SÚPLICA
O mar levou o marinheiro para as suas profundezas –
A sua mãe, sem ainda o suspeitar, caminha e acende
uma vela, coloca-a aos pés da Virgem Maria
pede um regresso rápido; e bom tempo, e sempre,
sempre inclinando a cabeça ao soprar do vento
mas, enquanto ela reza e implora
o ícone escuta-a, solene e triste,
sabendo que o filho que ela espera não mais voltará.
(1898)
terça-feira, 30 de abril de 2013
segunda-feira, 29 de abril de 2013
Renata Pallottini
PORQUE VOU PARTIR
Porque vou partir
e posso adivinhar a amarga hora,
desejo que em ti floresçam as ternuras alheias,
que o teu amor, se o tiveres, seja grave,
e profundo o teu pranto inevitável.
Sei que a verdade está em ti que a arrancas da carne
e não hesitas nunca e te embriagas de sofrimento.
No entanto, nenhuma pessoa é mais triste,
nenhum homem errou tantas vezes a estrada,
ninguém morreu de tantas mortes.
Porque vou partir
e posso adivinhar a amarga hora,
digo-te adeus e nada mais te digo.
No entanto eu choraria como tu choraste,
nenhuma pessoa é hoje mais triste,
ninguém tão largamente errou no seu caminho.
Não houve quem morresse desta morte,
desta morte que ensinas,
reto caminho das águas,
exato comportamento do fruto
que cai no momento propício.
Volto hoje a estar sem ti
como antes de saber os profundos do abismo,
volto a desconhecer-me e a ser o estranho
de mim mesma.
E estarei para sempre de ti perdida.
Porque vou partir.
[In: Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 149]
Porque vou partir
e posso adivinhar a amarga hora,
desejo que em ti floresçam as ternuras alheias,
que o teu amor, se o tiveres, seja grave,
e profundo o teu pranto inevitável.
Sei que a verdade está em ti que a arrancas da carne
e não hesitas nunca e te embriagas de sofrimento.
No entanto, nenhuma pessoa é mais triste,
nenhum homem errou tantas vezes a estrada,
ninguém morreu de tantas mortes.
Porque vou partir
e posso adivinhar a amarga hora,
digo-te adeus e nada mais te digo.
No entanto eu choraria como tu choraste,
nenhuma pessoa é hoje mais triste,
ninguém tão largamente errou no seu caminho.
Não houve quem morresse desta morte,
desta morte que ensinas,
reto caminho das águas,
exato comportamento do fruto
que cai no momento propício.
Volto hoje a estar sem ti
como antes de saber os profundos do abismo,
volto a desconhecer-me e a ser o estranho
de mim mesma.
E estarei para sempre de ti perdida.
Porque vou partir.
[In: Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 149]
domingo, 28 de abril de 2013
Cristina Campo
... Chartres, mas desta vez
com tuas estátuas feridas,
atravessadas pela fria idade dos nossos pecados distantes,
Chartres sem sinos,
sem raparigas em júbilo sob as tílias
(então eu desejava, de pura alegria, morrer)
Chartres algemada de corvos e ventos do norte
como penhasco no mar,
único raio cruel a ferir
o rosto em lágrimas de um teu pastor —
choveu tempo e sangue sobre ti, catedral
sobre tua pedra serena
como casca — inclusive o Anjo — Meridiana
e o dia escuro como grandes rodas paradas,
o vazio volume de teus arcos,
ao vento leste que escorre lama...
Ó meu jacinto de folhas verdes
a planície esfumada do pranto.
Junho ’52-Setembro ’54
[Cristina Campo, O Passo do Adeus, tr. José Tolentino Mendonça, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2002, p. 49].
Annie Bagot |
sábado, 27 de abril de 2013
Carlos Drummond de Andrade
TARDE DE MAIO
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêncios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh´alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.
quando, ao rubor dos incêncios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh´alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.
Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência de resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nunca houve testemunha.
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência de resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nunca houve testemunha.
Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
[In CLARO ENIGMA, In Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, pp. 215-216].
TARDE DE MAIO EM BH |
sexta-feira, 26 de abril de 2013
Isabel Mendes Ferreira
Amadeo de Souza-Cardoso |
decidi que morro hoje que é dezembro e morro não como as árvores que gráficas sustentam o céu. morro para dentro de um movimento desagregatório onde o eu e o tu são cumes altíssimos ensombrados de visitas tardias. nada de diferente nem sequer a diferença no seu alargar de sinais. são as sombras. elas sempre. elas muralhas imateriais resplandecentes de negrume como sangue oleoso. desço a mais interna das palavras e subo ao regaço do sono. lenta.lentamente. sem permutas frásicas nem ombro a ombro com o sempre dito e perseguido. as ilhas são de chumbo. o chumbo é frio. o processo de liquidação do sonho é como um animal ferido mas sangrante até à batalha final. e mesmo que o sol volte a ser autentico nunca mais serei outra. senão esta morte dezembrina do entendimento da solidão.
e de que adianta saber o caminho se este já não é senão a sombra. o declínio. o tão avulso ser debaixo das cinzas....
sempre que o chão se move movem-se as raízes da terra de ninguém. pecúlio e peculiar destino do além fora das assimetrias. antecipação do género e do fogo. decifrado o êthos como olho de vulcão a acontecer em regiões de enclaves ontológicos onde tu és casa e eu apenas cave. submersa. líquida e quase aprumática na distância que nunca foi amplexo. por graça ou destino divino escolhi um caminho paralelo. sem angelismos nem alvos autocomplacentes. sem mistérios nem signos fulgurantes. apenas o invisível como ária que não me sendo própria me veste a nuca de arrepios. e de um certo bucólico sentimento de perda.
