CHOVE SOBRE UM LIVRO DE F. PESSOA
CHOVER não é o que me entristece,
mas que chova sem utilidade, isto é,
que chova sem solução para o estar chovendo também em mim,
que chova audivelmente fora de mim
e em mim chova calado.
Queria que em mim a chuva fizesse barulho
ou se pudesse ver, queria que houvesse trovões,
qualquer coisa de pirotécnico,
qualquer coisa de molhado, capas impermeáveis, por exemplo,
gostaria que houvesse uma espécie de guarda-chuvas por dentro,
guarda-chuvas que abrissem ao contrário
e que tivessem só o forro preto
gruarda-chuvas com as varetas apontadas para o alto, por exemplo,
guarda-chuvas cujo cabo viesse de cima, por exemplo,
e que só servissem para chuvas interiores,
para tempos nublados interiores,
para umidades interiores.
Seria conveniente também que existissem galochas para o íntimo.
Creio que nem por uma coincidência tais apetrechos são negros,
creio firmemente que a chuva é uma coisa de fúnebre,
uma coisa de estar enterrado.
Creio que estar morto é estar chovendo sempre.
Estar morto é estarem chovendo sempre sobre a gente
e a gente sem poder usar guarda-chuva ou capa impermeável ou galochas,
creio que esse é exatamente o desconforto de estar morto,
creio que estar chovendo sobre a nossa face indefesa
é o símbolo de se estar morto,
até nossas mãos cruzadas sobre o peito
e o não poder arredar a água dos olhos
são o símbolo de se estar morto.
E firmemente sei, também e não obstante, que estar morto
é mais confortável,
(e sem dúvida será mais original)
que o estar chovendo na gente;
tudo, com a imensa vantagem de ser eterno.
[In: Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 149]
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Mariana Ianelli
PARA AQUELES A QUEM OS DIAS SÃO UM SOPRO
Raramente concede entrevistas este ermitão chamado Antonio Lobo Antunes. Não vai a lançamentos, não aparece, não promove seus livros. Uma vez, convidado a encerrar um congresso de medicina, não hesitou em frustrar as expectativas declarando que “esperar que um escritor diga coisas interessantes é o mesmo que esperar de um acrobata que ande aos saltos mortais na rua”. Por muito que soe antipático, e com isso prove a outra face da fama, Lobo Antunes não participa da indústria do espetáculo por uma razão muito simples, talvez por isso mesmo incômoda, elementar feito água. Lobo Antunes não aparece porque, sendo escritor, está a escrever. Porque o tempo é curto para o que de melhor ele tem a fazer, e está fazendo - diante do papel, não dos microfones.
Há certo escândalo em se abster do espetáculo quando vigora a lógica de que todo o tempo, por uma boa causa, pode ser negociável. Há um escândalo no sentido radical da palavra, o impedimento desta lógica perversa que arrebata o escritor da sua mesa de trabalho para um palco, aparentemente em favor da própria literatura. E esperado que, além de escrever, o escritor fale a respeito do seu livro, e fale sedutoramente, que seja cativante, que desperte e faça durar o interesse de uma plateia, que conte um pouco sobre o seu método de trabalho, sobre como faz para pensar o que pensa e dizer o que diz. É esperado que ele dê mais do que o inefável de sua escrita, ele, que já falhou tantas vezes na vida, e falhou com tanta excelência a ponto de criar um mundo novo dentro da órbita do espanto de estar vivo; ele, que escreve desde sua solidão sem fundo, desde súplicas remotas, fazendo de suas perguntas sem resposta o seu poema, ele agora é este escritor que deve estar apto a responder, a fascinar, a surpreender, como quem volta de uma longa jornada e abre sua bagagem cheia de lembranças exóticas, histórias de além-mar, relatos de pequenas grandes peripécias por trás de suas cicatrizes, tudo isso transformado de chofre num livro vivo, numa proeza, num evento digno de aplauso, como um acontecimento que, para além dos inenarráveis fracassos pessoais que porventura alimentam a própria escrita, possa ser considerado o fato de uma conquista, a razão de um sucesso, a prova de que um livro antes escrito sem plateia e sem garantia de resposta é um livro que, afinal, merece ser lido.
Basta pensar no teor venatório da expressão “público-alvo” para ver que alguma coisa aí não faz sentido. Num auditório que reúne uma centena de pessoas com o propósito de ouvir a uma só pessoa, ali, de frente para todos, caberia a pergunta de onde está realmente o alvo. Porque, ao fim e ao cabo, num verdadeiro encontro entre o escritor e seus leitores, não há quem não saia atingido, quem não se reconheça nas mesmas antigas interrogações de um único homem que, há muito tempo, nos confins da Arábia e do país de Edom, por falta de um consolo para a angústia que sentia, não encontrou outra saída senão cantar dentro de um longo poema, e assim, cantando, perguntava por que ele era cercado por todos os lados, vigiado, tomado por alvo, posto à prova, agarrado pela orla de sua túnica, confundido com o pó e a cinza.
(Publicada em 26/03/2011)
Raramente concede entrevistas este ermitão chamado Antonio Lobo Antunes. Não vai a lançamentos, não aparece, não promove seus livros. Uma vez, convidado a encerrar um congresso de medicina, não hesitou em frustrar as expectativas declarando que “esperar que um escritor diga coisas interessantes é o mesmo que esperar de um acrobata que ande aos saltos mortais na rua”. Por muito que soe antipático, e com isso prove a outra face da fama, Lobo Antunes não participa da indústria do espetáculo por uma razão muito simples, talvez por isso mesmo incômoda, elementar feito água. Lobo Antunes não aparece porque, sendo escritor, está a escrever. Porque o tempo é curto para o que de melhor ele tem a fazer, e está fazendo - diante do papel, não dos microfones.
Há certo escândalo em se abster do espetáculo quando vigora a lógica de que todo o tempo, por uma boa causa, pode ser negociável. Há um escândalo no sentido radical da palavra, o impedimento desta lógica perversa que arrebata o escritor da sua mesa de trabalho para um palco, aparentemente em favor da própria literatura. E esperado que, além de escrever, o escritor fale a respeito do seu livro, e fale sedutoramente, que seja cativante, que desperte e faça durar o interesse de uma plateia, que conte um pouco sobre o seu método de trabalho, sobre como faz para pensar o que pensa e dizer o que diz. É esperado que ele dê mais do que o inefável de sua escrita, ele, que já falhou tantas vezes na vida, e falhou com tanta excelência a ponto de criar um mundo novo dentro da órbita do espanto de estar vivo; ele, que escreve desde sua solidão sem fundo, desde súplicas remotas, fazendo de suas perguntas sem resposta o seu poema, ele agora é este escritor que deve estar apto a responder, a fascinar, a surpreender, como quem volta de uma longa jornada e abre sua bagagem cheia de lembranças exóticas, histórias de além-mar, relatos de pequenas grandes peripécias por trás de suas cicatrizes, tudo isso transformado de chofre num livro vivo, numa proeza, num evento digno de aplauso, como um acontecimento que, para além dos inenarráveis fracassos pessoais que porventura alimentam a própria escrita, possa ser considerado o fato de uma conquista, a razão de um sucesso, a prova de que um livro antes escrito sem plateia e sem garantia de resposta é um livro que, afinal, merece ser lido.
