sexta-feira, 31 de maio de 2013

Manoel de Barros

PÊSSEGO 
Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava 
em orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo 
(possui o que vê).
Mas é pelo tato 
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver 
E mais que o ouvir
E mais que o cheirar.       
E pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca 
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente 
Como um pêssego de Deus.

Manoel de Barros, Poemas Ruprestes, In  Poesia Completa, São Paulo: Leya, 2010, p. 315

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Maria Lúcia Dal Farra

ALEIA DO CASTELO KAMMER
O enlace das árvores
(galhos em cumplicidade,
em afagos à procura da luz)
- faz desta alameda
a mais aprazível sombra a percorrer.

Assim
entras na morada
antes mesmo que te abram a porta
e desde então já sabes
quanto te quer bem
o anfitrião. O vento
(sopro de Van Gogh)
retorce em felicidade os troncos:

O amor também tem curvas.


[Maria Lúcia Dal Farra, Livro de Possuídos, São Paulo, Iluminuras, 2002, p. 122]
Gustav Klimt

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Miguel Torga

Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida 
Mo consente.
Mas a minha aguerrida 
Teimosia
É quebrar dia a dia 
Um grilhão da corrente.


Livre não sou, mas quero a liberdade. 
Trago-a dentro de mim como um destino. 
E vão lá desdizer o sonho do menino 
Que se afogou, e flutua 
Entre nenúfares de serenidade 
Depois de ter a lua!

In Cântico do Homem, In Poesia Completa, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 394

terça-feira, 28 de maio de 2013

Maria Gabriela Llansol

A santidade é o mais forte de todos os sentimentos 
Verdadeiros. 
O seu trabalho é de uma beleza aterradora. 
A sua perturbação invade o peito deslumbrado sem que, 
Todavia, oscile para além do tranqüilo. 
Dá oito horas 
No relógio da cidade velha. 
Por ser uma alegria que 
Rejubila com a alegria que se aprofunda, ela as transforma, 
As horas (digo), as cansa, as regenera. 
No fundo do peito, 
Abrigando-se sob sentimentos humanamente tão usados
(Que, todavia, cintilam) adquire a sua única certeza   
A de um trabalho que se gera 
Para além de qualquer contrariedade.
Ilda David

[Maria Gabriela Llansol. O começo de um livro é precioso, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003, p. 171].

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Mariana Ianelli

O AMOR REDIVIVO
Se existe de fato, não se sabe.
Se poderá de novo ser tocado.
Por enquanto, interessa apenas 
Esta música torrencialmente nua,
Puro lamento d’água.

Não se está pronto a conquistá-lo.
O alimento de hoje e cada dia,
Mentira, orgia, náusea.
Ainda não há quem o mereça.
Onde vive, se vive, não se sabe.

Talvez se esconda sob um ninho,
Ou num rio há tempos congelado,
Com tudo o que ali está suspenso,
Ou no ponto mais alto da montanha, 
Coberto pelo fumo da neblina.

Aqui ou alhures, não se sabe.
Nada a fazer do peito retraído,
Da boca seca de gemidos, pupila estagnada. 
Voltar às origens ninguém volta 
Para redescobrir a alma na carne.

Foram os outros que o mataram,
Ou fomos nós, isso já pouco vale.
Por enquanto, só esta música, esta água.
E um certo mal-estar que não se explica,

O vazio de nos sentirmos perdoados.

Fazer Silêncio, São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 123


Marc Chagall

domingo, 26 de maio de 2013

Maria Lúcia Dal Farra

Callas na escala ascendente
A Ziriguimel
Inteira,
tua voz é um cone,
torre de catedral,

coisa tátil, que se avista,
mutável como caleidoscópio. É fósforo,
poço de petróleo: força que se arremessa
das profundas da treva e que
(de chofre)
perfura com sua agulha as nuvens 
para ganhar penugem de pássaro 
e adejar (mui devagar) 
sobre o espírito.

Foguete é tua voz em busca do buraco negro 
(olho terceiro)
turbina que se aquece entre coração e cérebro 
e desenha ogivas de ignoradas paragens — 
onde leio flor, lâmina 
arcaica letra grega 
que não entendo
mas que se inscreve no mármore dos altares.