é assim que sou chave e núcleo. mesmo que fragmentada ou vária ou apenas fio.
sempre que o chão se abre só resiste a contaminação das coincidências. a alma é uma forma romântica de ser-se único por um momento. e neste culto de ligações te afogo. de afagos. porque o dificil já foi dito e lá fora o que se move é só a ironia dos embaciamentos.
o enredo perdeu o drama. e este passou a comédia.a tragicidade já não dilacera.
resta a geografia do caminho infinitesimal.
******
há sempre uma hora em que falamos para o céu. e outra em que descemos ao impreciso como se uma nave carregada de lírios nos fosse o deliro de Esmirna ou o lenço da fluidez às portas do rio que purifica o silêncio. há sempre uma hora de Borges e outra de insaciáveis serpentes. és a minha pátria. explosiva rendição de uma linhagem de sal suor e joelhos macerados de terços em vão. há esta hora mínima a encher o tempo pisado de farpas e de régios adeuses. como se mais nada a violência fosse.
(tempo é renda______________________________)
******
andam lobas esfaimadas borboletas iguanas falas frases tudo numa rútila excepção na baínha de uma verdade que nunca chega a ser. andam e bastardamente matam. o alvo. em arco. sem flechas. com beijos . substâncias ardentes ardilosas cuspidas a fogo lambidas a lodo. em luto permanente. passadeira de lírios brancos com sangue.
******
curvo-me aos teus pés em dois tempos narrantes e submeto-me à permanência telúrica das tuas pedras como um coração circular e sem estratégia. ergo-me deste chão como de um ventre sibilino onde tudo é raiz e o pouco não se demora. são terços de urze punhos de xisto quente rosário da memória fonte de todas as rondas e de todas as estevas. sou mais deste seio imenso que das estradas ou margens. é um pulo e uma garganta em chama uma lua que esmaga o diabo e faz do ar um pronome brilhante. regresso-te como se ao rio faltasse esta foz_____________________onde me corporizo em pedra solar. como tu terra sempre renascente. a caminho do maior heterónimo do silêncio. curvo-me à beira de ti para melhor me ser mais perto e maior. errante e peregrina de toda a linguagem.
******
no imperfeito ar em que se respira também se morre vestido de pó. essa nudez alva como uma cidade sem corpo e um corpo sem país. sinais irradiantes de uma perplexidade caótica e encapelada de fogo como música ou de música como dedos separados das mãos. anoitecemos como pinhais.
******
____________________disse te um dia que as palavras amarradas ao osso seriam silêncio ruidosamente insuportável se operáticas e nervosas te fossem tóxicas. ebúrneas e vertiginosas miseráveis e espectrais emprestadas a prazo mordidas e esposas do fel te seriam a anca ou apenas um guindaste de lama. sorriste. e desse sorriso nasceram flores como oxigénio. hoje o linho faz-se mosto e ao longe o discurso é mais frontal. este país de sal é uma pose. e tu repousas. como um hífen de orquídeas.é tão nu o momento.
******
andam lobas esfaimadas borboletas iguanas falas frases tudo numa rútila excepção na baínha de uma verdade que nunca chega a ser. andam e bastardamente matam. o alvo. em arco. sem flechas. com beijos . substâncias ardentes ardilosas cuspidas a fogo lambidas a lodo. em luto permanente. passadeira de lírios brancos com sangue.
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Isabel Mendes Ferreira, escritora, poetisa e pintora, natural do Montijo, editou o seu primeiro livro de poesia em 1982: "Sobre as Ervas um corpo de Junho". No ano seguinte edita na Bertrand "Um Nocturno de Bach e um Relâmpago no Olhar", segue-se “Um Corpo (sub) Exposto” na Imprensa Nacional, sendo 1984 o ano de edição do livro de contos "A Mais Loura de Lisboa". Em 1990 volta à poesia com "A Pele" na Presença, “Ponto Final” na Átrium, “Cantochão” e “Vermelho Doce” na Produce e entra em duas antologias. Em 2010, regressa com "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar" da Babel, com chancela da Arcádia. Foi cronista no "O Jornal", no "Diário de Notícias", no “Diário de Lisboa" e nas revistas "Guia", "Activa" e "Tomorrow" e ainda Copy Writer nas Agências de Publicidade, Sistema, Ogilvy, Cinevoz, Boom and Bates, entre outras.
Fonte: vozdecelenia.blogs.sapo.pt
quinta-feira, 25 de abril de 2013
Lélia Coelho Frota
SALA CECÍLIA MEIRELES
Cecília,
tua casa agora é uma ilha
frente ao jardim antigo. Obeliscos
próximos perfeitamente te guardam
e anunciam, entre a família das árvores,
tua pureza solitária, a erguer-se em cal.
Cecília,
tua casa agora é navio
de argamassa e alvenaria
branco e azul, musical.
Cecilia
de sete jardins
suspensos
habita agora a escala
absorta
dos sons a que se move seu navio.
Navio de grande calado
êle singra a Lapa, feudal,
e a figura de proa, sabemos
invisível, deixa estendal
de finos gestos, formosuras,
olhares claros, refloridas
frases de leve doutorado
a exercer visões profundas
sob uma graça oriental.
