íris,
os telhados, as chaminés, os pedregulhos,
pouco a pouco tire tudo da paisagem:
a irritante torre medieval,
a capela tardo-gótica,
os retábulos de têmpera sobre madeira,
as rimas, as baladas líricas,
a cozinha típica, os sapatos:
descalce a paisagem,
veja-a sem subterfúgios,
nua, reduzida, descalça.
Ainda assim, nota bem,
algo permanece
entre aquela paisagem
e a de agora:
o pio dos corvos,
o agouro dos corvos,
aquele martelar de gritos negros,
sobrevive, voa entre
a paisagem de ontem
e a que lês, queridíssimo
leitor. Não há como
tirar os corvos
deste poema.

VINTE ANOS DEPOIS
Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo ....do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos....o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Mareei morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se
.......popularizam em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte
.......curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali

Sobre HORÁCIO COSTA

Copiado do blog de Ricardo Domeneck 


POR CAROLINA KRIEGER

.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Eloy Sánchez Rosillo

LOUVOR DA NOITE

A luz os separava. Não podiam
firmar os olhos na dor que a manhã
lançava ao mundo, na terna desordem das coisas.
À sonolência, o dia ensinava as normas da claridade,
os difíceis caminhos sob o sol. 

Desperdiçavam tempo em trabalhos  estranhos,
tarefas que não lhes diziam respeito,
deixadas, de chofre,  em suas mãos.

E séculos de silêncio transcorreram-se, infindáveis
épocas de sede, grandes espaços de flores mortas.
Mas a triste respiração da cidade cansada
contava-lhes sobre o recomeço do anoitecer.
Olhos pousados nas longínquas cúpulas. Pressentiam
no rumo escuro de suas árvores
as aves em busca de abrigo,
seu humilde refúgio de verdor apagado.

Esqueciam, então, a longa separação,
rompiam os grilhões da luz
e se reencontravam no exato limite da sombra.
Porque a noite os enlaçava, impelia-os suavemente
ao leito em que os corpos ritualizam  os ritos da imediatez,
ao reino da inocência e do verdadeiro.


11 de junho de 1976

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Antonio Lazzuli

DIDÁTICA PARA LIDAR COM VAZIOS
Ela foi embora e todo desafio agora é lidar com o vazio.
É preciso uma didática imediata ou eu não me responsabilizo
Pelos meus atos. Há quem o diga flexível. Então manusear
Suas linhas até chegar aos elementos de Paul Klee.
‘a margarida, ao peixe, e tudo parece estar voando e
Como não está? Mas não aqui, onde até o chantilly
Do café me provoca nostalgia. Tenho certeza que foi
premeditado aquele casaco na cama com seu cheiro.
Há quem o diga fértil, então é a ele se entregar
Até começarem as mudanças na pele. O vazio é tátil.
Ou eu não me responsabilizo pelos meus atos.
Me jogo pela janela que fica a três metros do chão.
Ou me transformo num osso e me ofereço pro cão.
E há ainda quem o diga azul. Aí é pregá-lo no teto.
Tentar acertar as águias que vão passando.
As lembranças são pedrinhas no estilingue.
E em casos de intrusas nuvens cinzas, levantar
O braço, pegar um raio com a mão
Com a certeza estomacal de que não,
Não o descerá ao já debilzinho coração.
Quem me fará ver nos chinelos rosados
Esquecidos menos que touros esperando lanças
Definitivas? Ou navios de sangue, lentos,
misturando-se ao mar: dizem do vazio também isto.

PAUL KLEE

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Silvia Eugenia Castillero

LUTO
 Rio abaixo esta escuridão
me traspassa o coração,
afunda sua garra metálica.
Afiadas suas facas
congela qualquer tentativa
de luz, qualquer anuncio
de bálsamos.Girassóis,
vitrinas rivais,
redemoinhos de água sem luz
me acossam, me escudam,
covardes os negros
minhas mãos abandonam.
Paralisados os passos, a lua
de costas balanceia algo
inalcançável. Rio abaixo me
afundo sem ver meu reflexo,
Só sinto o trafegar
da negrura
sobre meu desejo.
Um ronco tocar minhas células
– atadas, amordaçadas –
até que grito. E
com toques agudos
descomprimo meus nervos:
é quando te abandono.

