domingo, 30 de junho de 2013

Mariana Ianelli

Cantata
Escrevo-te, meu valente,
sobre aquela ave de estuário
que rebatia seu mergulho numa alçada
e agora passa riscando a vaporosa
porque já não aguenta descer rasante para a água.
As casas no remanso da estrada lateral 
— nem soubeste desta no nosso tempo irreparável —, 
pela novidade sadia de se voltarem à luz, 
dizem aonde vão dar os tropeiros que seguem, 
as jovens estúpidas de chapéu largo, 
o negrinho da nossa fábula americana.
A espera no fio das pedras não me faz inspiração
como em tua certa companhia
quando ouvi a existência das pontes
e dos faroleiros e das barcaças cambaleantes
pela tua explicação terrena de amante que mal aportou
e surpreendentemente embarca de volta no remoinho.
Escrevo-te, meu bom valente,
para que a todo novembro seguinte
não seja mais tua chegada.

In  Duas Chagas, São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 55.


PABLO PICASSO

sábado, 29 de junho de 2013

Herberto Helder

VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto 
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. 
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo 
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina 
os meus espinhos frios,
a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue 
da terra nocturna.

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, 
bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
E uma coisa estupenda a primavera que trabalha 
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. 
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água 
atenta, e amo a loucura — 
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.

Tenho medo de erguer a voz mais alto 
que o meu coração onde uma candeia 
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. 
Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, 
todos os mortos, todos os que amam 
entre sangue no mundo, entre as águas 
das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — 
e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, 
fundo-me no verbo interior da primavera 
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. 
Cantavas o que já se não quebra com o uso 
das vozes. Porque tu eras a minha 
água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam 
e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. 
Primavera, como cresces.
Desespero ou alegria, como correm 
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, 
evocar tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite 
com uma porta no coração para passar 
num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema 
junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras 
evaporam-se, reaparecem em espírito 
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.

Falo tão devagar que mal distingo 
a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam 
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar — como quem ressuscita.

In Ou o Poema Contínuo, São Paulo: A Girafa Editora, 2006, pp. 87-89

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sexta-feira, 28 de junho de 2013

Carl Sandburg

CARTA ABERTA A EMILY DICKINSON
Cinco rosinhas pediram 
a Deus, que chegasse perto, 
a Deus, que testemunhasse.

Chama e espinho estavam dentro 
e em torno das cinco rosas, 
chama inquieta, voz de espinho.

Do mar um pingo 
colhe de sal; 
daquela estrela, 
algo de névoa; 
o ai de prata 
de um coração.

Larga, abandona 
ao móbil azul 
da sombra mais rara.

Larga, abandona 
à calma dos gongos, 
à força dos gongos.


Divide com as chamas, 
teu espinho elege, 
para que Deus chegue perto, 
para que Deus testemunhe.

In Carlos Drummond de Andrade - Poesia Traduzida, São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 347


MARY ANDERSON



quinta-feira, 27 de junho de 2013

Roberto Piva

L 'ovalle delle apparizioni

"...e quindi il vivere e di sua própria natura uno stato violento
Leopardi

Eu queria ver as caras dos estranhos embaixadores da Bondade quando me
vissem passar entre as rosas de lama fermentando nas ruelas onde
a Morte é tal qual uma porrada
tilintam campainhas nas asas dos anjos que vão passar
tanto as cidades que percorrem como as cidades que abandonam estão vazias
som morte tempo ossos verdes vontade energia e as habituais velhas
loucas distribuindo bombons aos meninos pobres

o apito disentérico das fábricas expulsando escravos
bailarinos trazendo a maresia nojenta dos fiordes endoidecendo atrás
dos tapumes indevassáveis
grossas fatias de penumbra nos olhos vencidos pelo álcool
eixos titânicos montados na mente onde a heterossexualidade quer nos
comer vivos
partos desenfreados extraindo larvas angulosas
e as crianças fazendo haraquiri ao som de Lohengrin
sobre os pavimentos desolados o firmamento está distante como nunca
nôs provamos a esperança desesperada que acompanha cada gosto ritual
enquanto nossas tripas agonizam nos indefesos caules das hortênsias