Basta pensar no teor venatório da expressão “público-alvo” para ver que alguma coisa aí não faz sentido. Num auditório que reúne uma centena de pessoas com o propósito de ouvir a uma só pessoa, ali, de frente para todos, caberia a pergunta de onde está realmente o alvo. Porque, ao fim e ao cabo, num verdadeiro encontro entre o escritor e seus leitores, não há quem não saia atingido, quem não se reconheça nas mesmas antigas interrogações de um único homem que, há muito tempo, nos confins da Arábia e do país de Edom, por falta de um consolo para a angústia que sentia, não encontrou outra saída senão cantar dentro de um longo poema, e assim, cantando, perguntava por que ele era cercado por todos os lados, vigiado, tomado por alvo, posto à prova, agarrado pela orla de sua túnica, confundido com o pó e a cinza.
(Publicada em 26/03/2011)
[In Breves Anotações sobre um Tigre, ilustrações de Alfredo Aquino, Porto Alegre: Ardotempo, 2013, pp. 79-81]
domingo, 27 de setembro de 2015
W. H. Auden
LUNAR, ESTA BELEZA
Lunar, esta beleza
E primeva, inteira,
Não tem nenhuma história.
Se a beleza mais tarde
Exibe algum traço,
Foi porque teve amante,
Já não é como antes.
Nisto, qual em sonho,
Vige um outro tempo,
Perdido se o dia
De tudo se apropria.
O tempo são centímetros
E mudanças de alma
Que espectro assombrou,
Perdeu e desejou.
Mas isto, por certo,
Não foi coisa de espectro,
Nem espectro, ela finda,
Sentiu-se a gosto, ainda,
E enquanto persista,
Nem se chega amor
A tal doçura e a dor
Tampouco lhe vem dar
Seu infinito olhar.
(J. P.P.)
[In Poemas, Seleção de João Moura Jr., Tradução e Introdução: José Paulo Paes e João Moura Jr., São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 35]
Lunar, esta beleza
E primeva, inteira,
Não tem nenhuma história.
Se a beleza mais tarde
Exibe algum traço,
Foi porque teve amante,
Já não é como antes.
Nisto, qual em sonho,
Vige um outro tempo,
Perdido se o dia
De tudo se apropria.
O tempo são centímetros
E mudanças de alma
Que espectro assombrou,
Perdeu e desejou.
Mas isto, por certo,
Não foi coisa de espectro,
Nem espectro, ela finda,
Sentiu-se a gosto, ainda,
E enquanto persista,
Nem se chega amor
A tal doçura e a dor
Tampouco lhe vem dar
Seu infinito olhar.
(J. P.P.)
[In Poemas, Seleção de João Moura Jr., Tradução e Introdução: José Paulo Paes e João Moura Jr., São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 35]
sábado, 26 de setembro de 2015
Murilo Mendes
OURO PRETO
A alma livremente encarcerada
Comunica-se com os doidos e os poetas
Oue pelas frias naves dão-se os pés.
Sinto grego o céu de outrora me envolver.
A cavalo sobre as igrejas de pedra
Irrompe o Aleijadinho na sua capa.
Nas linhas de ar balança-se o relógio
Marcando cegamente o compasso do tempo.
Um vulto cruza outro na ladeira.
Pelos desertos espaços metafísicos
Arrastam-se as sandálias da pobreza.
Das varandas azuis tombam ossadas.
Ouro Preto severa e íntima adormece
Num abafado rumor de águas subterrâneas.
[In Sonetos brancos, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 445]
A alma livremente encarcerada
Comunica-se com os doidos e os poetas
Oue pelas frias naves dão-se os pés.
Sinto grego o céu de outrora me envolver.
A cavalo sobre as igrejas de pedra
Irrompe o Aleijadinho na sua capa.
Nas linhas de ar balança-se o relógio
Marcando cegamente o compasso do tempo.
Um vulto cruza outro na ladeira.
Pelos desertos espaços metafísicos
Arrastam-se as sandálias da pobreza.
Das varandas azuis tombam ossadas.
Ouro Preto severa e íntima adormece
Num abafado rumor de águas subterrâneas.
[In Sonetos brancos, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 445]
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Adélia Prado
INCONCLUSO
O dia em sua metade
e o calor do corpo ainda não me deixou.
Ele estava em minha casa e ia comer conosco.
Enquanto a mãe cozinhava,
esgueirou-se e disse no meu ouvido:
Quero falar com você.
Vamos até ali, respondi abrasada,
medrosa de que alguém nos visse.
Chegara com um frango depenado
— o que não me abalava o enlevo —
como se me testasse:
A quem não ama seu corpo,
sua alma lhe fecha a porta.
Ai, que meu pai não me visse assim tão ofegante
e estumasse seu nariz perdigueiro
à cica que me entranhava.
O sonho acabou aqui, onde estou até agora
ardente e virgem.
[In MISERERE, São Paulo, Record, p. 77]
O dia em sua metade
e o calor do corpo ainda não me deixou.
Ele estava em minha casa e ia comer conosco.
Enquanto a mãe cozinhava,
esgueirou-se e disse no meu ouvido:
Quero falar com você.
Vamos até ali, respondi abrasada,
medrosa de que alguém nos visse.
Chegara com um frango depenado
— o que não me abalava o enlevo —
como se me testasse:
A quem não ama seu corpo,
sua alma lhe fecha a porta.
Ai, que meu pai não me visse assim tão ofegante
e estumasse seu nariz perdigueiro
à cica que me entranhava.
O sonho acabou aqui, onde estou até agora
ardente e virgem.
[In MISERERE, São Paulo, Record, p. 77]
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
Ángelos Sikelianós
O APOCALIPSE
E a criação, como após
a morte de Deus, se enchera
de brumas. O ar nevoento,
que a espada de luz
das estrelas feria,
por toda parte estremecia
de antigo sofrimento...
A bruma se elevava, espessa
como o incenso da oferenda
fiel de uma escrava enquanto,
inundados de lua,
os olhos vertiam,
orvalho silencioso, o pranto.
E com as mãos rasguei
o ar enganoso à volta;
nos montes e nos mares
a meus olhos luzia
do profundo, sacro dia
da criação, o arrebol.
Uma lira soava
no ar tão intenso
— a do sol!
[De O vidente, 1]
CREPÚSCULO
E eu tinha os olhos cheios,
mas tão cheios de luz,
que se fechasse as pálpebras
ela jorraria como pranto,
como pranto — abrindo-se
em flores orvalhadas.
A luz cavava sulcos
em meu cérebro, aligeirando-o
como à árvore o vento
que lhe atira os frutos
ao chão, e aí,
libertas, as folhas
frondejam nas alturas
com um novo frêmito.
A luz cavava sulcos
em meu cérebro e corria-me
pelas veias, lenta, calma.
[Idem, III]
HOMERO
E o ombro tocou-me
mão que não se via;
e tive pena ao guiar um cego
pela rua sombria.
A alta lei não-escrita
da criação ouvia
eu, pálpebras bem abertas,
como quem não deseja
perder da grande luz
uma gota que seja.
No bosque à minha volta
noite adentro as azeitonas
se iluminavam do secreto
azeite que as sazona.
E enquanto ele ascendia, farto,
contemplando os longes, eu
anulava em meus olhos
a lágrima, como Odisseu.