RACHADURA
Rasga-se uma superfície, mas ninguém sabe,
o cume está na própria textura  e não há quem o advirta.
No sumidouro há milímetros expandindo-se
inutilmente, agitam-se as formas espaciais no
reflexo da rachadura, em sua vertedura, em seu derramar-se todo
no vazio. Aí estão as pegadas buscadas, nessa inecessária
corrente de miligramas que vão se incrustando de migalha em migalha.
Impera daí o precipício, esquece o barranco, a escarpa;
nas imundices está a catástrofe, o despenhadeiro inicia em sua desfase,
na monstruosa engrenagem da matéria. Aí está você.

[Tradução: Prof. José Pires Cardoso].

SOBRE SILVIA EUGENIA CASTILLERO

Jaya Suberg

domingo, 12 de outubro de 2014

Alejandra Pizarnik

ANÉIS DE CINZAS

A Cristina Campo

São as minhas vozes a cantar,
para que eles não cantem,
os  amordaçados na cinzenta aurora,
vestidos como pássaro desolados na chuva.

Há, na espera,
um rumor lilás a quebrar-se.
E,  quando chega o dia,
uma rebentação do sol em pequenos sóis negros.
E quando é noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
busca asilo em minha garganta,
para que eles não cantem,
os funestos, os donos do silêncio.

[Tradução do espanhol - Alejandro Carvajal]


sábado, 11 de outubro de 2014

Cláudia Roquette Pinto

O DIA INTEIRO

O dia inteiro perseguindo uma ideia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.



DE MÃOS POSTAS

De mãos postas o louva-a-deus ora,
monge de primeira hora,
longe do coro das cigarras
enquanto a tarde esbarra
na noite e, ombro a ombro,
lutam o claro e a sombra
até que, pesada, vence
a escuridão.
O lago, mais que um vago
parêntese aberto na mata
é a nata de um pensamento
que, lento e lento, se formula
na superfície nula da mente
(inversamente ao que se deu
naquele primeiro dia
quando o rosto do homem abria
em precipício, sobre deus).



POR QUE VOCÊ ME ABANDONA

                        à poesia

Por que você me abandona
no vértice da vertigem
quando a chuva cai (um Magritte)
sobre rosas que desistiram?
Por que novamente me perco
entre hortênsias, no aclive,
mais altas que homens, mais vivas
que o Exército de Terracota?
Sem você eu caminho no plano,
tudo escorre
— há um silêncio aturdido
uma cota do que morre
por dentro daquilo que brota.
Sem a sua luz, o que me resta?
Palmilhar às cegas
um quarto de veludo
onde o espelho, mudo, assiste
à fuga do que reflete.



A SERRA

A serra elétrica das cigarras parou.
Tão de repente que o dia,
que ela partia em dois,
num estalo deitou ao chão suas metades.
Ficou só esta poça de silêncio,
indiferente,
e um tremor de alfinetes ardendo
dentro da caixa
de onde se abre o quem.

                  De Corola (2001)



SÍTIO

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
― mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia-a-dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: "Pai!
acho que um bicho me mordeu!" assim
que a bala varou sua cabeça?



EM SARAJEVO

Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.



POEMA DE ANIVERSÁRIO

Sozinha — esplendidamente —
com a fotografia do engano
emoldurada em branco na parede
— paisagem a ser visitada todo santo dia;
com a lantejoula de prata
e a bolsa de madrepérola
pendendo, em plena tolice, do cabide
(filigranas para o adorno
dessa mulher-de-ninguém)
ela acorda entre os lençóis doloridos
por várias ausências, superpostas,
enquanto no sonho
o quase-toque das bocas
que o gongo do telefone
vem, habilmente, cortar.
Intrépida, exposta
ao vento e ao sol a pele
que, antes, o metal do penhor recobria.
Sozinha do lado de fora
(por dentro a própria mão sustenta,
ainda trêmulo,
o coração partido).

(Margem de Maobra, 2005)

Fonte: algumapoesia.com.br

SOBRE CLÁUDIA ROQUETTE PINTO

website da autora

Magritte


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Caio Cardoso Tardelli

CAMINHAREI, UM DIA
Caminharei, um dia, entre as essências,
Tão repleto das celestes essências,
Que julgarei-me em perpétuo silêncio,
Na propagação do meu próprio silêncio.