[In Livro de Auras, São Paulo, Iluminuras, 1994, p. 27]

sábado, 25 de maio de 2013

Konstantínos Kaváfis

DESDE AS NOVE
Meia-noite e meia. Rápido passou a hora 
desde as nove quando acendi o candeeiro, 
e me assentei aqui. Permanecia sem ler 
e sem falar. Com quem falar, 
completamente só nesta casa?

A imagem de meu corpo jovem, 
desde as nove quando acendi o candeeiro, 
veio encontrar-me e fez-me lembrar 
quartos fechados aromatizados, 
e volúpia passada - que ousada volúpia!
E trouxe-me diante dos olhos, também,
ruas que agora se tornaram desconhecidas,
locais de divertimento cheios de movimento que acabaram,
e teatros e cafés que existiram outrora.

A imagem de meu corpo jovem
veio trazer-me também as lembranças tristes:
lutos da família, separações,
afeições dos meus, afeições
dos mortos, tão pouco apreciadas.

Meia-noite e meia. Como passou a hora.
Meia-noite e meia. Como passaram os anos.

[Poemas de K. Kaváfis, São Paulo, Ed. Odysseus, 2006, trad. de Ísis Borges da Fonseca, p. 215]

 Hippolyte Flandrin 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Giorgos Seféris

VIII
Mas que procuram elas, nossas almas, viajando assim 
Sobre pontes de barcos arruinados,
Empilhadas entre mulheres pálidas e crianças que choram,
A quem não distraem nem os peixes voadores 
Nem as estrelas assinaladas pelas pontas dos mastros;
Almas gastas pelos discos dos fonógrafos,
Ligadas sem o querer a inoperantes peregrinações,
Murmurando em línguas estrangeiras migalhas de pensamentos? 
Mas que procuram elas, nossas almas, viajando assim 
De porto em porto 
Sobre cascos apodrecidos?

Deslocando pedras lascadas, respirando 
O frescor dos pinheiros mais penosamente cada dia,
Nadando ora nas águas de um mar,
Ora nas de outro mar,
Sem contato,
Sem homens,
Num país que não é mais o nosso 
Nem tampouco o vosso.
Sabíamos que elas eram belas, as ilhas 
Nalguma parte perto do lugar onde vamos às cegas,
Um pouco mais baixo, um pouco mais alto,
A uma distância ínfima.

[In Mitologia, In Poemas, Rio de Janeiro: Ed. Opera Mundi, 1973, trad. Darcy Damasceno, p. 59]. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Maria Gabriela Llansol


Excerto de "Causa Amante"
5 — estou hoje intrigada por uma palavra: marfolho. 
Encontrei-a no tesouro vegetal da língua; 
e com o modo por que encontrei Alice na igreja de Santa Engrácia, e trouxe para casa a Proclamação de Lisboa, cidade que deve ser tomada, em meu entender, sem capitular;

em conluio com as ruínas, esta igreja é bem inquietante,
com a sua multidão em que não distingo um só conhe­cimento; não distingo os pés que, no entanto, se mo­vem lentamente; a terra, ela move-se. Procuro sempre Alice que tem as pálpebras descidas e que não provoca enganos, como os cegos de olhos abertos. Estava en­costada a um degrau de pedra, com o capuz batido pelo vento, e deve ter distinguido os meus passos,
ou a minha presença,
através de um dos seus sentidos ocultos que a encami­nham sempre para mim: — «Estará morta, ou ainda viva?» — perguntou-me: — «Quando voltamos para casa?» — «Hoje, o que me atrai é estar em Lisboa, andar por Lisboa na meia solidão em que podes sem­pre acompanhar-me.» — Pôs a mão no meu braço, e transpusemos a abertura como se tivéssemos os mesmos pés. O Tejo era diferente do da minha lembrança, muito mais rio preciso do que a imensidão que eu jul­gara.