Cecília, entre lótus,
Meireles,
frontispício de dois acordes
é a ideal anfitriã
que venturosa propicia
ao visitante uma precisa
música, um retrato
trágico ou risonho, máscara
trágico ou risonho, máscara
oportuna a animar-se entre
as quatro palavras mágicas
de sua sala de visitas.
Cecília, Cecília, padroeira
de teu navio sensitivo
por largos mais amplos que esse
por largos mais amplos que esse
de tua casa transitiva
vem buscar-nos, singra conosco
rumo àquele ditoso país
de cordilheiras e murmúrios
que já habitavas à distância
por um espelho de suspiros
e ausência — lá onde o tempo
era redondo e o pensamento
um acidente feliz.
Visita teus visitantes
com os ares da tua graça,
com jeito de quem não quis
sobrevoa-nos pela Praça
Paris, ó maga de fugas
precipita-nos pelo teu mar absoluto
adentro,
intransigente Cecília sem luto,
a proferir na alvura,
alta (poesia)
a indestrutível palavra cintilume.
[In: Poesia Lembrada, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1971, pp. 159-160].
quarta-feira, 24 de abril de 2013
Mariana Ianelli
O Abutre-do-novo-mundo
Mariana Ianelli
Há pessoas que não foram totalmente corrompidas, como se o diabo
não tivesse feito o serviço completo. Elas conservam as mãos limpas em
troca de um esgar epilético e ninguém neste mundo seria capaz de
julgá-las no lugar do seu próprio corpo de vítima e réu. Eu, por
exemplo, cumpro a parte que me cabe no desempenho dos meus talentos e
não me queixo. A minha pontaria me deu o que de melhor eu tenho: um bom
apartamento, boas refeições e um sono tranquilo. Por regra do ofício,
minhas mãos nunca estão limpas. Quanto pesa a consciência? Nada,
absolutamente. Para mim, mais vale não ter senso moral do que ter algum.
Eu sigo o rabo de fogo do acaso e tudo o que preciso é ver sem ser
visto. Chamam-me o Abutre-do-novo-mundo, o que eu considero, modéstia à parte, um dos títulos mais respeitáveis na hierarquia do crime.
`
Outubro, quinta-feira, nove e meia da manhã: passo em frente ao 102
e meu alvo acaba de cruzar a rua para entrar no café da esquina. Desde
que comecei o trabalho, todo dia eu o vejo praticar maquinalmente a
mesma rotina, os mesmos prazeres inofensivos. Não sei por que razão o
infeliz me foi encomendado, ou melhor, isso não me interessa. Quero
descobri-lo por minha conta, no relatório subliminar das repetições de
circuito, da casa para o café, do café para o escritório, do escritório
para a cantina, da cantina para casa, ad infinitum.
Cada qual há de ter seus motivos para morrer ou agarrar a vida e
são esses motivos íntimos que me interessam, insondáveis quase sempre,
que não se explicam nem se substantivam nos casos de adultério, nas
dívidas empresariais ou nas intrincadas jogadas políticas. Mesmo no
cotidiano mais desordenado existirá sempre algo que se repete, alguma
triste mania na qual o homem se enraíza, uma cadeira predileta no fundo
de um bar, aos domingos, uma avenida, uma tabacaria, uma prostituta
preferida. Nessas escolhas viciadas, a chave que tranca um miserável em
seu cubículo dá mais uma volta sobre si mesma e mais outra e mais outra
ainda. Só assim, pelo que sei, emparedado dentro dos seus limites, é que
o homem se vê convocado a ir além, para alcançar o céu ou o abismo.
Quanto ao meu pobre alvo, que nesse momento folheia o jornal do dia,
ignorante de que amanhã ele será a notícia, os seus limites só poderiam
levá-lo ao fundo do abismo, afinal, para onde mais pode ir um sujeito
que veste uma gravata estampada às nove e meia da manhã de uma
quinta-feira e que põe as mãos na cintura enquanto espera o seu cappuccino?
O coitado me faz pena, esperando como se estivesse vivo. Primeiro
quadrante, segundo quadrante, centro. Hora de riscá-lo da lista. Digamos
que por causa dessa gravata ridícula.
terça-feira, 23 de abril de 2013
Luís Costa
Sou uma violação fabulosa. a morte na minha mãe ainda viva.
um exilado. órfão. suspeito. um caçador entre os mortos.
e mastigando dessa fertilidade, deambulo, florido, por ruas
obscuras.
as árvores como incudes. uma revolução de eras
subindo pelas estátuas. e dentro, o meu grito, cuneiforme,
febril, arremessando navalhas.
ah! ouço-me. repartido. ah! ouço-me. inteiro.
ouço-me, regressando à pia baptismal. àquela hora em que
o medo era branco, branco como as nódoas mais brancas.
ah ! o medo. a glória do medo. e os olhos vazios, súbitos,
abrindo-se, azuis,
como os filhos mais amados de uma raça nobre,
mas barbárica.
e ao alto, a mão do padre, a mão fina, mas furiosa, ordenando:
ergue-te e anda! ergue-te e anda!
e assim me ergui dos mortos, e no rosto enrugado da minha avó
reconheci um sol, a sombra mais velha do sol.