In Paranoia, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, pp. 97-98


Giacomo Balla

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Astrid Cabral

A Darcy Damasceno
Às vezes à minha cama vinha 
intrigante, aquele sonho raro:
Diante da rainha do baralho 
e seu cortejo de espadas 
eu de joelhos me prostrava:

— Cortem-me a cabeça! — 
pedia e me comprazia 
na dimensão do corpo restante 
e me sentia plena, sem aleijão 
nadando serena em rio de sangue.

In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 243.

Nesse jardim tão noturno 
empilham-se crespas trevas 
em touceiras de veludo. 
Alforriados do dia 
giram girassóis malucos.
Como rebeldes ramagens 
pulsam seres libertos 
de suas soezes grades. 
Despudorados antúrios 
aí proclamam os audazes 
rijos membros em luxúria 
e um cheiro umbroso e mordaz 
nos avassala os narizes.
Frutos exóticos cevam-se 
no rubro sangue do crime 
coalhado em antiga terra 
enquanto à sombra de urtigas 
vida e morte, unas se integram.

In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 244.


terça-feira, 25 de junho de 2013

Hilda Hilst

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA
PARA FLAUTA E OBOÉ.
DE ARIANA PARA DIONÍSIO.

I
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.
III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante

Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente

por isso talvez

Te aborreças de mim.     
V
Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio,
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
Ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor.
VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.
VII
É lícito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprende
Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloquência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa
Um ciúme venenoso e derradeiro.
VIII
Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.
IX
“Conta-se que havia na China uma mulher
belíssima que enlouquecia de amor todos
os homens. Mas certa vez caiu nas
profundezas de um lago e assustou os peixes.”
Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.
X
Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.         

In Júbilo,  Memória,  Noviciado da Paixão, Obra poética reunida,  pp. 219-226


Jovem Casal, Bacchus and Ariadne  ( 1500-10)
Tullio Lombardo, Italian High Renaissance Sculptor
Vienna, Kunsthistorisches Museum

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Ruy Belo

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
[Homem de Palavra(s), 1969]

In Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 3a. ed., 2009, p. 308


Pyotr Konchalovsky

domingo, 23 de junho de 2013

Adélia Prado

22
"Se eu pudesse, hoje, varria, isto mesmo, varria as pessoas todas com vassoura, como se fossem cisco. Limpava o chão, passava pano molhado pra refrescar, ia chorar e dormir. Meu coração agora faz diferença nenhuma de coração de galinha ou barata que galinha come. Não tem amor nele, nem de mãe, nem de esposa, nem de nada. Tá seco, raivoso e antipático, quer é sossego, quer é lem­brar o morto horas a fio, espernear em cima da vida tão sem graça e cinzenta. Gosto de ir até no fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra depois ver a água minando clarinha de novo. Gosto da cesta sobre a mesa com mamões e bananas, gosto de lavar o filtro todo sábado, encher as talhas com água nova, gosto. Gosto, mas exaspero-me esque­cida dos dons, e parto, como hoje, o pão, sem reparti-lo. É verdade que sou uma mulher inscrita no seu ciclo. Mas já dura demais. Quero é neste dia mesmo, prenhe do meu mênstruo não vazado, escutar dos meus: “esta é minha mãe”; “não vá agora, minha mulher vai fazer um café.” Sorrindo, servindo-os como a pombos, com arrulhos, milho e água fresca, andando no meio do revoar deles, sem pisar nenhum; inocente do pensamento que eu vou gerar nos homens: “é uma mulher que se pode contar com ela à noite.” Assim, riquíssima e útil, a alta tensão, por fim, domesticada. O pos­te fincado sem perigo, no meio do jardim".