15/04/2014

APARIÇÕES
… E foi em certa noite desolada,
Quando a paz vai ulular outra estrada,
Que mais do que o teu vulto observei...
Não era o mundo, as regiões do ouro,
Que me pulsavam em sorvedouro...
Talvez... talvez vi o que jamais saberei.

Como em uma amorosa ilusão,
Senti súcubo pegando-me pela mão...
E tudo era dor, vertiginosamente
Rodopiando em torno a mim mesmo...
A felicidade passava a esmo,
Sombra de minha sombra, cegamente.

E os livros, dispersos na estante,
Pulsavam, como lúbrica bacante,
Os seus próprios abismos no mundo...
E além, marchando atrás da janela,
A vagarosa, incessante caravela
Do meu derradeiro segundo...

A lua cantava canções funéreas
Para o seu poente... e as etéreas,
As estrelas, os portais do infinito,
Somente essas brilhavam, sonhando
Sob o longo lamento brando
Do mais remoto sonho desdito.

E o sol... o sol na claridade inferna
Queimou-me o olhar nessa noite eterna...
Desta terra o primeiro verso
Rebentou em meus perturbados ouvidos.
Aguçava-me todos os sentidos
A harmonia inicial do universo.

E tudo, como em um pesadelo,
Dormiu sob o auroral selo,
Como a mais serena noite comum...
Mas, fantasma de mim mesmo, sei, trago
Esse eterno lamentar aziago
Da universal transfiguração ao Um!

12/05/2014

SERENIDADE
Vai sereno, vai sereno, através do mundo,
Como se pouco ou nada na terra houvesse...
Se sofreres, faz dessa espiritual messe
O sublime fecundar de teu sonho fundo...

Vai sereno... sê um astro ao alto, fecundo,
Ou um abismo horrente de milenar prece...
Vai como se o universo em mãos tivesse...
Vai sereno, vai sereno, através do mundo.

Passa pelo tempo como o sol pelo céu!
Vai assim, acima do rude, vão escarcéu,
À beleza de uma ilusão em ardentia...

E, no entanto, apesar da sofrida pena,
Crê que a dor é das quimeras a mais plena,
A que dos astros guia-nos para a alegria...

16/12/2013

[Publicados com licença do autor]

SOBRE CARDOSO TARDELLI





quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Mar Becker

PERSÉFONE
I
penso na mulher que é inacessível como uma estrela de sal. um cálice, uma chaga em backing vocals no cair das horas. penso na mulher que pensa na palavra, e a palavra então se faz aos poucos nas bocas das demais mulheres: e a palavra se faz, com a matéria das flores sonâmbulas e do marfim.

II
sonho ou assédio
lunar,
meninas que se desgarram de si mesmas,
meninas que flutuam como abajures mortuários em torno das bonecas. depois se abaixam para beijá-las na testa e imantar seus corpinhos de pano com relâmpagos.
*
meninas que não falam, magras,
inacessíveis,
tantas meninas, e são altas, e cheiram a algodão e lágrimas.
nos cabelos um nevoeiro de teias de aranha. na pele os sinais em sete eclipses: lua lícita, lisérgica. a sombra no púbis, no ânus, nos covis das axilas. uma única e mesma noite atravessa os séculos pela boca das mães até a boca das meninas,
e das meninas às bonecas,
num processo difícil de perpetuação
da fome.

III
você dormia.
uma tesoura orbitava sobre a área gravitacional
de seu sexo, mãe:
viva, como um híbrido de sangue
e canto gregoriano,
e vimos que você era santa.
*
eu e minha irmã oramos fervorosamente. no sétimo dia, o espelhos arderam
e não pudemos suportá-los.
e não olhamos mais uma para a outra

[In Blog da autora:  deterdeondeseir.blogspot.com]

SOBRE MAR BECKER



Marina Tsvétaïeva

CONQUISTAR-TE-EI A TODAS AS TERRAS...
Conquistar-te-ei a todas as terras e a todos os céus
Porque o meu berço é a floresta e o meu túmulo também
Porque tenho um só pé assente na terra
Porque te cantarei como mais ninguém