In: Topografia abissal
Fonte: https://www.facebook.com/groups/221722414629884/
um exilado. órfão. suspeito. um caçador entre os mortos.
e mastigando dessa fertilidade, deambulo, florido, por ruas
obscuras.
as árvores como incudes. uma revolução de eras
subindo pelas estátuas. e dentro, o meu grito, cuneiforme,
febril, arremessando navalhas.
ah! ouço-me. repartido. ah! ouço-me. inteiro.
ouço-me, regressando à pia baptismal. àquela hora em que
o medo era branco, branco como as nódoas mais brancas.
ah ! o medo. a glória do medo. e os olhos vazios, súbitos,
abrindo-se, azuis,
como os filhos mais amados de uma raça nobre,
mas barbárica.
e ao alto, a mão do padre, a mão fina, mas furiosa, ordenando:
ergue-te e anda! ergue-te e anda!
e assim me ergui dos mortos, e no rosto enrugado da minha avó
reconheci um sol, a sombra mais velha do sol.
In: Topografia abissal
Fonte: https://www.facebook.com/groups/221722414629884/
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Luís Miguel Nava
O TÍMPANO E A PUPILA
Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora
que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora
que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,
mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.
Vulcão I, Poesia Completa 1979-1994, Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Organização e Posfácio de Gastão Cruz, Publicações D. Quixote, 2002
Sobre o poeta
Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora
que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora
que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,
mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.
Vulcão I, Poesia Completa 1979-1994, Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Organização e Posfácio de Gastão Cruz, Publicações D. Quixote, 2002
Sobre o poeta
domingo, 21 de abril de 2013
Maurice Blanchot
Fragmentos de A Escritura do Desastre, de Maurice Blanchot
O nome desconhecido, fora de nominação: O holocausto, evento absoluto da história, historicamente datado, essa queima-total onde toda a história se abrasou, onde o movimento do Sentido se abismou, onde o dom, sem perdão, sem consentimento, se arruinou sem dar lugar a nada que possa se afirmar, se negar, dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se doar. Como guardá-lo, mesmo que seja no pensamento, como fazer do pensamento aquilo que guardaria o holocausto onde tudo se perdeu, inclusive o pensamento guardião? Na intensidade mortal, o silêncio fugindo do grito inumerável.
No trabalho do luto, não é a dor que trabalha: ela vela.
A palavra, quase privada de sentido, é ruidosa. O sentido é silêncio limitado (a palavra é relativamente silenciosa, na medida em que ela porta aquilo em quê ela se ausenta, o sentido já ausente pendendo para o assêmico).
Que aquilo que se escreve ressoe no silêncio, fazendo-o ressoar por muito tempo, antes de retornar à paz imóvel onde vela ainda o enigma.
Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar sobreviver, mas por um suicídio perpétuo – morte total enquanto fragmentária.
Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro – outrem, leitor – que não terá doravante por dever e por vida senão a inexistência
de vocês.
Aprende a pensar com dor.
A palavra escrita; não vivemos mais nela, não que ela anuncie: «ontem foi o fim», mas ela é nosso desacordo, o dom da palavra precária.
Partilhemos a eternidade para torná-la transitória.
Aquilo que resta para dizer.
Solidão que irradia, vazio do céu, morte diferida: desastre.
[In Suplemento Literário de Minas Gerais, maio-junho/2010]
Tradutor: Eclair Antonio Almeida Filho
O nome desconhecido, fora de nominação: O holocausto, evento absoluto da história, historicamente datado, essa queima-total onde toda a história se abrasou, onde o movimento do Sentido se abismou, onde o dom, sem perdão, sem consentimento, se arruinou sem dar lugar a nada que possa se afirmar, se negar, dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se doar. Como guardá-lo, mesmo que seja no pensamento, como fazer do pensamento aquilo que guardaria o holocausto onde tudo se perdeu, inclusive o pensamento guardião? Na intensidade mortal, o silêncio fugindo do grito inumerável.
No trabalho do luto, não é a dor que trabalha: ela vela.
A palavra, quase privada de sentido, é ruidosa. O sentido é silêncio limitado (a palavra é relativamente silenciosa, na medida em que ela porta aquilo em quê ela se ausenta, o sentido já ausente pendendo para o assêmico).
Que aquilo que se escreve ressoe no silêncio, fazendo-o ressoar por muito tempo, antes de retornar à paz imóvel onde vela ainda o enigma.
Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar sobreviver, mas por um suicídio perpétuo – morte total enquanto fragmentária.
Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro – outrem, leitor – que não terá doravante por dever e por vida senão a inexistência
de vocês.
Aprende a pensar com dor.
A palavra escrita; não vivemos mais nela, não que ela anuncie: «ontem foi o fim», mas ela é nosso desacordo, o dom da palavra precária.
Partilhemos a eternidade para torná-la transitória.
Aquilo que resta para dizer.
Solidão que irradia, vazio do céu, morte diferida: desastre.
[In Suplemento Literário de Minas Gerais, maio-junho/2010]
Tradutor: Eclair Antonio Almeida Filho
Marlon Tenório |
sábado, 20 de abril de 2013
Marize Castro
POEMA HAVERÁ?
haverá homem que não seja colina?
mulher que não seja nuvem?
criança que não seja milagre?
... o que o naufrágio fez com eles?
... deu-lhes fogo para ficarem belos?
asas para romperem céus?
barbatanas para voos oblíquos?
eu que ainda moro ao lado do mar
e me perfumo para abrir livros
deito entre aves e oro:
que a onda do amor
não adoeça
nenhum caminhante
encontre laços
nenhum rio
estacione.