[Idem, III]
SOBRE SIKELIANÓS
[In Poesia Moderna da Grécia, seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Rio, Ed. Guanabara, 1986, pp. 96-98].
E a criação, como após
a morte de Deus, se enchera
de brumas. O ar nevoento,
que a espada de luz
das estrelas feria,
por toda parte estremecia
de antigo sofrimento...
A bruma se elevava, espessa
como o incenso da oferenda
fiel de uma escrava enquanto,
inundados de lua,
os olhos vertiam,
orvalho silencioso, o pranto.
E com as mãos rasguei
o ar enganoso à volta;
nos montes e nos mares
a meus olhos luzia
do profundo, sacro dia
da criação, o arrebol.
Uma lira soava
no ar tão intenso
— a do sol!
[De O vidente, 1]
CREPÚSCULO
E eu tinha os olhos cheios,
mas tão cheios de luz,
que se fechasse as pálpebras
ela jorraria como pranto,
como pranto — abrindo-se
em flores orvalhadas.
A luz cavava sulcos
em meu cérebro, aligeirando-o
como à árvore o vento
que lhe atira os frutos
ao chão, e aí,
libertas, as folhas
frondejam nas alturas
com um novo frêmito.
A luz cavava sulcos
em meu cérebro e corria-me
pelas veias, lenta, calma.
[Idem, III]
HOMERO
E o ombro tocou-me
mão que não se via;
e tive pena ao guiar um cego
pela rua sombria.
A alta lei não-escrita
da criação ouvia
eu, pálpebras bem abertas,
como quem não deseja
perder da grande luz
uma gota que seja.
No bosque à minha volta
noite adentro as azeitonas
se iluminavam do secreto
azeite que as sazona.
E enquanto ele ascendia, farto,
contemplando os longes, eu
anulava em meus olhos
a lágrima, como Odisseu.
[Idem, III]
SOBRE SIKELIANÓS
[In Poesia Moderna da Grécia, seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Rio, Ed. Guanabara, 1986, pp. 96-98].
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
Marize Castro
meu menino parte e eu estou longe
mas não tão longe que não sinta seu hálito
seu arfar, sua alegria
meu rebelde (assim eu o chamava) foi enviado
em uma Iria noite, antes dos relâmpagos
envolto em placenta verde, pediu-me:
rasgue-a, traga-me para este mundo
serei sua liberdade
sua proteção
te guardarei à noite
durante o dia dormirei
aos seus pés
você me amará para sempre
serei seu filho mais alegre
mas também serei sua maior tristeza
em terra estrangeira
quando eu partir, você estará longe
não te deixarei não me ver andar
eu que sempre voei, estarei paralisado
ampliando a eternidade
-0-0-
triste rapaz, quando eu disser
não te amo mais
não acredite
sob meus pés
uma terra estrangeira move-se
um funeral anuncia-se
novamente sou líquida tempestade
estou de novo na primeira floresta
alimentando-me de uivo
granizo
fel
por isso, triste rapaz, quando eu disser
distancie-se
saiba que há um dilúvio
a galope
(este coração está por um triz)
mas também saiba
que te ter dentro de mim
é o que as pessoas neste imenso
mundo chamam
de Céu
[In Habitar teu Nome, Natal (RN): Una, 2011, pp. 46-47].
mas não tão longe que não sinta seu hálito
seu arfar, sua alegria
meu rebelde (assim eu o chamava) foi enviado
em uma Iria noite, antes dos relâmpagos
envolto em placenta verde, pediu-me:
rasgue-a, traga-me para este mundo
serei sua liberdade
sua proteção
te guardarei à noite
durante o dia dormirei
aos seus pés
você me amará para sempre
serei seu filho mais alegre
mas também serei sua maior tristeza
em terra estrangeira
quando eu partir, você estará longe
não te deixarei não me ver andar
eu que sempre voei, estarei paralisado
ampliando a eternidade
-0-0-
triste rapaz, quando eu disser
não te amo mais
não acredite
sob meus pés
uma terra estrangeira move-se
um funeral anuncia-se
novamente sou líquida tempestade
estou de novo na primeira floresta
alimentando-me de uivo
granizo
fel
por isso, triste rapaz, quando eu disser
distancie-se
saiba que há um dilúvio
a galope
(este coração está por um triz)
mas também saiba
que te ter dentro de mim
é o que as pessoas neste imenso
mundo chamam
de Céu
[In Habitar teu Nome, Natal (RN): Una, 2011, pp. 46-47].
terça-feira, 22 de setembro de 2015
Jaime Rocha
A mulher caminha pelas urzes, no auge
do vento, já depois da morte, enovelada
pelos ramos que cortam a paisagem.
O homem está parado como uma ave
de pedra, batida pelo fumo. Depois, é o
corpo dela desfeito sobre os rochedos,
uma faísca que incendeia um pedaço
de madeira. O homem, amarrado a uma
mancha de ferro, contempla o corpo vazio.
Um pássaro cego cai em cima de um espelho.
É o rosto dele despedaçado, a dor.
Tudo é medonho à sua volta, a parte
de trás da luz, a humidade, a respiração
das plantas.
///
Toda aquela assombração está gravada
na tinta como se pertencesse a um livro
queimado, roído pelo sol. O homem sabe
que se trata de uma morta, mas não
entende que é a cicatriz do seu peito que
lhe ocupa o sono e o cativa para um ritual
demoníaco. Conhece os seus cabelos, os
lábios a descerem pelas amoras, pela cera.
E toda a sua pele sobressai, pintada na
parede, nos pregos, nas mãos que descansam
em cima de uma toalha. Um navio incendeia-se
contra um recife. É ela ou os seus vestidos a
desaparecerem no horizonte, no fim de tudo.
///
Ela diz, é a sua primeira fala depois de morta,
tapar-te-ei com os meus cetins como se o meu
corpo fosse um risco no céu.
O homem sabe que as palavras são apenas uma
memória. A sua cintura procura reviver depois
de os cães o terem dilacerado. É um grito, um
beijo frio. Ela avança com a roupa ensanguentada.
Mas é apenas uma moldura envolvida pelo âmbar,
uma luminosidade difusa, saída de uma necrópole.
Um dos lados do seu rosto fica negro, como se a
lua tivesse passado por cima dele e o deixasse
marcado por uma dor.
///
A mulher mostra-se na luz, entre a folhagem.
A cor dos seus cabelos está intacta. Ela tece
um caminho para o homem, mas as mãos dele
colaram-se ao cimento, os seus olhos pararam
no tempo. Todo o seu corpo se assemelha agora
a uma árvore acorrentada pelas heras onde não
entra a música, nem o tempo que separa os dias.
As ondas sustiveram o movimento em direcção
à praia, regressando ao outro lado do horizonte.
As nuvens caíram. As aves perderam as asas.
Tudo, até os cães, desapareceu na escuridão.
Apenas umas pétalas esvoaçaram ao acaso,
seguindo o rasto dos morcegos, num último
torpor, numa vergonha.
[in Necrophilia, Relógio d’Água, 2010; um ciclo de 50 poemas em torno do quadro Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti]
Fonte: Bibliotecário de Babel
SOBRE JAIME ROCHA
do vento, já depois da morte, enovelada
pelos ramos que cortam a paisagem.