Conquistar-te-ei a todos os tempos e a todas as noites
A todas as bandeiras doiradas e a todas as espadas
Deitarei fora as chaves e afugentarei os cães das escadas
Porque na noite terrena sou mais fiel que um cão

Conquistar-te-ei a todos os outros e àquela única
Não serás noivo de ninguém nem eu mulher de ninguém
E na última disputa tomar-te-ei ouve bem
Àquele que Tiago não abandonou naquela noite

Mas até te cruzarem os dedos sobre o peito
Oh maldição! — tu continuas contigo e com mais ninguém
Tuas duas asas voltadas para o éter
Porque o teu berço é o mundo e o teu túmulo também

Jaya Suberg

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Silvina Ocampo

QUE ANJO TE LIVRARÁ DA TRISTEZA ...
Que anjo te livrará da tristeza
e  te despertará um belo dia
sem memória do que te afligia
e te dirá ao ouvido: "Ouça e cessa

teus gritos. Nos meus braços não te pesa
a lentidão do tempo nem a  ímpia
delação dos homens. És minha,
não és deste fútil mundo presa.

Mostra-te nesta fúlgida janela
para tua felicidade adornada. A dor
já murchou como uma grande flor

cuja sabedoria finalmente te cura
ao dissolver-se porque se transforma
em pó, ilusão, noutra ventura".


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Arseny Tarkovski

PRIMEIROS ENCONTROS
Celebramos cada momento
De nossos encontros como epifanias.
Só nós dois, neste mundo inteiro.
Mais ousada e leve do que a asa de um pássaro,
Desceste, velozmente,
Pela escada abaixo, levando-me,
Através da tua névoa de violetas, para os teus domínios
Por trás do espelho.
Quando a noite caiu, a graça me foi concedida,
Os portões do santuário se abriram;
Brilhando na escuridão,
A tua nudez inclinou-se lentamente para mim.
Ao despertar, eu disse:
"Deus te abençoe!”, sabendo
Estar sendo ousado: tu dormias,
As violetas inclinavam-se para ti da mesinha de cabeceira,
Para tocar tuas pálpebras com seu azul universal;
E as tuas pálpebras, que o azul roçava apenas,
Colinas coroadas de neblina e mares resplandecentes.
Segurando na mão essa esfera de cristal,
Era num trono que dormias
E - Deus seja louvado! - tu me pertencias.
Despertando, modificaste
O dicionário das enfadonhas palavras humanas,
Até que o discurso tivesse nova plenitude e, por toda parte,
Ressoasse com força nova; e a palavra “tu”
Revelasse o seu significado novo: queria dizer “rei”.
Todas as coisas no mundo ficaram diferentes,
Até mesmo as mais simples - a bilha, a bacia -
Quando água estratificada e sólida
Ergueu-se entre nós, como uma guardiã.
Fomos levados para só Deus sabe onde.
Diante de nós, descortinavam-se, como numa miragem,
Cidades feitas de maravilha.
Folhas de hortelã espalhavam-se a nossos pés,
Pássaros vinham acompanhar-nos em nossa jornada,
Peixes saltavam do rio para nos saudar,
E o céu desenrolava-se, acima de nós, como um tapete...
Enquanto isso, atrás de nós, o tempo transformava-se em destino,
Como um louco brandindo uma navalha.

[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp. 155-156]

SOBRE ARSENY TARKOVSKI


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Adriana Lisboa

DEPOIS DE UM LONGO DIA DE TRABALHO 
para Claudia Roquette-Pinto 
O panteão tibetano
em suas molduras de brocados
e na janela uma bandeja:
pedaços de ossos e frutas para
os pássaros. Vejo você
outra vez doméstica,
apaziguada - disseram certa vez: é
como tirar os sapatos depois de um
longo dia de trabalho.
Você toca a testa no chão
e a umidade dos olhos comprova
o que sua voz agora doce entoa
numa língua que não compreendo.
Tenho a impressão de que
as paredes se curvam numa
mesura quase imperceptível. Tenho
a impressão de que lá fora as folhas
do outono, festivas, esvoaçam
também por isso.