Fonte: Tribuna do Norte
haverá homem que não seja colina?
mulher que não seja nuvem?
criança que não seja milagre?
... o que o naufrágio fez com eles?
... deu-lhes fogo para ficarem belos?
asas para romperem céus?
barbatanas para voos oblíquos?
eu que ainda moro ao lado do mar
e me perfumo para abrir livros
deito entre aves e oro:
que a onda do amor
não adoeça
nenhum caminhante
encontre laços
nenhum rio
estacione.
Fonte: Tribuna do Norte
sexta-feira, 19 de abril de 2013
E. E. Cummings
SONETOS / IRREALIDADES XI
pode não ser sempre assim – digo: e se
seus lábios que tanto amo tocarem
outros lábios
e seus dedos tão queridos
forte comprimirem outro coração
– como o meu, num tempo não distante
se a pele de outro rosto, macios seus pelos
roçarem
num silêncio que bem sei ou
ao som de palavras contorcidas
– em voltas, volutas, rodopios –
desamparadas à face do mar
se assim for – digo: se
assim for – amor,
conta-me em breves palavras
que voarei até ele
para – mãos dadas – dizer:
aceita toda esta alegria
que te dou
e voltando meu rosto hei de ouvir
um canto
de pássaro na distância
infinita das terras perdidas
Tradução: Johnatan Lira
JOHNATAN LIRA é tradutor e intérprete. Já traduziu, para revistas e jornais, poemas
de Robert Creeley, John Ashbery, W.H. Auden, entre outros escritores de língua
inglesa.
In: Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, março de 2009, p. 11
Autorretrato |
seus lábios que tanto amo tocarem
outros lábios
e seus dedos tão queridos
forte comprimirem outro coração
– como o meu, num tempo não distante
se a pele de outro rosto, macios seus pelos
roçarem
num silêncio que bem sei ou
ao som de palavras contorcidas
– em voltas, volutas, rodopios –
desamparadas à face do mar
se assim for – digo: se
assim for – amor,
conta-me em breves palavras
que voarei até ele
para – mãos dadas – dizer:
aceita toda esta alegria
que te dou
e voltando meu rosto hei de ouvir
um canto
de pássaro na distância
infinita das terras perdidas
Tradução: Johnatan Lira
JOHNATAN LIRA é tradutor e intérprete. Já traduziu, para revistas e jornais, poemas
de Robert Creeley, John Ashbery, W.H. Auden, entre outros escritores de língua
inglesa.
In: Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, março de 2009, p. 11
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Agustina Bessa-Luís
EXCERTO DO ROMANCE "A SIBILA"
I
– Há uma data na varanda nesta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.
– Há uma data na varanda nesta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.
– Uma espécie de aristocracia ab imo. – E Bernardo riu-se, cheio de uma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda – «Ab imo, da terra», pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia senão o grau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação – pensava Germana – chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heróica e magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que, com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana, sua prima, era por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se activamente numa velha rocking-chair que, a cada impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina – pensou. E, absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada e varrida de cinza.
– Você que diz, Germa? – perguntou Bernardo. Perscrutava-a com uma curiosidade passageira, um tanto mortificado porque alguma coisa que não ele próprio o obrigava a inquietar-se. Como ela o fitasse apenas, sorridente e sem lhe falar, achou mais cómodo sentir-se ali o hóspede venerável, e tomar aquele silêncio ainda como uma cortesia. Mas, na verdade, Germa nem sequer pensava nele. Suspeitar isto – ele sabia – seria o bastante para que Bernardo não voltasse mais e estabelecesse no fundo da sua alma permanente disposição de vingança. Preferiu, portanto, ignorar que Germa estava nesse momento totalmente desligada e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, de tecto baixo, onde pairava um cheiro de pragana e de maçã, se enchia duma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação. E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.
A Sibila, 24ª. ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2002
Fonte: http://www.dglb.pt
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Herberto Helder
As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus -
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.
Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São fehadas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias rutilantes, a graça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga -
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.
In A faca não corta o fogo
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus -
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.
Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São fehadas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias rutilantes, a graça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga -
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.
In A faca não corta o fogo
terça-feira, 16 de abril de 2013
T. S. Eliot
A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK
X
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E . . “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas! “)
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
- Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
- Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela
debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
servida numa travessa,
Não sou profeta – mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos . . .
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
Tradução: Ivan Junqueira
Copiado de http://mscamp.wordpress.com/
X
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E . . “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas! “)
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
- Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
- Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela
debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
servida numa travessa,
Não sou profeta – mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos . . .
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
Tradução: Ivan Junqueira
Copiado de http://mscamp.wordpress.com/
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Sándor Márai
Pode ser que ele nos respeitasse e que, na verdade, gostasse de nós. Entretanto nem a mãe nem eu o compreendemos. Foi esse o fracasso das nossas vidas.
Gwen John |
Você diz que para o amor não é preciso nem é possível haver "compreensão”? Está enganada, querida. Eu também dizia isso, durante muito tempo gritei essa resposta e essa acusação para os céus. O amor, ou ele existe ou não existe. O que há para “compreender” nisso?... De que vale o sentimento humano que tem por trás uma intenção, uma consciência?... Escute, quando a gente envelhece, descobre que tudo é diferente, é preciso “compreender” tudo, é preciso aprender tudo, também sobre o amor. Sim, não balance a cabeça, não sorria. Somos humanos, e tudo nos atinge por meio da nossa compreensão. Os sentimentos e impulsos se tornam toleráveis por meio da compreensão; de outro modo seriam insuportáveis. Não basta amar.