Adélia Prado, in Solte os Cachorros, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1979, pp.69-70

Cynthia Angeles



Cecília Meireles

SETE
Tudo jaz, diluído e cintilante, numa profunda névoa.
Nada, porém, se perde ou esquece, embora tão finamente 
disperso nessa grandeza.
Gastam-se as imagens e os símbolos; mas a essência resiste.
Realejos e sinos vibram, com as hélices, os cânticos e os gritos,
e tudo é som, naqueles silenciosos corredores,
e a doce luz habita mil esconderijos,
tal como foi em seus inúmeros momentos,
em olhos, flor, seda, chaga e pedra preciosa.
E em diáfanas balanças pairam diamante e pólen, 
bibliotecas e arsenais.

Tudo se encontra nesta bruma: 
o burburinho histórico, a vítima e o carrasco; 
a melodia da sereia nórdica, à proa do barco da conquista; 
plumas e arcabuzes,
o passo do fantasma por aéreas escadas, 
praga e suspiro, acontecimento e remorso...

Tudo paira na estrutura da noite, 
em seus arquivos superpostos.

Tão longe vai o rastro exíguo das gaivotas
como o odor das praias e o rumor grandioso das máquinas.
Rarefeita anatomia da paisagem,
onde cada elemento se faz translúcido,
frágil e rijo como a asa dos insetos e a flexão do pensamento.

Finíssimas pontes transpõem a noite: 
desenhos agudos prendendo as disjunções.

E quem segura a noite, assim carregada desses escombros 
que à luz do sol parecem grandiosos bens indispensáveis?

Homem, objeto, fato, sonho,
tudo é o mesmo, em substância de areia,
tudo são paredes de areia, como neste solo inventado:
mar vencido, fauna extenuada, flora dispersa,
tudo se corresponde:
zune o caramujo na onda com o mesmo som do lábio de amor 
e da voz de agonia.
Os abraços, as nuvens, o outono pelo parque 
têm o mesmo gesto, grave, precário, fluido.

Ah, e os louros cabelos caridosos, e a luminosa pálpebra, 
e as raízes pertinazes, e os ossos foscos, 
e a minha deslumbrada vigília e a memória do universo

tudo está ali, mais a luz confusa que envolve a lua, 
mais o clarão do pólo e as híbridas águas, 
e tudo se desfolha sobre lugares invisíveis 
num outro reino que apenas a noite alcança.

(Doze Noturnos da Holanda)

In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 386-387

Jacob Maris



sábado, 22 de junho de 2013

Arthur Rimbaud

CONTO
Um Príncipe estava insatisfeito por nunca se haver aplica­do senão em aperfeiçoar as generosidades vulgares. Previa no amor revoluções surpreendentes, e supunha suas mulheres ca­pazes de algo melhor que essa complacência entremeada de céu e de luxúria. Quis ver a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais. Fosse ou não uma aberração de piedade, assim o quis. Possuía pelo menos um poder humano bastante considerável.
Todas as mulheres que o haviam conhecido foram assasinadas. Que devastação no jardim da beleza! Sob o sabre, ainda o bendiziam. Não ordenou outras novas. — As mulheres reapare­ceram.
Matava a todos que o seguiam, após a caça ou as libações. — E todos o seguiam.
Divertia-se em degolar os animais de luxo. Mandou incendiar os palácios. Arrojava-se sobre as pessoas e as talhava em postas. — A multidão, as cúpulas douradas, os graciosos animais subsistiam.
Pode-se extasiar na destruição, rejuvenescer na crueldade! O povo não murmurou. Ninguém trouxe o concurso de seu parecer.
Uma noite galopava altivamente. Apareceu um Gênio, de uma beleza inefável, inadmissível mesmo. De sua fisionomia e de seu porte emanava a promessa de um amor múltiplo e comple­xo! de uma felicidade indizível, insuportável mesmo! O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Como não haveriam de morrer disso? E então morreram juntos.
Mas esse Príncipe expirou, em seu palácio, numa idade esperada. O Príncipe era o Gênio. O Gênio era o Príncipe.