A MANHÃ INTEIRA
para Mariana Ianelli
A manhã inteira e nenhum trabalho que preste.
O mundo respirando quieto
no pulmão da neve tardia.
Você queria que as palavras
fossem simples e poucas,
os objetos ao seu redor simples e poucos,
a fome abrandável por um pedaço
de pão. Queria a mansidão
das folhas ainda meninas
tapadas pela neve, sem susto.
Ali, esperando. Ali, quietas, meditativas,
livres até mesmo da crença
de que mais tarde voltarão a brotar.

CACHORRO DEITADO NA NEVE
Diz ali que foi eleito
o quadro preferido dos visitantes do museu
A cidade é Frankfurt, o artista
é Franz Marc e o dia
é uma coleção de horas a
transpor, a passar a perder
de vista. As calçadas também sentem
frio, acho, e todos os passantes
devem ter os pés doloridos.
Mas o que será que guarda
em seu coração de tela o cachorro, esse cachorro alourado
ressonando expressionista sobre a neve,
será que ele dorme em alemão?
Será que ele suspeita como percute
este coração humano
que passa diante dele, igualmente
manso, aguardando o degelo,
o pulo, o verão?

ANIMAIS DELICADOS
Claro que não têm a menor importância
as tardes nubladas. O comentário serve para
tirar da palavra a trava
de proteção. Tanto que depois
falamos de Hermann Hesse,
universos paralelos, Edward Bernays.
Falamos dos caras que querem saber
se suas garotas tiveram orgasmos múltiplos
e quantos exatamente
pois essa é a medida de sua (deles) adequação.
Falamos do quadro que você pintou
inspirado no filme. Mencionamos
esta nossa fé torta, exonerado o dogma.
Numa revelação ao revés,
fica acertado que seremos tenazes antes
da extinção, como o leopardo-de-zanzibar
e o lobo-da-tasmânia. Aliás:
como se enganam os passantes
acreditando, pelo tom da nossa voz,
que somos animais delicados.

[In Parte da Paisagem, São Paulo: Iluminuras, 2014]

José Castelo: O Manto de Adriana



domingo, 5 de outubro de 2014

Stéphane Mallarmé

Cansado do repouso amargo onde a preguiça 
Em mim ofende a glória por que fugi à infância 
Adorável dos bosques de rosas sob o azul 
Natural, e mais lasso sete vezes do duro 
Pacto só de cavar na vigília outra cova 
Na terra avara e fria do cérebro à prova,
Coveiro sem piedade pela esterilidade,
— Que dizer à Aurora, ó Sonhos, visitado 
Pelas rosas, já quando, das suas rosas lívidas, 
Pávido o cemitério unir campas vazias? — 
Quero deixar a Arte voraz de tal país 
Cruel e, desdenhando as críticas senis 
Dos meus velhos amigos, o gênio ou o já ido 
E a lâmpada que sabe qual é minha agonia, 
Imitar o Chinês de espírito tão fino 
Cujo êxtase puro é o pintar o fim 
Nas chávenas de neve roubada à lua esquiva 
De uma flor caprichosa que lhe perfuma a vida 
Translúcida, uma flor cheirada só na infância 
E enxertada no azul da alma, em filigrana.
E, tal como do sábio a morte só em sonho, 
Sereno, vou escolher uma paisagem jovem
E pintá-la nas xícaras ainda, distraído.
Um fio assim azul e pálido seria 
Um lago, entre o céu de porcelana nua,
Um crescente perdido por uma branca nuvem 
Molhando o corno calmo nas águas glaciais, 
Não longe de três cílios verdes, canaviais.

[In Stéphane Mallarmé - Poemas lidos por Fernando Pessoa, tradução e prefácio José Augusto Seabra, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, pp. 53-54]