6 —                       encontrei-me
Alexander Leal

numa faixa do rio, ao fim da noite; 
há tanto tempo que a olhava, à procura; 
a meu lado, estava um homem pequeno, cujos sinais correspondem exactamente aos de João da Cruz, visto através dos seus textos, e do modo de viver a sua vida; era evidente que, para mim, aquele homem era, sobre­tudo, enquanto bosque, sombra; e enquanto força,
corrente; disse-me que tinha um peso secreto sobre ele. Sem sequer o ouvir, dispus-me a pedir-lhe conselho, a que já sou menos rebelde; ele interrompeu a sua confi­dência, e antecipou-se à formulação da minha primeira pergunta: — ...não sei se poderás voltar a optar; ali está a água — disse —, a água do Tejo, com esse nome, e nenhum outro; atrás de nós está o casario de Lisboa, «casario subindo as colinas», submetido a essa expres­são, e a nenhuma outra; hoje, é este dia do século, an­tes do terramoto que há-de destruir Lisboa, e de ne­nhum outro; hoje, eu estou aqui a teu lado para que narres o nosso encontro, até à última pausa da palavra que te dirigi; já baixas a cabeça ao peso do trabalho, e à necessidade inexorável de contar. — Tento, então, fa­zer o que ele diz: precisar, no escuro, o nome da parte de Lisboa que se ergue atrás de mim, 
ver povoadas suas ruas íngremes; 
quando me encontrei a reaprender a escrever, 
ou a prosseguir o caminho de suspender estas emoções
por algumas horas, já era mais de meia-noite, e João da Cruz, sempre vivo em sua fala e movimentos, ainda não me abandonara. Falava-me da sua própria vida pessoal, de um drama que o atingira parecendo, ele, o inacessível; torcia e retorcia as mãos, e ora me olhava, e olhava o rio, ora olhava os contrafortes do castelo, que se apagava sobre nós.

Causa Amante, Lisboa: Relógio D´Água, 1996, pp. 11-113.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Lélia Coelho Frota


TALVEZ PENÉLOPE
Ah o amor da Grécia o branco 
imaculado amor das ilhas 
que pervagam no mar violeta
 numa eterna tapeçaria 
a desfazer-se, a refazer-se —
                                             espumas
peixes, sargaços, conchas, abismos,
                                            Ulisses!
Onde viajas, encantado, retido, 
ó esperado desaparecido?

Ó nunca visto, ó viajante rijo
do mar guerreiro, de ondas em riste, onde
teu rosto ignorado persiste?

Na nostálgica superfície 
ecoa um nome, e o edifício 
das águas reboa, desaba 
pelas angras do esquecimento.

Que sereia te seduziu 
para assim me deixares, só, 
na mesa vazia, entre conchas 
murmurejantes?

Ou serei eu a sereia
que se põe entre nós de permeio
e desfaço a a tua chegada 
quando de longe, na amurada 
 vês o meu vestido vermelho 
que a brancura da praia incendeia?

Serei eu quem de ti se afasta 
e que a trama das ondas desata 
quando a meus pés resvala, súplice, 
a marola da tua fragata?

[In Alma & Pétalas, in Poesia Reunida 1956-2006, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2013, pp. 418-419]


terça-feira, 21 de maio de 2013

Maria Teresa Horta

EXERCÍCIO
Não retomo nos teus
braços
o calor da tua boca

nem retomo do silêncio
as palavras que se
escoam

Mas se na tua distância
existe um entendimento
na minha lenta cedência
existe um rasto de medo

In Candelabro, 1964


O Beijador - Picasso

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Paulo Mendes Campos

No princípio do amor
No princípio do amor, outro amor que nos precede
adivinha no espaço o nosso gesto.
No princípio do amor, o fim do amor.
Folhagens irisadas pela chuva,
varandas traspassadas de luz, poentes de ametista,
palmeiras estruturadas para um tempo além de nosso tempo,
pássaros
fatídicos na tarde assassinada, ofuscação deliciosa
no lago - no princípio do amor
já é amor. E pode ser setembro
com o sol estampado na bruma fulva. Monótona
é a praça com o clarim sanguíneo do meio-dia.