Bem, não vamos discutir por esse motivo. Sei o que sei. Paguei bem caro por isso. Quê?... Com a vida, com a vida toda. Com o fato de que estou aqui sentada com você nesta confeitaria, no salão vermelho, e meu marido manda que embrulhem laranja cristalizada para outra. Não me surpreende por outro lado que ele leve laranja cristalizada para casa. Ele tinha um gosto assim vulgar em tudo.
Para quem?... Para a outra mulher. Não gosto de dizer o nome dela. Para aquela com quem ele se casou depois. Não sabia que ele se casou?... Pensei que a notícia tivesse chegado a Boston, a vocês, nos Estados Unidos. Você vê, somos assim estúpidos. Somos capazes de acreditar que as questões pessoais, as verdadeiras, são acontecimentos mundiais. Quando tudo ocorreu, a separação, o novo casamento do meu marido, aconteciam coisas grandes no mundo, países eram desmembrados, preparava-se uma guerra, até que um dia a guerra se concretizou... Não foi surpresa, Lázár também disse que as coisas para as quais as pessoas se preparam durante muito tempo, com muita determinação, empenho, planejamento e prudência — por exemplo, a guerra —, por fim acontecem. Mas não me teria surpreendido se naqueles dias os jornais, na primeira página, em letras maiúsculas, noticiassem a minha guerra, as minhas batalhas, as minhas derrotas, as vitórias eventuais, e, de um modo geral, as linhas de frente que constituíam a minha vida... Mas isso é outra história. Quando o bebê nasceu, estávamos longe disso.
In: DE VERDADE, Companhia das Letras: São Paulo, 2008, pp. 33-34.
domingo, 14 de abril de 2013
Marina Tsvétaïeva
Eu não penso, não me queixo, nem discuto,
nem durmo.
Não desejo nem sol, nem lua, nem mar,
nem barco.
Não penso no calor que faz entre estas
paredes,
nem como o jardim está verde;
e esse presente, que tanto desejei,
já não o espero.
Não me anima nem a manhã, nem o eléctrico
o seu tilintar alegre,
vivo sem ver o dia, esquecendo-me, do tempo,
o ano e a hora.
Sobre uma corda estragada,
eu danço – pobre dançarina.
sou a sombra de uma sombra. Sou lunar
de duas sombrias luas.
In E cantou como canta a tempestade
tradução: António Mega Ferreira, Assírio e Alvim, 2007
Sobre Marina Tsvétaïeva
nem durmo.
Não desejo nem sol, nem lua, nem mar,
nem barco.
Não penso no calor que faz entre estas
paredes,
nem como o jardim está verde;
e esse presente, que tanto desejei,
já não o espero.
Não me anima nem a manhã, nem o eléctrico
o seu tilintar alegre,
vivo sem ver o dia, esquecendo-me, do tempo,
o ano e a hora.
Sobre uma corda estragada,
eu danço – pobre dançarina.
sou a sombra de uma sombra. Sou lunar
de duas sombrias luas.
In E cantou como canta a tempestade
tradução: António Mega Ferreira, Assírio e Alvim, 2007
Sobre Marina Tsvétaïeva
sábado, 13 de abril de 2013
Luís Miguel Nava
Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.
Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,
aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.
Vulcão, Lisboa, Quetzal, 1994, p.17
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acariciá-los
ainda uma vez mais. Fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
Poemas. Porto, Limiar, 1987, p.33.
As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.
Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.
Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.
O Céu Sob as Entranhas, Porto, Limiar,1989, p.53
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.
Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,
aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.
Vulcão, Lisboa, Quetzal, 1994, p.17
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acariciá-los
ainda uma vez mais. Fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
Poemas. Porto, Limiar, 1987, p.33.
As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.
Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.
Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.
O Céu Sob as Entranhas, Porto, Limiar,1989, p.53
sexta-feira, 12 de abril de 2013
Campos de Carvalho
Fragmento de "A Chuva Imóvel"
Há quanto tempo estou vagando neste mar, neste deserto — neste abismo? Há quantas noites?
Há quanto tempo estou vagando neste mar, neste deserto — neste abismo? Há quantas noites?
Ainda estão comigo a minha carne e os meus ossos, esteja
onde estiver ainda é em mim que eu estou viajando, assim parado mas girando com
a Terra e o seu eixo, com estas águas e o seu silêncio: com este frio que só
pode vir de um corpo imóvel ou projetado no infinito.
Já me parece ouvir sob os pés algo de estranho, os meus
dois pés e não os de outro: assim como uma música feita de areia, como quando
eu pisava a praia ainda que em pensamento, exatamente esta sensação de música
nos pés. Posso estar suspenso — a corda! —
mas toco com os pés
essa areia da infância, assim e cada vez mais nítida, penetrando-me mais do que
a penetro, sem que eu faça o mínimo esforço ou movimento. Que é um chão de
areia eu não tenho dúvida, irreal ou real, eu suspenso da corda ou apenas meu
pensamento, e esta lucidez que me põe tranquilo e ao mesmo tempo em espanto:
embora ainda calmo, muito mais calmo do que antes — terrivelmente calmo.