O homem está parado como uma ave
de pedra, batida pelo fumo. Depois, é o
corpo dela desfeito sobre os rochedos,
uma faísca que incendeia um pedaço
de madeira. O homem, amarrado a uma
mancha de ferro, contempla o corpo vazio.
Um pássaro cego cai em cima de um espelho.
É o rosto dele despedaçado, a dor.
Tudo é medonho à sua volta, a parte
de trás da luz, a humidade, a respiração
das plantas.
///
Toda aquela assombração está gravada
na tinta como se pertencesse a um livro
queimado, roído pelo sol. O homem sabe
que se trata de uma morta, mas não
entende que é a cicatriz do seu peito que
lhe ocupa o sono e o cativa para um ritual
demoníaco. Conhece os seus cabelos, os
lábios a descerem pelas amoras, pela cera.
E toda a sua pele sobressai, pintada na
parede, nos pregos, nas mãos que descansam
em cima de uma toalha. Um navio incendeia-se
contra um recife. É ela ou os seus vestidos a
desaparecerem no horizonte, no fim de tudo.
///
Ela diz, é a sua primeira fala depois de morta,
tapar-te-ei com os meus cetins como se o meu
corpo fosse um risco no céu.
O homem sabe que as palavras são apenas uma
memória. A sua cintura procura reviver depois
de os cães o terem dilacerado. É um grito, um
beijo frio. Ela avança com a roupa ensanguentada.
Mas é apenas uma moldura envolvida pelo âmbar,
uma luminosidade difusa, saída de uma necrópole.
Um dos lados do seu rosto fica negro, como se a
lua tivesse passado por cima dele e o deixasse
marcado por uma dor.
///
A mulher mostra-se na luz, entre a folhagem.
A cor dos seus cabelos está intacta. Ela tece
um caminho para o homem, mas as mãos dele
colaram-se ao cimento, os seus olhos pararam
no tempo. Todo o seu corpo se assemelha agora
a uma árvore acorrentada pelas heras onde não
entra a música, nem o tempo que separa os dias.
As ondas sustiveram o movimento em direcção
à praia, regressando ao outro lado do horizonte.
As nuvens caíram. As aves perderam as asas.
Tudo, até os cães, desapareceu na escuridão.
Apenas umas pétalas esvoaçaram ao acaso,
seguindo o rasto dos morcegos, num último
torpor, numa vergonha.
[in Necrophilia, Relógio d’Água, 2010; um ciclo de 50 poemas em torno do quadro Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti]
Fonte: Bibliotecário de Babel
SOBRE JAIME ROCHA
By Fabrizio Erminio |
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Rui Costa
AUTOBIOGRAFIA
Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,
Ceifando. Saturno.e.o.vento.na.proa.erguendo.
O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.
Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.
A NUVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES
Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.
[In A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Ed. Quasi, 2006]
Fonte: Blog Casa dos Poetas
Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,
Ceifando. Saturno.e.o.vento.na.proa.erguendo.
O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.
Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.
A NUVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES
Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.
[In A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Ed. Quasi, 2006]
Fonte: Blog Casa dos Poetas
Giovanni Spazzini |
domingo, 20 de setembro de 2015
João Luís Barreto Guimarães
PONTE MÓVEL SOBRE O RIO LEÇA
Imóvel na ponte aberta sobre este porto de mar
queria não ter de esperar que o petroleiro passasse
a vomitar ouro preto nos depósitos da Cepsa.
Olho as margens da tarde em informe ebulição:
o navio japonês veio dar à luz Toyotas
alinhados sobre o cais qual parada militar
(os turistas do cruzeiro aguardam pelo autocarro
que narrará em sueco memórias do Porto antigo).
Do cargueiro africano rolam troncos gigantescos
houve um que caiu à água e ninguém o foi salvar
(decerto não irá longe nestas águas estagnadas
nem poderá ir mais ao fundo).
Corre um vento de norte. Novembro
está dentro do outono. Alguém reuniu o manto
de folhas cerca da ponte mas pelo final do dia
já é outono outra vez. E
distraí-me do cais. Espera. Lá está a marinha.
A fragata da Defesa devolveu homens a terra
meio dia de licença na casa da luz vermelha
(este Natal as meninas vão-lhes dar a provar sonhos
e o porteiro: rabanadas). Se
faltavam desrazões para me obrigar a parar
aqui me têm parado (só re
parando se vê)
qualquer amurada é perfeita para resumir um país
qualquer ponte é ideal para se matar
os tempos.
[In Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2011, p. 240]
Imóvel na ponte aberta sobre este porto de mar
queria não ter de esperar que o petroleiro passasse
a vomitar ouro preto nos depósitos da Cepsa.
Olho as margens da tarde em informe ebulição:
o navio japonês veio dar à luz Toyotas
alinhados sobre o cais qual parada militar
(os turistas do cruzeiro aguardam pelo autocarro
que narrará em sueco memórias do Porto antigo).
Do cargueiro africano rolam troncos gigantescos
houve um que caiu à água e ninguém o foi salvar
(decerto não irá longe nestas águas estagnadas
nem poderá ir mais ao fundo).
Corre um vento de norte. Novembro
está dentro do outono. Alguém reuniu o manto
de folhas cerca da ponte mas pelo final do dia
já é outono outra vez. E
distraí-me do cais. Espera. Lá está a marinha.
A fragata da Defesa devolveu homens a terra
meio dia de licença na casa da luz vermelha
(este Natal as meninas vão-lhes dar a provar sonhos
e o porteiro: rabanadas). Se
faltavam desrazões para me obrigar a parar
aqui me têm parado (só re
parando se vê)
qualquer amurada é perfeita para resumir um país
qualquer ponte é ideal para se matar
os tempos.
[In Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2011, p. 240]
sábado, 19 de setembro de 2015
Conceição Lima
VERSÃO DE DESERTO
Trazido não sei por que apelos, urgências
Vieste impugnar o momento que me cerca.
Demora — conclamas — a clara voz em minha boca.
Peço-te porém que repares:
não agonizam dunas nestes campos.
Aqui não jazem ossadas sem registo
nem apodrecem espectros de
perdidas caravanas.
Nenhum trilho foi abandonado
e não reneguei
Não, não reneguei
o nome do pai do meu pai.
O meu deserto é a vertical semente de um barco.
O areal (seu brilho de nada e de lago)
não é senão a metáfora de uma horta
talvez uma projectada cisterna.
Esta claridade nos olhos do griot cego
este reflexo que obscurece a luz do dia
não irradia de um céu empedernido —
a minha fome não é a maldição
do velho deus inclemente.
E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha
e tenho por estigma
a memória de um longo fratricídio.
Mas estou aqui
sob este sol que alucina
a savana ao meio-dia.
Aqui, sob este toldo rasgado
onde envergo a sede dos meus ossos
e perduro sem jardim nem chuva
sem tambores nem flauta
sem espelhos,
companheira do tempo que amarra
as minhas veias ao umbigo do poço.
Não, nenhum trilho foi esquecido
e venero o profano nome do pai do meu pai.
Lenta a vertigem vai esculpindo
os murmúrios de um rio incerto —
planto estacas
em redor da vigília dos meus mortos.
Não anuncio.
Tardo e não prenuncio reino ou abismo.
Não sou mensageira de vãos sacrifícios,
épicas derrotas, novos caminhos.