No princípio do amor, o humano se esconde,
bloqueado na terra das canções, astro acuado
em galáxias que se destroçam. E tudo
é nada: nasce a flor e morre o medo
que mascara a nossa face. Navios
pegam fogo defronte da cidade obtusa,
precedida de um tempo que não é o nosso tempo.
No princípio do amor, sem nome ainda, o amor
busca os lábios da magnólia, o coração violáceo
da hortênsia, a virgindade da relva.
É, foi, será princípio de amor. A mulher
abre a janela do parque enevoado, globos irreais,
umidade, doçura,
enquanto o homem - criatura ossuda, estranha -
ri no fundo de torrentes profundas
e deixa de ir subitamente, fitando nada.
Isto se passa em salas nuas,
em submersas paisagens viúvas, argélias
tórridas, fiords friíssimos, desfiladeiros
escalvados, parapeitos de promontórios
suicidas, vilarejos corroídos de ferrugem,
cidades laminadas, trens subterrâneos,
apartamentos de veludo e marfim, províncias
procuradas pela peste, cordilheiras tempestuosas,
planícies mordidas pela monotonia do chumbo, babilônias
em pó, brasílias
de vidro, aviões infelizes em um céu
de rosas arrancadas, submarinos ressentidos
em sua desolação redundante, nas altas torres
do mundo isto se passa; e isto existe
dentro de criaturas inermes, anestesiadas
em anfiteatros cirúrgicos, ancoradas em angras
dementes, pulsando através de alvéolos artificiais,
criaturas agonizando em neblina parda,
parindo mágoa, morte, amor.
E isto se passa como um cavalo em pânico.
E isto se passa até no coração opulento
de mulheres gordas,
de criaturas meio comidas pelo saibro,
no coração de criaturas confrangidas entre o rochedo
e o musgo, no coração de
Heloísa, Diana, Maria,
Pedra, mulher de Pedro,
Consuelo, Marlene, Beatriz.

Olhar - anel primeiro do planeta Saturno.
Olhar, aprender, desviver.
Além da janela só é visível a escuridão.
Olhar - galgo prematuro da alvorada.
No princípio do amor, olhar
a escuridão; depois, os galgos prematuros da alvorada.
No princípio do amor, morte de amor antes da morte.
Amor. A morte. Amar-te a morte.
Sexos que se contemplam perturbados. No princípio do amor
o infinito se encontra.

No princípio do amor a criatura se veste
de cores mais vivas, blusas
preciosas, íntimas peças escarlates,
linhos sutis, sedas nupciais, transparências plásticas,
véus do azul deserto, pistilos de opalina,
corolas de nylon, gineceus rendados,
estames de prata, pecíolos de ouro, flor,
é flor,
é flor que se contempla contemplada.

Isto se passa de janeiro a dezembro
como os navios iluminados.

No princípio do amor
o corpo da mulher é fruto sumarento,
como a polpa do figo, fruto,
fruto em sua nudez sumarenta, essencial, pois
tudo no mundo é uma nudez expectante
como o corpo da mulher no princípio do amor.

Fruto na sombra: mas é noite.
Noite por dentro e por fora do fruto.
Nas laranjas de ouro.

Nos seios crespos de Eliana
Nas vinhas que se embriagam de esperar.
Ramagens despenteadas, recôncavos expectantes,
cinzeladas umbelas, estigmas altivos,
é noite,
é flor, é fruto.

Mas nos seios dourados de Eliana
amanheceu.

[In Melhores Poemas - Paulo Mendes Campos, São Paulo: Global Ed., 2000, 3a. ed, pp. 101-103]

Sobre Paulo Mendes Campos

domingo, 19 de maio de 2013

Adélia Prado

LÍNGUAS
Meu coração
é a pele esticada de um tambor. 
Como tentação a dor percute nele, 
travestida de dor, pra que eu desista, 
duvide de que tenho um pai.
Vem tudo em forma de carne, 
grandes mantas de carne palpitante, 
recobrindo ossos, frustrações, desejos 
sobre os quais tenho culpa e devo purgar-me 
até que eu mesma seja apenas ossos.
Um sujo me salvará, 
quando pegar minha cuia 
e comer à vista dele 
sem sentir ânsia de vômito.
As sombras dos satélites 
conspurcaram as estrelas.
Que faço para escrever de novo 
‘louvado sejas pelo capim verde’ 
ou até mesmo o gemido 
‘meu coração nem em sonhos repousa’.
Vou perguntar até que interpolado 
e ininteligível tudo se ordene 
como oração em línguas 
e em forma de um cansaço me abençoes.