Falta ao nosso desejo a música adequada.

In Prosa Poética, trad. Ivo Barroso, 2a. ed. rev., Rio de Janeiro, Ed. Topbooks, 2007,  p. 213

Sobre Arthur Rimbaud

GIORGIO DE CHIRICO

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Astrid Cabral

Canhestros, ambos se defendem 
do perigo da velha labareda. 
Sabem-se vulnerável lenha 
atrás das grenhas já grisalhas: 
espasmos de juventude soterrados 
na carne despojada de primavera.
Entrincheiram-se em bíblicos 
preceitos, no amor da família.
Mas ao discorrerem sobre os filhos 
sub-reptício lateja o pensamento 
de que eles poderiam ser outros 
de que a vida poderia ser outra 
e perplexos percebem os destinos 
que foram cumprindo à revelia 
ao livre-arbítrio de cabras-cegas. 
De comum, resta-lhes agora a dor 
da vida irreversível e única.
Dia avançado não há mais espaço 
para a aventura de outras trilhas. 
Num altar de sacrifício, o parcial 
suicídio: asas de sonho imoladas.
(Lição de Alice)

In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 246.


GUIDO RENI

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dora Ferreira da Silva

A RAINER MARIA RILKE
Minha tua pele pálida 
e as pálpebras de entumecidas pétalas.
De castanhas em azuis, estas pupilas.
Amo as mulheres que adoraste,
Anjo inconstante, ou Criança 
alcançando-lhes o joelho:
Lou e Paula Modersohn e Clara 
Benvenuta ao piano 
a Princesa esbelta e sardenta 
e o estranho Pasha.

Instável pássaro do amor,
de polainas cinzentas, tão feias e aristocráticas.
Teu chapéu e bengala usei 
no vergel friorento de Muzot.

Entramos com o vento na grande sala hipóstila, 
ou encravado na Catedral o eterno ponteiro sou 
do Anjo do Meio-Dia. Perambulo por todos os jardins, 
corro atrás de epiléticos e saltimbancos de subúrbio, 
dou a rosa à mendiga enquanto adere ao meu rosto 
o pegajoso escárnio. E as escadas... subo-as todas. 
Entro no quarto rue Toulier e enlouqueço 
nos crisântemos sobre a mesa.
Teu passo anda em meus pés e não os esquivo.

Abismo, abismo de tua pupila azul!
Nela tudo vejo do que viste em Firenze, Rússia e
                                                              [Toledo,
debruço-me sobre a ponte e deixo cair o lenço: 
a Desconhecida assim o pediu...

Esta manhã trouxe-nos a morte.
Sou viva em ti e morta e novamente viva, 
morro em teu leito com tuas feridas, 
tua angústia refletida em meus olhos azuis.

Nesta manhã de inverno desfaço-me contigo, 
para que do nada crie-nos Deus.
(Talhamar, 1982)

[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Ed. Topbooks, 1999, pp. 260-261]


quarta-feira, 19 de junho de 2013

André Luiz Pinto

Pior se Deus apressasse um beijo,
                     viesse aqui como lembrança. Pior
se viesse do fundo uma outra verdade 
submersa. Porém todos, como nós, abafam 
os casos. Se fossem diferentes e no
lugar de arriscar, preferissem o pior, mó de uma nova
estrebaria, veio para rugas, greves,
congelamentos, autoramas.
Ainda, se reinventasse um dia de sol.
Deveria supor, não a mim, nem ao poema,
mas ao desejo tácito e fiel.
Ao menos um castigo; de pano
de fundo, uma guerra de troia, meninas
choram, sete e oito anos. Ainda, por ciúme,
seria pouco, muito pouco querido para nos atrapalhar,
ferir-nos a memória, a calmaria da face.
Não poderia ser assim. Não deveria ser por menos,
senhoras tricotam mentiras de abonada
gente. Quem é joio,
quem é judas, por que te beijou, preciso saber. Naquele
lugar distante e faminto, naquela marionete
de pensamentos vãos, ainda persiste. Eis que primeiro
falece, nada não há, aquilo de que
tanto falei, por quem tanto pedi, finalmente - não chego.