Aqui onde o inferno acontece
neste lugar onde me derramo e permaneço
inauguro a véspera da minha casa.
O meu silêncio franqueia
o umbral de qualquer coisa.
(In A dolorosa raiz do Micondó, Geração Ed., São Paulo, 2012, pp. 69-71)
Trazido não sei por que apelos, urgências
Vieste impugnar o momento que me cerca.
Demora — conclamas — a clara voz em minha boca.
Peço-te porém que repares:
não agonizam dunas nestes campos.
Aqui não jazem ossadas sem registo
nem apodrecem espectros de
perdidas caravanas.
Nenhum trilho foi abandonado
e não reneguei
Não, não reneguei
o nome do pai do meu pai.
O meu deserto é a vertical semente de um barco.
O areal (seu brilho de nada e de lago)
não é senão a metáfora de uma horta
talvez uma projectada cisterna.
Esta claridade nos olhos do griot cego
este reflexo que obscurece a luz do dia
não irradia de um céu empedernido —
a minha fome não é a maldição
do velho deus inclemente.
E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha
e tenho por estigma
a memória de um longo fratricídio.
Mas estou aqui
sob este sol que alucina
a savana ao meio-dia.
Aqui, sob este toldo rasgado
onde envergo a sede dos meus ossos
e perduro sem jardim nem chuva
sem tambores nem flauta
sem espelhos,
companheira do tempo que amarra
as minhas veias ao umbigo do poço.
Não, nenhum trilho foi esquecido
e venero o profano nome do pai do meu pai.
Lenta a vertigem vai esculpindo
os murmúrios de um rio incerto —
planto estacas
em redor da vigília dos meus mortos.
Não anuncio.
Tardo e não prenuncio reino ou abismo.
Não sou mensageira de vãos sacrifícios,
épicas derrotas, novos caminhos.
Aqui onde o inferno acontece
neste lugar onde me derramo e permaneço
inauguro a véspera da minha casa.
O meu silêncio franqueia
o umbral de qualquer coisa.
(In A dolorosa raiz do Micondó, Geração Ed., São Paulo, 2012, pp. 69-71)
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
Matilde Campilho
EU JÁ ESCUTO OS TEUS SINAIS
Olhe lá
Eu nunca quis voltar
atrás no tempo
nem por uma vez
A vida já foi muito boa
e muito ruim comigo
com minhas costas
com meus rins
com meus estúpidos
glóbulos vermelhos
com minha melancolia
com minha nacionalidade
A vida já foi mais estúpida
que meus glóbulos vermelhos
Mais doce que a visão do sol
de junho batendo nos joelhos
de um garoto ou de uma mulher
A vida já se serviu de mim
como uma pega
como um garçom
como um respigador
como um profissional
da marcação de fronteiras
Serviu-se de mim
para todos os trabalhos
Quis cuspir-lhe na cara
vezinquando
Mas nunca
por razão nenhuma
quis voltar atrás
no tempo da vida
Pelo contrário
sempre me servi
do tempo dela
para aprender a contar
as partes todas
da futebolada mística
Desta vez é diferente
Escute agora é diferente
Daqui da bancada
dá para ver meio passado
e meio futuro
Me sento sobre o balde
do duro inverno boreal
E enquanto vou esculpindo
o lustroso nada a canivete
Eu vejo os 32 °C no pontão
do Leme (mais cinco graus
se contarmos a temperatura
externa da pedra física)
Sobre o cais estão dançando
alguns astros imperfeitos
Suspeito que são homens
Eles levantam suas plumas
até a garganta do deserto
Sim eu me lembro
Mais de 40 homens
e a banda tocando
uma canção de amor
De repente lá vem vindo
oba de repente lá vem
Estou falando da entrada
da menina na arena
Da entrada dos seus cabelos
na frente de nossas retinas
Estou falando da velocidade
de um bambolê elétrico
rodopiando em torno
de tantos triplos suores
enquanto a banda toca
Olhe lá não procure histórias
estou falando de algum passado
Estou falando do ritmo
de uma estação violenta
E nem por isso impiedosa
É verão no Rio de Janeiro
Daqui deste balde revirado
dá para ver a felicidade
desabando sobre as cabeças
Dá para ver a força santa
do desejo físico imortal
Dá para ver disparos
que arrasam com toda
espécie de nacionalidade
Olhe eu nunca quis trocar
os tempos nem as partes
da partida fundamental
Mas daqui deste balde
dá para ver o assalto
que deu cabo da puta
e do garçom e até mesmo
do barbudo fronteiriço
O crime alegórico
que restaurou a alegria
E portanto veja bem
hoje se eu pudesse
eu voltava à cidade
Só para me sentar
sobre a pedra austral
e ficar assistindo às explosões
dos bambolês polifônicos
entre os dedos de uma mulher
Hoje se eu pudesse
eu voltava à cidade
Só para beijar
a cidade na boca.
[In Jóquei, Ed. 34, Rio de Janeiro, 2015, pp.128-131]
|
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Ana Luísa Amaral
A CARTA
Senhores:
hão de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos
Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão
Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira
Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai
Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas
eu, que as fui construindo devagar,
na escuridão da cela
O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários
Não fui só voz:
fui eu, dona de mim,
porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso
Só para isso me valeu viver,
pura compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei
Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário
Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência
Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura
E os atos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura
E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui
Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus
Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência
Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói —
(In Escuro, São Paulo: Iluminuras, 2015, pp. 47-48)
Senhores:
hão de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos
Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão
Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira
Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai
Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas
eu, que as fui construindo devagar,
na escuridão da cela
O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários
Não fui só voz:
fui eu, dona de mim,
porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso
Só para isso me valeu viver,
pura compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei
Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário
Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência
Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura
E os atos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura
E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui
Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus
Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência
Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói —
(In Escuro, São Paulo: Iluminuras, 2015, pp. 47-48)
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Cecília Meireles
GENTE DESAPARECIDA
[In Escolha o seu sonho, 6a. ed., Record, Rio de Janeiro, s/d, pp. 47-49]
O POETA PORTUGUÊS Carlos Queirós, querido amigo, já desapareceu deste mundo há vários anos, para nossa melancolia e saudade. Mas em 1935, quando ainda estava presente, publicou um livro a que dera o nome de Desaparecido e que começava assim:
“Sempre que leio nos jornais: “De casa de seus pais desapareceu...” Embora sejam outros os sinais, /Suponho sempre que sou eu.”
O poeta sonhava ir, jovem e independente, por seus próprios caminhos, à procura de um destino autêntico, e ser um “feliz desaparecido”, mesmo quando ventos contrários atormentassem a rota do seu veleiro. Por amor a essa aventura de partir para o mistério — herança náutica de seu povo — alegrava-se com a ideia de tal evasão, certamente mais no plano simbólico do sonho do que no da realidade física e imediata.
Mas por que desaparece tanta gente, todos os dias, em redor de nós, sem que possamos admitir que esses desaparecimentos sejam de origem lírica?
Ouço pelo rádio as famílias, os amigos, os conhecidos que indagam, inquietos, que reclamam,
descrevem, dão sinais, indicam pistas. Há desaparecidos de todas as idades e cores, e ambos os sexos, das mais variadas condições sociais: quem tiver notícias de seu paradeiro é favor informar às pessoas aflitas que os procuram.