In A DURAÇÃO DO DIA, São Paulo: Record, 2010, p. 96.


Amadeo de Souza Cardoso

sábado, 18 de maio de 2013

João Luís Barreto Guimarães

Os lugares na cama
Adormecemos juntos acordamos
apartados
disputamos o lençol como quem puxa a razão para si:
a quantos beijos estamos hoje de distância?
De manhã a voz é lenta chega
a chegar atrasada (a
cama feita a correr não
vá a empregada encontrar caída
entre lençóis
a palavra proibida). Se
os braços devem cair ao
longo da fadiga de um corpo
que seja ao longo do teu
(tu não me olhes assim
com o ruído dos olhos:
os beijos desarrumados depois
de os utilizares)
por favor fica a meu lado. Quero
que sejas tu o
parente mais chegado.

In Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2011, p. 191.

Uma emergência de outono
As cores da maçã assada aberta
pelo fim do verão antecipam no palato
uma emergência de outono.
Convida a ficar por casa
esta maçã que feri e salpiquei pelo torso
com cézannes de canela.
Sob a epiderme tisnada (cor
amarelo-pecado) é
perene o seu sabor. Vê só
como jazem nuas
suas vestes pelo prato
(qual roupa de rapariga desbragada
pelo chão).

[In Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2011, p. 294]

Blog do autor


Paul Cézanne

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Hilda Hilst

Excerto de "Com os meus olhos de Cão"

Edvard Munch
Percebo que tenho a cabeça demasiado inclinada para o lado esquerdo. Tento fazê-la voltar ao centro. Vai gradativamente inclinando-se para a esquerda. E o fato de eu estar em pé também me preocupa. Como é possível que possa manter-me em pé? Ficaria mais cômodo de quatro, os olhos raspando o chão, as mãos bem abertas coladas à superfície das ruas. Me daria maior seguran­ça. Agora devo entrar no carro. Vou à casa de Isaiah. Sempre nos compreendemos apesar de quase nunca nos falarmos. É certo que ele vive com a porca e pare­cia estar bem da última vez. E por que não viver com hilde? Um nome germânico. Deve ser loira. Quero dizer deve ser uma porca branca. São mais raras. E o que vou dizer a Isaiah? Daquilo. Ele vai perguntar: tende ao zero? As ruas movimentadas. Cinco horas da tarde, vejo no relógio da avenida. Paro num sinal. Um homem velho carregando livros e papéis fica em dúvi­da se deve atravessar. Um dos papéis vai ao chão. Um outro homem agacha-se para ajudá-lo. E não é que se conhecem? Sorriem. Dão-se calorosamente as mãos. O que se agachou coloca as mãos sobre os ombros do velho. As pessoas desviam-se dos dois e fazem caras mal-humoradas. O velho parece explicar alguma coisa sobre os papéis. Está agitado. Não é possível, ele está chorando. As buzinas atrás de mim. Avanço. Olho o retrovisor. Aquele que se agachou aponta para o ve­lho, o quê? O bar da esquina. Perco-os de vista. Estou comovido e tenso. Eu mesmo mostrando os meus papeis a um outro alguém e assim em desespero? Minhas equações. Esperanças: Amós Kéres, matemáti­co, expôs hoje aos meios científicos a sua concepção de um universo unívoco. Físicos e matemáticos cumprimentam-no, logo mais no jornal das onze. Quase atro­pelo um cachorro. Enfim Isaiah. As calças surradas, o pulôver preto, hilde vem logo atrás. Vários pares de olhos sobre nós. Os vizinhos. Os olhos de hilde sobre mim. Isaiah: entra meu amigo, entra, hilde entra tam­bém. Você se lembra dela não? hilde roça minhas per­nas. Igual os gatos. Digo extraordinária e sempre muito graciosa assim? Oh sempre assim diz Isaiah. Triângulos de acrílico suspensos do teto. Uma grande mesa e mui­tos papéis preenchidos com tinta roxa. Não te pertur­bo? Amós há vinte anos que ninguém me perturba, há vinte anos estas roxas esperanças e a única surpresa resolvida foi a chegada de hilde. Um lindo não evidente.   Em seguida: o que há com sua cabeça, é torcicolo? Vem, te senta, toma vinho, quer? Digo que sim e conto- lhe tudo: a colina, a ponta dos sapatos, as formigas, o pensamentear sobre os sons e aquilo de significado incomensurável.
Tive uma vez algo parecido. Mas vi formas. Quais?
Poliedros. Resplandeciam.
E então?
Então compreendi que só existem poliedros. Eu mesmo não existia. Até hoje tenho certeza disso.
De quê?
Certeza de que não existo. Foi um alívio. Porisso posso viver com hilde. Ela, bem vês, também não é um poliedro. Não existimos, compreende? Estamos muito feli­zes. Beba, Amós. Esperança. Não arranque os frutos verdes. Beba. E importado esse aí. Kadek me deu toda adega, não se lembra? Pobre amigo, almejava parecença. Dizia que o exato era ser pinguço como todos nós aqui onde vivemos. Só cachaça. Lucrei. Mesmo não existindo me deleito. Beba. Amanhã vens buscar o carro. Bebo. No quinto copo tento uns poemas. No décimo termino-os. Então leio em voz alta:

Vértice Aresta e Face
Vi o suspiro da ave.

Hilda Hilst, Com os meus olhos de cão, São Paulo, Ed. Globo, 2006, pp. 42-44

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Mariana Ianelli

Contos Capitais
São Tomé e Príncipe
Excerto de "João Menino e o Poeta das Ilhas". 

Releio-te agora amigo
na terra que engrandeceste
e procuro apreender
no meu ser o que escreveste.
(Ruy Cinatti)

I


No ano de 1520, nem a cidade havia sido edificada nem os bosques arroteados e João Menino já vivia em São Tomé. Tinha chegado com os primeiros negros trazidos da costa da África para povoar a ilha, e aos poucos viu nascer a cidade a que chamavam Povoação. Viu mais de cinquenta engenhos serem construídos, viu as canas plantadas e cortadas, o suco fervendo nas caldeiras, a colheita do milho, o cultivo do inhame. Viu João Menino que a terra ali era tão boa que também nela grassava a tristeza. Que era uma terra forte, gorda, pronta para responder ao que quer que se plantasse nela, fosse uma figueira, um meloeiro ou uma cidade. João Menino viu a tristeza nascer com a cidade. Ele sabia que os negros morriam nos meses de vento, não porque o corpo já não aguentasse, mas porque nesses meses se alastrava no ar uma dança oculta que, se alguém dançasse, ia embora com os espíritos. Isso João Menino não contou para o piloto português porque era coisa do seu sangue ioruba, e como sangue devia ser também segredo. Mas contou outras coisas, que o piloto português, por ser homem do mar e fiel obediente do rei, cuidou de transformar e recontar à sua maneira naquela carta sobre a ilha de São Tomé endereçada ao conde Rimondo Della Torre. Por cinco vezes o piloto esteve em São Tomé e nas cinco vezes encontrou o velho negro, tão velho e tão negro quanto podem ser os segredos dos homens das ilhas. Os negros não faziam caso de doenças como a sarna e a sífilis, é o que diz a carta, que «algumas mulheres negras, com uma pouca de pedra-ume e de solimão, fazem um emplastro e usam dele juntamente com a água de certas raízes que dão a beber». A respeito do regato da cidade, cujas águas eram férteis como a terra e, sendo claras, podiam fazer renascer, a carta diz somente que «se não fosse a excelência e bondade deste regato, não se poderia viver em São Tomé». Assim que, entre um relato e outro, ficava guardada a força dos antepassados dos forros, que chegavam aos cem anos enquanto portugueses, franceses e genoveses ali mal passavam dos cinquenta. Não se tem notícias da identidade do piloto, apenas sabe-se que vinha de Lisboa a São Tomé carregar açúcar e que nesta viagem se passava o inimaginável da mais crua realidade de que se fazem todas as odisseias: a tormenta à altura do Bojador, os infinitos tubarões, os jardins de romeiras, laranjeiras e palmeiras nas ilhas de Cabo Verde, e ainda inumeráveis províncias e países com seus reis e suas guerras e suas almas imortais, tudo isto se via no caminho, cavalos-marinhos, crocodilos, e ainda as estrelas do Cruzeiro, muito altas, e as névoas brancas da lua quando os navios aportavam em São Tomé.