Primeiro de Abril (2004)

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 90, seleção e prefácio Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2011, p. 180-181.

O poeta André Luiz Pinto nasceu no Rio de Janeiro, em 1975.  Com três livros publicados — Flor à Margem (1999); Um Brinco de Cetim/Un Pendiente de Satén (2003);  Primeiro de Abril (2004), ISTO (2005) e Ao léu (2007).    

William Dyce
       

terça-feira, 18 de junho de 2013

Adriana Lisboa

Excerto do romance "HANÓI"
Ele entrou no mercado asiático, acenou para Alex e pegou um cesto de plástico que encheu com itens pequenos. O critério era um só: que levasse bastan­te tempo para passar no caixa. Por cima, colocou um pé de alface, feito um buquê.
Ela disse oi e passou o código de barras de uma lata de milho no leitor.
Escuta, não sei se te interessa, ele disse. Mas vou entregar o meu apartamento em breve, e náo vou ficar com nada do que tem lá dentro. Vou colocar um anúncio oferecendo no meu prédio, mas estava aqui fazendo compras e me ocorreu que poderia falar com você. Quem sabe alguma coisa tem utilidade.
Achei que você ia ficar uns tempos fora da cidade e depois voltava, ela disse, passando no lei­tor o código de barras de um pacote de macarrão sabor espinafre, made in Taiwan.
Ah, não. Eu não vou voltar.
Alex fez um breve silêncio, depois confir­mou, você disse que não vai ficar com nada do que tem no seu apartamento?
Isso.
Eu na verdade estava era precisando de um computador.
David parou, pensou, o laptop era um bem móvel que não deixaria de ter utilidade, mas que diabos.
Não vou levar meu laptop. Ele não está novo em folha, mas funciona bem. Pode ficar com ele, se quiser.
Ela parou de somar os itens da cesta e olhou-o nos olhos, com curiosidade.
Vamos fazer o seguinte, David falou. Eu vou em casa e já volto com o laptop. Se você gostar, é seu.
Estou precisando de panelas, ela acres­centou, enquanto ele pegava suas duas sacolas de compras.
Meia hora mais tarde, David estava de vol­ta com o laptop debaixo do braço e três panelas encaixadas uma dentro da outra, empunhadas pe­los cabos.
Trung, que arrumava bananas num cesto, olhou para ele como quem tentasse ler as entreli­nhas das suas rugas de expressão. Quem sabe veria o que havia para se ver. Talvez houvesse um desa­pego artificial e ansioso em David. Tome, leve o laptop, leve as panelas — quem sabe todo o com­portamento dele fosse comparável ao de um mau palhaço de circo. Até para ser ridículo é necessário certo grau de seriedade.
Antes de sair de casa David apagou os seus arquivos, por nenhum motivo além do fato de que náo teriam utilidade para Alex. Não havia segre­dos de Estado ali.
Pelo sim, pelo não, resolveu deixar sua mú­sica. Renomeou a pasta: ouça isto Alex.
Talvez no futuro próximo ele pudesse lhe perguntar se tinha chegado a ouvir, e nesse caso se tinha gostado, e nesse caso do que tinha gostado mais. Pensava nela naquele momento como uma pessoa do tipo Nina Simone. Tinha quase certeza de que Alex gostaria de ouvi-la cantando “Feeling Good”.
Lembrou-se mais uma vez daquele doente, o do diagnóstico errado.
Se novos exames revelassem que na verda­de ele não estava doente, David pensou, talvez fos­se uma troca válida. Tudo o que ele tinha em troca de tudo de que precisava. E um diagnóstico errado no meio do caminho, só para que aprendesse a di­ferença entre as duas coisas.
Como que para lhe dizer que aquela não era uma possibilidade, uma pontada funda na ca­beça quase o fez perder o equilíbrio.
Alex não viu. Trung sim. Ele levantou o rosto das bananas e seu olhar topou por um ins­tante com o olhar de David.
Depois Trung retomou seu trabalho, como alguém talvez um tanto constrangido por ter visto o que acabara de ver. O mau palhaço contando uma piada sem graça, os rostos impas­síveis da platéia. O mau palhaço prestes a perder o emprego.
Alex pegou as panelas, revirou uma e de­pois outra.
David apanhou uma caneta largada por ali e uma nota fiscal que alguém tinha deixado para trás. Escreveu seu telefone no verso. Já tinha nota­do que estava perdendo aos poucos essa habilidade tão simples, a escrita — e isso era esperado —, mas por enquanto sua caligrafia ainda era legível.
Se você e o seu patrão quiserem passar para dar uma olhada no resto, ele disse, entregando o pedaço de papel a Alex.
Ela ainda exclamou obrigada pelo compu­tador e pelas panelas! antes que ele saísse para a rua e para a chuva que voltava a cair.