sábado, 4 de outubro de 2014

Adélia Prado

EU QUERO SABER SEMPRE quem é maior, quem é menor. "Senhor, meus frades foram chamados de menores para não desejarem ser maiores... Pai, eu te suplico, que eles não sejam mais soberbos que pobres, que não sejam insolentes contra os outros, que de maneira alguma permitas que sejam promovidos a prelaturas" (disse São Francisco ao cardeal Hugolino, que quis conferir prelaturas aos frades menores). Eu gosto, gosto não, amo por amor de Deus um sujeito pretensioso que escreve coisas assim: "Em nossas despretensiosas considerações de hoje vamos fazer um efêmero estudo sobre o início da arte dramática. Voltamos a considerá-la, para situá-la e melhor condicioná-la e conotar ainda mais sua radical"...  Ó meus Deus, eu posso dar umas chicotadazinhas nestes vendilhões do templo? Me dá o direito de sentir ódio. Eu não sou bom. Eu gosto de fofoca. De fato, ardo por saber quem está passeando com a Nica do Gomes. Imagino a Nica, com a casa cheia de moças, toda vida fazendo pastel pra fora, na maior compostura, resolveu por chifre no Gomes, coitado do panaca. Olha que eu vivo dilacerada (corto dilacerada, palavra bonita), olha como que eu vivo esbodegada de tanto bater com a cabeça. De um lado o que eu quero: me tornar ALTER FRANCISCUS. Não é ALTER CLARA ou ALTER THERESA, não, é FRANCISCO mesmo. De outro: sonhei com uma cobra escondida numa moitinha de trevo que me picou dois dedos, com muita dor. Tou louca pra telefonar pra minha amiga pra ela me interpretar se é traição. Se for, ótimo: alguém, por me julgar importante e no auge do sucesso, quer me prejudicar. Ô glória! Tou com tanta raiva (Francisco não quis se tornar Francisco. Francisco quis se tornar Cristo. Há um equívoco da minha parte? Há.) que anunciei esta manhã pra ferir meus amados: Vou queimar toda a crítica sobre meus textos. Que me importa? Que se lixem. Que se danem. Que se arrebente tudo. (De puro orgulho eu queria ser pobre.) A banalidade, o mais absoluto anonimato, comprar quiabo na feira com as pernas cheias de varizes, ninguém me olhando nem uma primeira vez. O filete de capim tá nascendo debaixo da pedra. Vai dar, na estação, sua flor dura e cinzenta, sem ninguém saber. Me chamam de humilde: ah! ah! ah! eu não sou não. Me chamam de orgulhosa:  ali!  ah!  ah!  também não.  Ouvi bem: fingidora? Não. Sou pecadora. Quero brilhar. Estou possuída da tentação do sucesso, do mais absoluto e trágico sucesso. Quero um sucesso trágico. Por isso leio as resenhas dominicais sobre minha obra. Obra? (A obra na latinha para exame?) E digo aos criados: ponham na cesta, vendam ao papel velho, se quiserem. "A simplicidade é aquela que em todas as leis divinas deixa para os que vão perecer toda verbosidade, ostentação e preciosidade, enfeites e curiosidade, e vai atrás da medula e não da casca, do conteúdo e não do continente" (escritos de São Francisco). O zumbido no meu ouvido é do meu próprio aplauso? Para glória de Deus, Satanás me envergonha. Me chama Satanasa, Ratazana, Malafama. Como uma ferida em seu auge, o pus fervendo, as bordas avermelhadas, as cascas se formando. Má. Ruim. Capaz de dar a vida? Dou. Dou? Já dei uma vez. "Simplicidade quer dizer Sinceridade." O que sou? Indigesta. O que fiz bem, só pela graça o fiz. Em alto e ótimo som repito: SÓ PELA GRAÇA O FIZ. Ó Francisco,  meu pai, esposo da pobreza, pára de me amolar nesta hora paratecnológica. Eu pergunto: tem vida em Marte? Você responde: "A simplicidade não acha que as melhores glórias são as da cultura e por isso prefere fazer e não aprender ou ensinar". Eu sou filha do meu pai, eu gosto, no amor, do arrebatamento do amor, o Cântico dos Cânticos. Francisco, quero ficar em transe como você, a dois metros do chão, os olhos vidrados de tanto amor, no sol, na chuva,  no tempo. "Sai do tempo, menina, você apanha defruço no sereno", falava meu pai que falava: "A palavra raca está no Evangelho e quer dizer bobo. Chamar o irmão de bobo é crime!" E toda a sua vasta estrutura amedrontava-se, porque ele xingara o irmão de filho de sua mãe. Oh, desestruturo-me também. "Sabedor de seus distúrbios do baço e do estômago, um guardião, para protegê-lo do frio, mandara costurar uma pele de raposa por baixo de seu hábito. Francisco quis por outra também, pelo lado de fora, para não esconder ao povo o cuidado que tinha para consigo mesmo" (Celano, na Vida de São Francisco). Eu, querido pai, quero um vestido feito com as águas do mar e os peixinhos nadando, quero um vestido de noite com as estrelas e a lua, um vestido tão belíssimo que choro choro e choro porque o vestido existe e eu não tenho ele. Ou este, ou um vestido de saco de farinha de trigo. Posso? Não posso. "Francisco escolheu frei João, o simples, como seu irmão preferido, graças a sua simplicidade, embora em certo ponto o santo tivesse que intervir para proibi-lo de levar essa virtude a limites indiscretos" (Celano). A mulher com varizes compra quiabos na feira. Ninguém vê. A mulher põe seu vestido de malha sintética e vai dar aulas de Moral e Cívica. Ninguém vê. Recorta do jornal cheia de alegria a criticazinha do seu livro e vai pregar no caderninho de recortes. Ninguém vê, mas a alegria sobre as coisas garante que elas estão perdoadas. "Irmãos, irmãos! O Senhor me chamou pelo caminho da simplicidade e me mostrou o caminho da simplicidade" (frase de frei Leão citada por A. Clareno, Expositio regulae, cap. 10, Ed. Oliger, Acl Claras Aquas 1972, 210).