Mas quem vai saber o paradeiro da mocinha de blusa cor-de-rosa e saia amarela que, assim colorida, bateu asas sem se despedir dos parentes? Quem viu o menino de blusão verde e sapatos novos que saiu de casa pela tardinha e lá se foi andando — e irá andando enquanto tiver boas solas nos sapatos — por muito que os pais inconsoláveis o estejam chorando e os vizinhos não possam entender tamanha ingratidão? Que foi feito da velhinha, um pouco desmemoriada, que saiu para a missa e depois entrou por um caminho desconhecido, com seu vestido cinzento, sua bolsinha de verniz e duas travessas no cabelo?
Há os desaparecidos recentes: de ontem, da semana passada, de há um mês ou dois. Assim mesmo recentes, não se encontram vestígios seus em parte alguma. Foram raptados? Ficaram debaixo do trem? Subiram para algum disco-voador? Afogaram-se? Partiram para o secreto paraíso onde não querem ser importunados? Embarcaram para Citera? Quem sabe o que lhes aconteceu?
Mais comovente, porém, é a busca de desaparecidos antigos: “Procura-se uma conhecida que há três anos não se encontra...” Para onde foi a jovem Marília que há cinco anos disse que ia trabalhar no Rio de Janeiro?.. . Que é feito do rapaz moreno, com um sinal no queixo, que usava um cordãozinho de ouro com a imagem de São Jorge?
Todas essas pessoas e muitas outras estão sendo procuradas, pacientemente, com anúncios pelos jornais e nas emissoras. Uma incansável busca. Gente de todos os Estados do Brasil, gente com vários compromissos: eram noivos, eram chefes de família, eram donas de casa... Gente miúda, que não se esperava fosse capaz de meter-se em aventuras: meninotas e rapazinhos em idade escolar; mocinhas que pareciam tímidas e assustadas, moços ainda sem emprego...
Pois desapareceram. Para onde foram? Isso é o que se deseja saber. Não quiseram mais nada com pai nem mãe, avós nem irmãos, casa, comida, sono, afeto — nada. Desejaram sumir, sumiram. Ou foram arrastados violentamente e não tiveram forças para resistir. Talvez se sintam mais felizes. Talvez estejam arrependidos e envergonhados. Talvez não existam mais. Pode ser que um dia voltem.. . Pode ser que, por enquanto, estejam dando a volta ao mundo num veleiro imaginário.. . Pode ser que já estejam cansados. Pode ser que não se cansem jamais .. . Enquanto não regressam, boa viagem, senhores desaparecidos! Se não regressarem, boa viagem, também!
Mas os afetos vigilantes continuam, inconformados, a recordar os ausentes — todos os dias novos, todos os dias mais numerosos — e, por humildes lugares, famílias tristes cultivam longos canteiros de saudades.
domingo, 13 de setembro de 2015
Yevgeny Yevtushenko
Quando o teu rosto surgiu no horizonte
sobre a minha vida destroçada,
desde o primeiro instante percebi
como era mísero tudo o que possuo.
Mas o teu rosto iluminou os rios
e os mares com sua luz própria
e me iniciou nas cores deste mundo,
a mim que em nada estava iniciado.
Quanto temo, ah quanto temo
o fim dessa aparição inesperada,
o fim das descobertas, o fim
das lágrimas e dos êxtases.
Mas não luto contra esse temor.
Compreendo que esse medo mesmo
é o amor. Por isso, eu o preservo,
embora não o saiba acariciar,
descuidado vigia de meu amor.
Dia e noite esse temor me persegue.
Sei que esses instantes são efêmeros
e que, para mim, desaparecerão as cores
assim que o teu rosto se puser no horizonte.
sobre a minha vida destroçada,
desde o primeiro instante percebi
como era mísero tudo o que possuo.
Mas o teu rosto iluminou os rios
e os mares com sua luz própria
e me iniciou nas cores deste mundo,
a mim que em nada estava iniciado.
Quanto temo, ah quanto temo
o fim dessa aparição inesperada,
o fim das descobertas, o fim
das lágrimas e dos êxtases.
Mas não luto contra esse temor.
Compreendo que esse medo mesmo
é o amor. Por isso, eu o preservo,
embora não o saiba acariciar,
descuidado vigia de meu amor.
Dia e noite esse temor me persegue.
Sei que esses instantes são efêmeros
e que, para mim, desaparecerão as cores
assim que o teu rosto se puser no horizonte.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Henriqueta Lisboa
ROMANCE DO ALEIJADINHO
Antônio Francisco Lisboa
no catre de paralítico.
Antônio Francisco Lisboa
está nos últimos dias.
—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.
Ao penitente perdoa
ira, luxúria e soberba.
Os grossos lábios murmuram
secos, gretados de terra.
Tateiam os olhos cegos
as moedas falsas da luz.
Estende os braços, estende-os,
não tem mãos para sentir
a carnadura de estrelas
de sua pedra vencida.
E anseia substâncias plásticas
sob dedos renascidos.
—Mais que volutas, rosáceas,
mais do que as flamas e as curvas
flexuosas dos meus delírios,
em segredo amei as virgens
de leves túnicas brancas,
formas essenciais do sonho
que fez de meu corpo uma alma.
E mais do que os rijos músculos
desses guerreiros que atroam
nuvens e ares com trombetas,
amei a graça e a doçura
dos anjos, dos ruflos de asas,
a delicadeza em flor
das crianças que não me amaram.
Queda um momento perplexo:
de um lado o mar infinito
de vagas que se desdobram
verdes, verdes, sempre verdes,
e seus passos firmes de homem
caminhando, caminhando,
sobre as ondas caminhando.
À esquerda a floresta, o abismo:
fulvas serpentes se enroscam
nos troncos dóceis dos cedros
atravancando a passagem.
E recorda as vezes tantas
em que seus pés se enredaram.
—Filtros, filtros de cardina,
filtros, prodigiosos filtros!
Do catre imundo e revolto
Joana Lopes se aproxima:
—Que queres tu, Pai Antônio?
—Para onde foi teu marido,
filho ingrato que gerei?
—O mundo levou teu filho
mas uma filha te deu.
—Januário, onde está Januário?
É meu escravo ou não é?
—Januário de tantas mágoas
descansa no cemitério,
— Ganhei dinheiro às carradas
e minha arca está vazia.
—Eras amigo dos pobres,
são pobres os teus amigos.
—Quero a Bíblia, a minha Bíblia!
Mãos compassivas depõem
no peito coberto de úlceras,
restos do sagrado livro.
—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.
O moribundo sem força
move os lábios num sussurro.
E da distância dos séculos
anjos e virgens o escutam.
[In Nova Lírica, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971, pp. 47-49]
Antônio Francisco Lisboa
no catre de paralítico.
Antônio Francisco Lisboa
está nos últimos dias.
—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.
Ao penitente perdoa
ira, luxúria e soberba.
Os grossos lábios murmuram
secos, gretados de terra.
Tateiam os olhos cegos
as moedas falsas da luz.
Estende os braços, estende-os,
não tem mãos para sentir
a carnadura de estrelas
de sua pedra vencida.
E anseia substâncias plásticas
sob dedos renascidos.