[In HANÓI, Rio de Janeiro:Alfaguara, 2013, pp. 107-110]

Sobre Adriana Lisboa



segunda-feira, 17 de junho de 2013

Pedro Gonzaga

para além dos bancos de areia prateada
para além dos bancos de areia prateada 
cobertos por um capim rasteiro e triste 
está o mar da república oriental 
feito de gelo e tardes desertas 
saudoso de seus generais e caudilhos 
amnesiado dos corpos 
que ali entraram no verão 
à espera de um sol que fosse mais 
que a mera decoração dos souvenirs 
e das caixas de alfajor da zona franca

dentro do carro ouvimos o vento - 
éolo perdido no fim do mundo 
batendo nos vidros com a insistência 
anacrônica de um caixeiro viajante

apertamos nossas mãos 
e eu vejo a mancha de sangue 
entre tuas coxas
alastrando-se muito devagar

mais um mês que estamos juntos, 
no rádio uma velha canção
promete em inglês sulista 
os encantos do amor eterno

olhamos ao mesmo tempo através do vidro 
pequenas gotas de maresia cintilam 
como pedras não lapidadas, 
um sorriso se forma em teus lábios 
a visão de súbito se me liquefaz

e então um locutor (talvez eu mesmo) 
diz entre soturno e zombeteiro: 
señor, não se chega impunemente ao trigésimo quinto inverno

In A última temporada, Porto Alegre: Ed. Ardotempo, pp. 35-36

Sobre Pedro Gonzaga

Barbara Kelley



domingo, 16 de junho de 2013

Marize Castro

na primavera, deitada em sua cama, olhava seus pequenos 
companheiros brincando pela janela aberta

no verão, também de cama, ela ouvia os relatos:
“nosso terreno selvagem está salvo”

na sua ausência, muitas batalhas foram travadas 
e perdidas

seus soldados, cansados, eram por ela abençoados
com a benção lida em Um Jardim de Poemas Infantis

muitos anos depois, dança descalça 
e ruma para as hastes da floresta

toca a noite e o dia, e canta:
“até que morte nos separe”

oráculo do seu tempo 
não mais com fome 
não mais sedenta

iluminada

com lisos fios brancos no cabelo 
sob céus imóveis 
ela valsa

seu Madrigal é seiva em meu coração


In Habitar teu Nome, Natal (RN): Una, 2011, p. 53

Pablo Palazuelo

sábado, 15 de junho de 2013

Emily Dickinson

Após a dor imensa, a sensação formal —
Os Nervos sentam-se solenes, como Túmulos —
O Coração tenso pergunta foi Ele, a suportar,
E Ontem, ou há Séculos?