Era assim que o piloto português alcançava o seu destino, como um descobridor de histórias, lendas e visões com as quais, além do açúcar, carregava os seus navios. Seus relatos de viagem, depois de quatro séculos, ressurgiram em Portugal e se juntaram aos documentos acerca dos primeiros tempos da ocupação de São Tomé, tempos do velho negro João Menino, que viu a tristeza nascer com uma cidade desde as primeiras palmeiras da Etiópia e outras vidas transplantadas para esse pedaço de exílio, essa terra esbatida pelas chuvas e pelos ventos, terra ardente por dentro, sumarenta, luxuriante de raízes.

[Mariana Ianelli, João Menino e o Poeta das Ilhas, in Contos Capitais, Lisboa, Ed. Parsifal, 2013, pp. 51-54]

Foto de Marcelo Teixeira

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Jorge Luis Borges


OS JUSTOS
Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um 
          silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não 
          lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de 
          certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o 
          mundo.

Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 346

terça-feira, 14 de maio de 2013

Ruy Belo

ACONTECIMENTO
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou

 in Aquele Grande Rio Eufrates


Vincent van Gogh

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Mariana Ianelli

Hás de partir sem demora 
A cada instante acordarás em outro campo
E verás em ti a emoção de uma outra face.
Nenhum pacto entre irmãos largados à prova do tempo
Resiste à intenção final do desenlace.
O infinito sonho da memória
Se alimenta das coisas desprezadas
Extraindo delas o espírito
De uma única procura que não morre.
Uma ave de rapina encarnou-se no teu peito,
Armou os teus braços de asas grandiosas
E lançou voo à espreita da carniça
Mudando sempre o teu itinerário
De sorte que não mais te acostumaste a um só crepúsculo,
Nem à paz que a água recende quando brota.
No teu lento caminhar não se percebe
O quanto já avançaste e por onde,
Em verdade pouca lembrança resta
De uma subida espinhosa ou de um atalho
Porque antes os teus olhos de menino
A nada terão se apegado.
O anseio de atravessar as terras novas
É apenas o que existe em ti
Para ser indefinidamente reavivado.
E tudo o que amas com fervor
Reside no absoluto esquecimento do passado.

Passagens, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 67

Vibração em Azul
Arcangelo Ianelli

domingo, 12 de maio de 2013

García Lorca

SOLIDÃO INSEGURA (Noite)
Noite de flor fechada e veia oculta.
— Amêndoa sem coalhar de verde tato —
Noite cortada por demais depressa,
as folhas e as almas abalava.
Peixe mudo pela água de amplo som
lascivo se banhava no tremente,
luminoso marfim, recém-cortado
ao da lua chavelho adolescente.
E se o centauro canta nas ribeiras
deliciosa canção de trote e flecha
ondas recolham glaucas seus acentos
com uma dor de nardos sem limites.
Lira bailava na fingida curva,
alvo imóvel de imóvel geometria.
Dormem na escuridão olhos de lobo
renunciando ao sangue das ovelhas.
No lado oposto, Filomela canta,
umidades de heras e jacintos,
com  no ar uma queixa de Sul louco
sobre a da fonte flauta fixada.
Enquanto em meio do sombrio horror
fingindo cantos e aguardando medo
voz inquieta de náufrago soava.

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Lírios de espuma cem e cem estrelas
baixaram porque ondas não havia.
Seda em tambor fica reteso o mar,
enquanto Tetis canta e soa Zéfiro.
Palavras de cristal e brisa escura
redondas sim, os peixes mudos falam.
Academia no claustro dos íris
sob o êxtase denso e penetrável.
Chega bárbara ponte de delfins
onde a água se transforma em mariposas,
colar de pranto nas areias finas,
sem braços a voar à cordilheira.