Destes pés é que me virá a revelação, qualquer que seja, e
não do meu fígado nem dos intestinos, nem das minhas mãos que nem sei onde
estão —: dos meus pés! Sinto, pressinto, algo tão silencioso e frio quanto eu
mesmo, como se fosse apenas uma continuação do meu corpo mas não sendo: MAS NÃO É — um outro mundo que bem pode ser o meu mas também um mundo
novo, completamente diferente, e que estou pisando pela primeira vez. Tocam-me
não as águas mas a areia que há no fundo dessas águas, a AREIA — e já lhe posso até adivinhar a cor só pelo tato:
vermelho, vermelha — como fazia em criança quando pegava alguma coisa no
escuro. — Fofo e vermelho.
Daqui sairei eu e vivo, tenho certeza, apesar do frio e
deste peso quase insuportável que suporto sobre os ombros, como se suportasse
todo o peso do mundo. Valeu-me ao menos para isso a minha experiência de
afogado, a minha inexperiência — e sobretudo o que me ficou da calma do irmão
em cima e fora da sua bicicleta, o irmão, respirando e andando comigo desde que
o enterraram dentro de mim. — E possível que este seja o seu mundo e ele me
tenha arrastado até aqui, preso a essa corda que eu comprei e armei julgando
ser minha: a corda justamente que se atira ao afogado para que não se afogue,
não se afobe — assim como eu ainda há pouco, antes de atingir esta praia.
In A Chuva Imóvel, In Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., pp. 277-278.
In A Chuva Imóvel, In Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., pp. 277-278.
quinta-feira, 11 de abril de 2013
Murilo Mendes
Mariana Alcoforado
A Isabel da Nóbrega
Transcurso o subsistente enigma crítico. Existiu Soror Mariana Alcoforado, existiu o (intolerável?) capitão de cavalaria Noel de Chamilly; forjadas ou não, alteradas ou não por algum esperto literato, existiam até hoje, ignoro se até sempre, as cartas.
Na verdade, para muitos europeus que talvez desconhecessem, mesmo de nome, Os Lusíadas, o vinho do Porto e o — gêmeo — da Madeira, Portugal afigura-se um país resultante destas cartas; descoberto, sem que ela o soubesse, por Mariana Alcoforado.
Um comentário pessoal em torno deste nome não tem nenhuma relação com a história ou a crítica; mencionando-o, adoto o regime da confidência; pretendo apenas dialogar com o possível leitor.
Direi pois: Mariana é um nome da minha adesão. Reúne duas grandes senhoras bíblicas, Maria e Ana; alude também à poetisa Marianne Moore que
semprevoando-se, trata com lucidez e ciência da linguagem os objetos; atenta à
ideia do limite.
Alcoforado:
nome singular, simétrico, porque composto de cinco sílabas de duas letras cada
uma. A raiz “al” será relativa à origem mourisca da palavra? O fato é que o
Alentejo, onde vivia Mariana, sofreu influência dessa cultura.
Ninguém
ignora qua as cartas tocaram escritores consideráveis: Racine, Saint-Simon,
Rousseau, Stendhal, Rilke e muilos outros. Deram a deixa a Elizabetl Barrctt
Browning para o tema dos Sonnets from the Portuguese. Segundo Rilke, teriam sido escritas por mão de sibila;
personagem futurível que sempre me despertou terror e fàscino.
Difícil
determinar se esta freira é pagã ou cristã; mesmo porque talvez nenhum
teólogo-geógrafo conheça as fronteiras entre paganismo e cristianismo; sendo
também absurdo rotular os pagãos de a-religiosos. Quanto ao cristianismo: vasto
demais para se poder entendê-lo claramente.
De
qualquer modo Mariana experimenta na carne e no espírito a fúria amorosa,
palavra banal, mas que funciona. (No momento não disponho de nenhuma
metáfora-arquétipo.) Aplicarei portanto a Mariana a etiqueta “cristopagã”, sem
insinuar que ela seria cristã pelo espírito e pagã pela carne. A doutrina
católica declara-os intimamente unidos; além disto recomenda com insistência o
amor carnal que não deve se limitar ao prazer momentâneo, mas acudir à
perpetuação da espécie; Santo Agostinho e Santo Tomás dixerunt; logo, exclui-se a pílula. Discordo
deste último ponto: e como Paulo VI jamais lerá este livro, driblo a censura,
continuando, mesmo de binóculo, a entrevê-lo, debruçado à sua janela parda, ou
inserido na sédia gestatória, móvel felizmente já quase bissexto. Em quanto à
terra, superpovoando-se, ameaça explodir à força de complexos problemas, e
irresponde aos seus mútiplos apelos de paz universal.
Considerável,
nas cartas, a prioridade atribuída ao tema do amor-paixão, tratado em modo
raro, fora dos esquemas estilísticos então vigentes na Península Ibérica; sem
metáforas nem afetações cultistas. Segundo se escreveu, temos aqui a
anatomia do amor português levado à saturação; mas, o que é
incomum em Portugal, sem mancha de sentimentalismo ou excessos de “meiguice”,
ausente o diminutivo; nem atenção ao cenário e à natureza física. Com alguma
coisa da precedente Teresa de Ávila e o preanúncio do ímpeto de Mathilde de la
Mole.
Nessa
fúria amorosa todas as probabilidades se afirmam dentro da contradição, se
combinam e se destroem. Mariana sabe que não tem saída; nisto reside seu
caráter patético, exposto literalmente com vigor e audácia.