Os Pés giram, mecânicos —
Fora de Chão, ou Ar, ou Nada —
Caminho de Madeira 
Plantado ao acaso,
Contentamento em Quartzo, como pedra —

Esta é a Hora de Chumbo —
Quando sobrevivida, recordada,
Como o Enregelado lembra a Neve —
Primeiro — o Frio — o Estupor a seguir — depois o abandono  —

[In Cem Poemas, trad. Ana Luísa Amaral, Lisboa, Ed. Relógio D´Água, 2010, p. 27]

Fragonard - A leitora

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Renata Pallottini

POEMA
Sei  bem o que fazer 
mas me parece cedo.

Partir com um navio pelo mar roxo e verde 
correr dentro do bojo do navio, esse peixe, 
curtir a pele dos meus dias com muitas tempestades 
e um dia — doce dia — desembarcar num cais.

Sei bem o que fazer 
quando desembarcada.

Buscar por qualquer meio chegar a uma cidade 
depois, por uma estrada, ir até um grande vale, 
e ali olhando a terra e os homens com suas barbas 
esquecer o que fui, beber café, e largar-me.

Sei bem o que fazer 
não me surpreende nada.

Encontrar as pessoas que são novas e velhas 
e comer um punhado de cerejas com elas.
Tomar cerveja ao sol, pensar no avô e no resto 
quando a cidade era suave — quase campo — 
e os delicados lírios floriam na primavera...

Sei bem o que fazer: 
visitar essa terra...

Amar o amor moreno que se desdobra e arde, 
afagar uns cabelos escuros e pesados, 
dormir no fim da rua no desvão de uma casa 
tendo ao meu lado um corpo forte que eu abrace 
e que se agarre a mim com força, que me beije 
como eu tenho beijado as palavras e as frases...

Sei bem o que fazer; 
mas me parece tarde...

[In: Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 149]

Modigliani

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Laís Correa de Araújo

Teatro de mímica

Nas fricções da íngreme subida 
em formação de combate 
há que pousar também a pomba 
encimando a cena no telhado 
de vidro em ogival declinação 
o gesto que antigo se repete 
recobra o jogo de milhões outrora 
hoje sempre em ganhos e perdas 
lança fora colcha e lençol 
cenário decomposto agora posto 
em entrega e aplicação 
a domicílio sem taxa de adesão 
cobrada em circunvoltas 
ida e vinda à segunda fonte 
onde o silêncio jorra em ais 
e inunda úmido a dupla solidão.

In INVENTÁRIO 1951/2002, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 206


Miró

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Maria Carpi

11
A minha insuficiência ainda 
não ardeu de todo. Ainda 
está verde em sua lenha. 
Atravessou a lucidez,

há de atravessar a visagem. 
Queimou todas as setas, 
há de queimar a desorientação. 
Misturou-se à claridade,

há de pastar as sombras. 
Cicatrizou a beleza, 
há de pôr brasa à anomalia. 
Apagou-se em sua vagem,

há de frutificar a desolação.
A minha insuficiência ainda 
não crepitou o extravio.
Ainda não deu lume à fúria.

O grão se ergue para servir.

In O Herói Desvalido, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 83 

Maria Carpi é uma escritora gaúcha, nascida em 1939, na cidade de Guaporé. Formada em Direito, advogou durante 15 anos no interior do Rio Grande do Sul e integrou o Magistério Estadual. Lecionou na Faculdade de Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e ingressou, por concurso público, na Defensoria Pública, tendo optado pela área dos direitos da infância. Publicou seis livros, entre os quais,  "As Sombras da Vinha" e "O Herói Desvalido".