[In Solte os Cachorros, in Prosa Reunida, São Paulo, Siciliano, 1999, pp. 48-50]

El Greco - São Francisco em Meditação




Amir Guilboa

ALEGRIA
Cada um na rua perguntou por que estás alegre
e eu não compreendia que estava alegre
quando cheguei quase ao fim das ruas.
Encontrei um menino que brincava na areia no fim
[das ruas

disse-lhe vem tu também e sê alegre
ele me disse tu estás no fim das ruas.

Cada um na rua perguntou por que estás alegre
e eu não compreendia que estava alegre
quando cheguei quase ao fim da alegria.
Achava-me uma criança que não chegava ao fim da
[alegria
disse comigo tu serás ainda bem alegre
e jamais chegarás ao fim da alegria.

Cada um na rua perguntou por que estás alegre
e eu não compreendia que estava alegre
 e aliás não compreendo nada quando é hora da alegria.
Tive um dia muito longo sem que eu estivesse alegre
e espantava-me com cada um que então interrogava a
[minha alegria
e uma dor devora o coração grande como uma alegria.

NA ESCURIDÃO
Se me mostram um seixo e eu digo seixo eles dizem
seixo
se me mostram uma árvore e eu digo árvore eles dizem
árvore
mas se me mostram sangue e eu digo sangue eles dizem
cor
se me mostram sangue e eu digo sangue eles dizem cor.

OS CAVALOS DOS CAVALEIROS
As lanças dos cavaleiros tocavam o céu
e com isso os cavalos estavam muito orgulhosos
desenhei os cavalos soberbos e altivos
sem cavaleiros
sem lanças.
E meus cavalos livres de freios se amontoavam
no papel, no assoalho e na parede.
E depois, lançados comigo à poeira,
sentiram que lhes nasciam asas.
Agora que voam pelos céus
evoco a sua lembrança neste poema.

O DIA INTEIRO
Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a tua face.
Os ventos fortes cortaram-me o rosto e os joelhos
os fortes ventos combateram meus passos
os ventos fortes apagaram as luzes dos meus olhos.

Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a tua face.
Por tua força caminhei:
a cada passo pensava em teu nome.
A cada passo afogava teu nome
nos rochedos, na lama, na areia .
De caule em caule.
De poste em poste.
Eu sabia que te veria vivo,
pois não morrerás nunca
não morrerás
não!
Pois tu és o supremo Senhor da tribo.

Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a tua face,
e encontrei-te escravo.

Tradução: Cecília Meireles

Amir Guilboa nasceu na Ucrânia em 1917  e foi educado em Israel. Participou da segunda guerra mundial. Sua escrita teve grande influência sobre os mais jovens. Faleceu em 1984. 

[In Antologia da Literatura Hebraica Moderna, Rio de Janeiro, Biblos, 1969, pp. 62-65]





Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...