—Mais que volutas, rosáceas,
mais do que as flamas e as curvas
flexuosas dos meus delírios,
em segredo amei as virgens
de leves túnicas brancas,
formas essenciais do sonho
que fez de meu corpo uma alma.
E mais do que os rijos músculos
desses guerreiros que atroam
nuvens e ares com trombetas,
amei a graça e a doçura
dos anjos, dos ruflos de asas,
a delicadeza em flor
das crianças que não me amaram.
Queda um momento perplexo:
de um lado o mar infinito
de vagas que se desdobram
verdes, verdes, sempre verdes,
e seus passos firmes de homem
caminhando, caminhando,
sobre as ondas caminhando.
À esquerda a floresta, o abismo:
fulvas serpentes se enroscam
nos troncos dóceis dos cedros
atravancando a passagem.
E recorda as vezes tantas
em que seus pés se enredaram.
—Filtros, filtros de cardina,
filtros, prodigiosos filtros!
Do catre imundo e revolto
Joana Lopes se aproxima:
—Que queres tu, Pai Antônio?
—Para onde foi teu marido,
filho ingrato que gerei?
—O mundo levou teu filho
mas uma filha te deu.
—Januário, onde está Januário?
É meu escravo ou não é?
—Januário de tantas mágoas
descansa no cemitério,
— Ganhei dinheiro às carradas
e minha arca está vazia.
—Eras amigo dos pobres,
são pobres os teus amigos.
—Quero a Bíblia, a minha Bíblia!
Mãos compassivas depõem
no peito coberto de úlceras,
restos do sagrado livro.
—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.
O moribundo sem força
move os lábios num sussurro.
E da distância dos séculos
anjos e virgens o escutam.
[In Nova Lírica, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971, pp. 47-49]
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
Dora Ferreira da Silva
MARIA ZAMBRANO I
Teu ensinamento de mulher:
a razão poética une cabeça e coração.
Grata o recebo de tuas mãos
de tua alma sábia
e feminina. Diotima de Mantinéia
precedeu-te no ágape socrático
e sabemos o que ensinou aos doutos
sobre o Amor. Abundância e penúria
o muito e o nada
o paradoxo.
Vi tuas imagens: a Menina bela e grave
a mulher fascinosa
a anciã de olhar desesperado
que de longe vinha - de alguma nebulosa
ou de uma estrela desfazendo-se no céu.
Principalmente guiavas os que partiam
para outros mundos e países sem nome
em teu veleiro de vidência.
MARIA ZAMBRANO II
Estrela do caminho
do alto guias. Vi tua face de Menina
como se já soubesses teu destino.
Vi teu rosto jovem
feito só de madrugada
estando a noite adormecida.
Que asa liga o rosa ao magenta
levando pólen pelas estradas
roçando pensamentos
enlaçando ao dom poético
um dom de dizer
quase impossível nas pautas do Ser?
A outros e a mim deixaste
sílabas sagradas
pedras roladas
no flanco dos rios.
Anjo e criatura
pura e impura
conheces infernos e alturas
de um céu mais íntimo e profundo
que as margens deste mundo.
No silêncio que habitas
pouso esta vida
sem deter-te a labareda:
brilho de ouro e seda.
[In Cartografia do Imaginário, T.A. Queiroz Ed,, São Paulo, 2003, pp. 124-125]
Teu ensinamento de mulher:
a razão poética une cabeça e coração.
Grata o recebo de tuas mãos
de tua alma sábia
e feminina. Diotima de Mantinéia
precedeu-te no ágape socrático
e sabemos o que ensinou aos doutos
sobre o Amor. Abundância e penúria
o muito e o nada
o paradoxo.
Vi tuas imagens: a Menina bela e grave
a mulher fascinosa
a anciã de olhar desesperado
que de longe vinha - de alguma nebulosa
ou de uma estrela desfazendo-se no céu.
Principalmente guiavas os que partiam
para outros mundos e países sem nome
em teu veleiro de vidência.
MARIA ZAMBRANO II
Estrela do caminho
do alto guias. Vi tua face de Menina
como se já soubesses teu destino.
Vi teu rosto jovem
feito só de madrugada
estando a noite adormecida.
Que asa liga o rosa ao magenta
levando pólen pelas estradas
roçando pensamentos
enlaçando ao dom poético
um dom de dizer
quase impossível nas pautas do Ser?
A outros e a mim deixaste
sílabas sagradas
pedras roladas
no flanco dos rios.
Anjo e criatura
pura e impura
conheces infernos e alturas
de um céu mais íntimo e profundo
que as margens deste mundo.
No silêncio que habitas
pouso esta vida
sem deter-te a labareda:
brilho de ouro e seda.
[In Cartografia do Imaginário, T.A. Queiroz Ed,, São Paulo, 2003, pp. 124-125]
terça-feira, 8 de setembro de 2015
António Ramos Rosa
DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto
As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco
Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
[In O Poeta na rua, Quasi Edições]
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto
As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco
Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
[In O Poeta na rua, Quasi Edições]
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Stefan Zweig
Lágrimas inundam os olhos de Händel, tão violento o fervor se agita dentro dele. Folhas ainda tinham que ser lidas, a terceira parte do oratório. No entanto, após esse “Aleluia, Aleluia”, ele não pôde ir mais adiante. Esse júbilo o preencheu harmonicamente, dilatou-se e expandiu- se, doendo-lhe como fogo líquido que queria correr, sair. Ó, como isso comprimia e oprimia, pois ele queria escapar dele, ascender e retornar ao céu. Célere, Händel tomou a pena e escreveu notas, que se iam formando uma após outra com mágica pressa. Ele não podia parar e, como um navio cujas velas são impelidas pela tempestade, continuou a ser levado. Ao seu redor a noite estava silenciosa, a úmida escuridão jazia calada sobre a grande cidade. Contudo dele jorrava a luz e inauditamente o gabinete retumbava com a música do universo.
[Excerto do ensaio A RESSURREIÇÃO DE GEORG FRIEDRICH HÄNDEL, in Momentos Decisivos da Humanidade, tradução Álvaro Alfredo Bragança Júnior e Ingeborg Hartl, São Paulo, Record, 1999, p. 91]
[Excerto do ensaio A RESSURREIÇÃO DE GEORG FRIEDRICH HÄNDEL, in Momentos Decisivos da Humanidade, tradução Álvaro Alfredo Bragança Júnior e Ingeborg Hartl, São Paulo, Record, 1999, p. 91]
Fonte: Blog de Henrique Autran Dourado |
sábado, 5 de setembro de 2015
Affonso Romano de Sant´Anna
PALAVRAS QUE ATRAPALHAM E AJUDAM A VIVER
Vejam só: encalhar numa palavra. A pessoa lá vai no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra. Pode ser "marxismo", "Deus", "pai", "vanguarda", "revolução", "Paris", "aposentadoria". As palavras são paralisantes. O Brasil, por exemplo, no princípio do século estava encalhado na "febre amarela". Nos últimos anos reencalhou na "ditadura" e na "censura". Tem hora que encalha na "inflação". Agora encalhou no "desemprego". E está dificil desencalhar da "reforma agrária", da "corrupção" e do "subdesenvolvimento".
Os escritores, sobretudo, encalham muito nas palavras. João Cabral se referia a Graciliano Ramos como um homem "com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol". Joyce, com Ulisses e Finnegans wake encalhou titanicamente numa região cheia de palavrosos icebergs. Alguns poetas que conheço estão há cinqüenta anos engastalhados em palavras como "Pound, ideograma., morte do verso, Joyce, un coup de dés", e não há quem os demova.
Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim. É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar. É uma questão de alquimia verbal saber administrá-las. Aurélio Buarque de Hollanda, que dicionarizava rebanhos de palavras, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: "Nós temos que dar oportunidade às palavras". Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.
Em algumas culturas certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças. Mas em algumas narrativas certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: "esperança", amanhã", "utopia". Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.
Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo. Escritor, no entanto, não é aquele que acumula palavras obscuras num egoísta museu ou cofre de erudição, mas quem as troca na bela moeda da emoção.
Eis um bom exercício: tome um lápis e anote as palavras que paralisaram ou fizeram sua vida avançar. Palavras-coisas, palavras-pessoas. Sobre a vida e sobre as palavras há várias teorias, a escolher. Há quem diga que a vida tem que ser palavras em movimento, aquele work-in-progress de que falam os ingleses. Se você encontrar, vinte ou trinta anos depois, uma pessoa fazendo o mesmo discurso, tenha pena, desconfie, é sinal que a vida dela emperrou. (A menos que seja um discurso de amor).
Com as palavras a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com trator, só dinamitando. E o fato é que um simples "bom dia" ou "alô" pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da "cura pela fala", mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: "já passou o dodói, pronto".
Viver também é a arte de lidar com as palavras.
E como já disse alguém as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas.
[In Que presente te dar? Leya, 2013]
"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar
numa palavra e perder anos de vida?".
Clarice Lispector
Os escritores, sobretudo, encalham muito nas palavras. João Cabral se referia a Graciliano Ramos como um homem "com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol". Joyce, com Ulisses e Finnegans wake encalhou titanicamente numa região cheia de palavrosos icebergs. Alguns poetas que conheço estão há cinqüenta anos engastalhados em palavras como "Pound, ideograma., morte do verso, Joyce, un coup de dés", e não há quem os demova.
Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim. É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar. É uma questão de alquimia verbal saber administrá-las. Aurélio Buarque de Hollanda, que dicionarizava rebanhos de palavras, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: "Nós temos que dar oportunidade às palavras". Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.
Em algumas culturas certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças. Mas em algumas narrativas certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: "esperança", amanhã", "utopia". Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.
Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo. Escritor, no entanto, não é aquele que acumula palavras obscuras num egoísta museu ou cofre de erudição, mas quem as troca na bela moeda da emoção.
Eis um bom exercício: tome um lápis e anote as palavras que paralisaram ou fizeram sua vida avançar. Palavras-coisas, palavras-pessoas. Sobre a vida e sobre as palavras há várias teorias, a escolher. Há quem diga que a vida tem que ser palavras em movimento, aquele work-in-progress de que falam os ingleses. Se você encontrar, vinte ou trinta anos depois, uma pessoa fazendo o mesmo discurso, tenha pena, desconfie, é sinal que a vida dela emperrou. (A menos que seja um discurso de amor).
Com as palavras a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com trator, só dinamitando. E o fato é que um simples "bom dia" ou "alô" pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da "cura pela fala", mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: "já passou o dodói, pronto".
Viver também é a arte de lidar com as palavras.
E como já disse alguém as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas.
[In Que presente te dar? Leya, 2013]
sexta-feira, 4 de setembro de 2015
Renata Pallottini
ALGUMAS FANTASIAS SOBRE A MORTE
A memória de
Cacilda Becker
Alberto D’Aversa
Telcy Perez
I
FAÇO as inquirições de ser e morte e não respondo:
sou pouco para o largo desse campo.
Olho os verdes do templo e indago e não respondo.
Também as vozes que se alongam pela nave,
penso, não nos respondem. Se calamos
é por cansaço e sombra, é por temor da morte,
e grande irrespondida, a mais calada.
Faço o palpar do pulso e ainda não ouço,
meu saber dessas coisas tão pequeno.
Quem pode haver do coração a mágoa
surda, como os ruídos dentro d’água?
Se para o coração, caminha a morte.
Não há quem me responda de outra sorte.
II
Onde está quem não está? Onde, no ar,
está quem já se foi? No ar? Na relva?
Onde a semente está, há alguém? Alguém há sempre?
Onde estou eu estarei eu somente?
Onde estou eu, Amor está, semente.
Mas a quem já não está, Amor não salva.
Quem já não está jaz numa tabula de prata.
III
Uso palavras como pedras como beijos
meu amigo morreu
falando de esperança
Eu ensaio lutar olhando a rua
as árvores
o verde de suas folhas sobre o rio
O amigo era
de largo peito e profunda alegria
Olho a manhã com lágrimas nos olhos
as árvores depois as sementes
o amigo
Eu não bebi bastante o vinho de seu riso
não me lembro do gosto de sua pele
mas penso — porque não — construir-lhe um jazigo
onde ele sentado sobre a pedra
a sorrir convidasse os passantes a ouvi-lo
a ouvir o meu amigo...
As árvores
depois suas folhas
seus filhos
o amigo e seu perfil desdobrado no rio
vejo o barco e os reflexos
o amigo
morreu quando esperava ter chegado à vida
Eu uso versos como gritos
como espadas
Mas amava esse amigo
e não sabia nada.
[In Obra Poética, São Paulo, Hucitec, 1995, pp. 190-191].
A memória de
Cacilda Becker
Alberto D’Aversa
Telcy Perez
I
FAÇO as inquirições de ser e morte e não respondo:
sou pouco para o largo desse campo.
Olho os verdes do templo e indago e não respondo.
Também as vozes que se alongam pela nave,
penso, não nos respondem. Se calamos
é por cansaço e sombra, é por temor da morte,
e grande irrespondida, a mais calada.
Faço o palpar do pulso e ainda não ouço,
meu saber dessas coisas tão pequeno.
Quem pode haver do coração a mágoa
surda, como os ruídos dentro d’água?
Se para o coração, caminha a morte.
Não há quem me responda de outra sorte.
II
Onde está quem não está? Onde, no ar,
está quem já se foi? No ar? Na relva?
Onde a semente está, há alguém? Alguém há sempre?
Onde estou eu estarei eu somente?
Onde estou eu, Amor está, semente.
Mas a quem já não está, Amor não salva.
Quem já não está jaz numa tabula de prata.
III
Uso palavras como pedras como beijos
meu amigo morreu
falando de esperança
Eu ensaio lutar olhando a rua
as árvores
o verde de suas folhas sobre o rio
O amigo era
de largo peito e profunda alegria
Olho a manhã com lágrimas nos olhos
as árvores depois as sementes
o amigo
Eu não bebi bastante o vinho de seu riso
não me lembro do gosto de sua pele
mas penso — porque não — construir-lhe um jazigo
onde ele sentado sobre a pedra
a sorrir convidasse os passantes a ouvi-lo
a ouvir o meu amigo...
As árvores
depois suas folhas
seus filhos
o amigo e seu perfil desdobrado no rio
vejo o barco e os reflexos
o amigo
morreu quando esperava ter chegado à vida
Eu uso versos como gritos
como espadas
Mas amava esse amigo
e não sabia nada.
[In Obra Poética, São Paulo, Hucitec, 1995, pp. 190-191].
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