Seus
limites determinam-lhe a faixa da grandeza. É terrestre: “Já não quero honra
nem religião senão para amar-te perdidamente a vida inteira.” Inicia- se um
diálogo-monólogo: “Escrevo mais para mim do que para ti.” Ama o próprio texto:
“Custa-me mais a deixar esta carta do que a ti custou a deixar-me talvez para
sempre”; “Então este desespero só é verdadeiro nas minhas cartas?"
Consciente da sua abjeção (quem sabe seria masoquista), quer exorcizá-la: “Em
certos momentos parece-me que era capaz de levar a minha sujeição até servir
aquela que amas”. E seu impudor: igual ao seu pudor.
Esta
freira reversível, constrangida a trazer um véu preto em vez dum véu vermelho
disfarçando espada, pressente, antes de Baudelaire e Michel Leiris, o amor
como forma de tauromaquia. Meduséia talvez, mas não tele- meduséia; pelo que o
amante, já agora reinstalado na França, pode escapar à sua fúria.
Como
seria, fisicamente falando, a palavra Marina Alcoforado? Conservo para mim a
trama do seu retrato; a atenção que dedico ao leitor não vai até o ponto de
desvendá-la. Na época do julgamento universal (dogma que espaventava Quevedo)
saberei se esse retrato discrepa ou não do original; também tu, leitor amigo,
o saberás; além de, naturalmente, muitas outras coisas.
[In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 1421-1423].
[In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 1421-1423].
Sophia de Mello Breyner Andresen
COM FÚRIA E RAIVA
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Junho de 1974
[In O Nome das Coisas, in OBRA POÉTICA, Alfragide, Caminho, 2011, pp. 524-525].
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Junho de 1974
[In O Nome das Coisas, in OBRA POÉTICA, Alfragide, Caminho, 2011, pp. 524-525].
Amadeu de Souza-Cardoso |
quarta-feira, 10 de abril de 2013
Marly de Oliveira
XIX
A morte é meu espanto cotidiano.
Por isso não entendo que a chames
irmã, como à água, à lua,
a tudo o que é vivo e floresce,
a tudo o que é vivo e mata para viver ainda,
como o animal mais terno,
o mais empedernido.
Teu Cântico do Sol é uma oração tão bela
quanto a outra, que se insere
entre as mais belas.
E fala de uma forma tão perfeita
de amar — Ah, se o soubeste! —
sem esperança da mais leve recompensa.
Mas esse renascer de que me falas
para uma vida eterna?
São eternos os campos, as espécies?
Ou todos, se renascem de si mesmos,
conhecem essa estranha sensação
do não-ser, até que vem de novo
a primavera?
Tenho medo de mim, do que não sei,
do que me confiaram certa vez
e por incúria esqueci.
Obedeço a uma lei que desconheço,
e vim, tão sem escolha,
que nem sei a que vim.
XX
XXI
Tua maior lição:
essa humildade
de perdoar sem conta,
esquecendo até mesmo a chaga aberta
em cada mão,
no canto sem suplício levantado
na eterna louvação do que é criado
a cada dia,
cada nova estação.
Se se pudesse ao menos aprender
essa alegria de ser, tão desprovida
de medo ou de paixão,
que até mesmo a Indesejada, a incompreensível
e fatal se incorporasse
ao ofício de viver!
criando um novo espaço para o amor,
onde nada se exclui, nem mesmo a aceitação
do absurdo, a submissão àquilo que me escapa.
[Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978, pp. 41-43].
A morte é meu espanto cotidiano.
Por isso não entendo que a chames
irmã, como à água, à lua,
a tudo o que é vivo e floresce,
a tudo o que é vivo e mata para viver ainda,
como o animal mais terno,
o mais empedernido.
Teu Cântico do Sol é uma oração tão bela
quanto a outra, que se insere
entre as mais belas.
E fala de uma forma tão perfeita
de amar — Ah, se o soubeste! —
sem esperança da mais leve recompensa.
Mas esse renascer de que me falas
para uma vida eterna?
São eternos os campos, as espécies?
Ou todos, se renascem de si mesmos,
conhecem essa estranha sensação
do não-ser, até que vem de novo
a primavera?
Tenho medo de mim, do que não sei,
do que me confiaram certa vez
e por incúria esqueci.
Obedeço a uma lei que desconheço,
e vim, tão sem escolha,
que nem sei a que vim.
XX
Chamo-te santo, santo,
mas não sei do que falo:
da renúncia à riqueza deste mundo?
da tua entrega a teu irmão
sem pedir nada em troca?
do teu desnudamento necessário?
ou da fidelidade a teu destino
de
amar, amar, entre os mais nobres?
Olhavas com atenção a mínima planta,
atendias aos bichos,
que te amavam
de forma obscura, nunca ameaçadora.
Opunhas tua força e rebeldia
passiva ao jugo do mais forte,
e amavas conhecendo o não-amor,
a injúria, a incompreensão, a glória,
que outra
não sei maior que de enfrentar
a dureza da pedra,
a dureza daquele
que não quer ver. XXI
Tua maior lição:
essa humildade
de perdoar sem conta,
esquecendo até mesmo a chaga aberta
em cada mão,
no canto sem suplício levantado
na eterna louvação do que é criado
a cada dia,
cada nova estação.
Se se pudesse ao menos aprender
essa alegria de ser, tão desprovida
de medo ou de paixão,
que até mesmo a Indesejada, a incompreensível
e fatal se incorporasse
ao ofício de viver!
criando um novo espaço para o amor,
onde nada se exclui, nem mesmo a aceitação
do absurdo, a submissão àquilo que me escapa.
[Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978, pp. 41-43].
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