Jules Breton

terça-feira, 11 de junho de 2013

Manuel António Pina

Como se desenha uma casa
Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente 
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente, 
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois, 
como uma foto que se guarda na carteira,
 iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

In Como se desenha uma casa, In Todas as Palavras Poesia reunida, 3a. ed, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 347. 


segunda-feira, 10 de junho de 2013

Maria Lúcia Dal Farra

Inventário de alegrias
Enlaçados um no outro
diante da mesa farta
mãe, pai, irmãs, sobrinhos —
somos distintos sorrisos
dum rosto só filiados:
porque nos amamos e estamos juntos
porque temos fome
e de tudo partilhamos.
 
Atrás
o relógio de parede mostra
(pelo avançado da hora) 
que o dia é de domingo.
Também
na travessa à vista 
a leitoa se quer generosa: 
aniversário de alguém.
 
A foto esqueceu a cor 
os sobrinhos estão moços 
e entre mamãe e nós
 
denso silêncio lacunar.

— Há quanto tempo éramos outros?

In Livro de Auras, São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 109

Lasar Segall 

domingo, 9 de junho de 2013

Murilo Mendes

VELÁZQUEZ
Andaluz e castelhano,
Resume a tensão espanhola.
Entre precisão e força 
Ordena sua paleta.

Eis a pintura.
Eis a matéria do homem a duas dimensões. 
Pintando, Velázquez orienta 
A rígida consciência de Espanha:
Orgullo castelhano de estrutura,
Ligado à língua e ao solo.

Velázquez sabe: pintar é elucidar o espaço
Aberto ou restrito
Pela marcha do pincel consciente.
Velázquez sabe: a cor delimita a forma.
Situando a cor, seu pincel a define:
Suprime a fluidez, a suavidade,
Qualquer elemento opaco ou impreciso.

Suporte da verdade plástica 
É o próprio grupo dos nobres:
Entre o rei e o niño de Vallecas 
A continuidade da matéria enxuta.
A marcha do pincel voluntário
Constrói o homem na grandeza circunscrita:
Sua dimensão é a cor, a forma definida.

Eis o que o distingue dos outros:
Seu DUENDE não é visível 
Como o de Goya, de El Greco.

Entre o minucioso «fantástico» de Flandres 
E o gosto superlativo italiano
A linha castigada e enxuta de Velázquez
Demarca os precisos limites
Onde Espanha se reconhece autônoma.

In Tempo Espanhol, Poesia Completa e Prosa, Ed. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1994, pp. 599-600

Autorretrato, 1640.
Real Academia de Bellas Artes de San Carlos de Valencia - Valência, Espanha.

sábado, 8 de junho de 2013

Ruy Cinatti

NAVIOS DO VENTO
Fechei a minha janela 
ao vento que vem do largo, 
que entra pela voz do rio 
e declina pela cidade, 
silvando pelos telhados 
que lhe servem de desvio.
No rio sobem navios 
que apitam de quando em quando. 
Oh, mudo pranto fechado 
que se ouve no meu quarto!
Mas o vento força a porta, 
sublinha-se pelas frinchas 
com denodado desígnio 
que me fere de malícia.
Abro a janela, fecho-a 
e recebo-o em minha casa 
com honras de visitante, 
pé atrás, outro adiante, 
como se fosse esperado.
Oh, pranto desenganado!
Não converso, não me espanto 
com o que o vento sussurra 
quando entra de improviso.
O que se ouve no meu quarto 
é um anjo apavorado 
que me pretende assustar 
com uma voz d'além túmulo 
ouvida algures além-mar.
Oh, lamento recordado 
de uma criança a chorar!
Eu vejo cavalos brancos
galopando sobre as nuvens 
as crinas ao ar soltando, 
halo de espuma e salsugem. 
O vento que me percorre 
rodopia sem cessar, 
enche-me o quarto todo 
de furtivos sentimentos 
difíceis de controlar.
Oh, mudo pranto fechado 
a sete chaves pelo vento!

27/2/75

[In 56 Poemas, Lisboa: Relógio D´Água, 1992, pp. 64-65].






Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...