............................................................
Rola gelada a lua, quando Vênus
com a cútis de sal na areia abria
brancas pupilas de inocentes conchas.
A noite cobre seus precisos rastros
com chapins feitos de fósforo e espuma.
Enquanto hirto gigante sem latido
raspa as espáduas tépidas sem vênera.
O céu exalta cicatriz borrosa,
vendo mudada sua carne em carne
que participa da funesta estrela
e o molusco de medo sem limite.

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Federico Garcia Lorca, Romanceiro Gitano e outros Poemas, trad. Oscar Mendes, Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1974, pp. 228-229



sábado, 11 de maio de 2013

Mariana Ianelli

CANTO DO ESTRANGEIRO
Viria como um rei
Se fosse por vontade tua —
Tão remoto no tempo
Da tua vida
Que nem te tocasse —
Viria com a alvorada,
Quase miragem debuxada
De uma ave
Sobrevoando a tua história.

Sem te possuir
Nem te pertencer,
Para o teu prazer um aceno
O mais natural
Seria o meu sinal no longe,
Isento de paixões
E cheio de glória:

Nada semelhante
À paz que sucede as guerras
No regresso de um Ulisses
Vagabundo,
Exausto de triunfo, como eu
Que penetro o teu mundo
Envolto em sombra
E para sempre me despeço
Ao desfiar a púrpura
Que a espera pôs
Nas tuas pálpebras.

In Treva Alvorada, São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 63.


Arcângelo Ianelli ( 1945)
Desenho a carvão
55 x 43 cm

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ivan Junqueira

PENÉLOPE: CINCO FRAGMENTOS

I
Pois foi aqui, nestas areias, 
entre estes íngremes granitos, 
que o aprisionaste em tuas teias
de astutos fios infinitos.

Sim, foi aqui. Ele partira
de sua ítaca nupcial.
Trirremes rumo a Troia, a pira
dos deuses no ermo litoral.

Por três anos, da mesma lã,
fiaste em surdina a infinda tela.
Tudo era espera, ó tecelã!
No horizonte nem uma vela.

Agulha e linha, o teu destino
era o ir e vir daquele fio,
pêndulo amargo, áspero sino
vibrando inútil no vazio.

O que é de Ulisses, o Odisseu,
suspenso no arco das espumas?
O que é do herói, o que é do teu
esposo envolto pelas brumas?

Sob o penhasco que anoitece,
o som das ondas vai rolando.
Penélope tece e destece.
O mar é onde, o tempo é quando.


II
Diz a lenda que o cenário 
era fluído, imaginário:

À sua roda, os aqueus, 
e ela, virtuosa, entre véus.

Dá-la-ia o pai ao que fosse 
o mais arguto e mais doce,

ao que mais luz ostentasse 
no aço da astúcia e da face.

Levou-a Ulisses nos braços, 
entre as algas e os sargaços;

levou-a. O gume das vagas 
se fundia ao das adagas.

Levou mar afora a esposa
e agora em Ítaca a pousa

como um pássaro glorioso, 
em meio às plumas do gozo.

Penélope o olha no rosto:
o herói faísca ao sol-posto.

De Icário a esplêndida filha 
põe o pé e o cetro na ilha.


III
Cingida pelas ondas, ítaca flutua
como a côncava nau de um rei no mar violeta.
Além das vinhas e olivais, a escarpa nua,
a névoa, a espuma, o espaço, a dura linha reta.
Em silêncio, Ítaca recorda: havia um poeta,
e um tempo de discórdia sob o sol e a lua.
E uma rainha havia. E havia mais: a sua
volúpia de estancar as horas na ampulheta.
Errava Ulisses sobre o imenso e rude oceano,
e em seus domínios os aqueus, agora em bando,
iam-lhe os bois e os bens aos poucos devorando.
Absorta e fiel, os dedos ágeis sobre o pano,
Penélope tecia o intérmino sudário.
E o sono lhe era o esposo no átrio solitário.

IV
We are the hollow men.
T. S. Eliot

Nós somos os pretendentes,
o espírito ermo de arrojo,
a cupidez entre os dentes,
a fronte ungida de nojo.

Nossas vozes sem doçura
são como um coro de esgares
cuja surda partitura
suja o branco dos altares.

Não temos nome ou semblante.
Somos todos uma escória,
Uma anônima e arrogante
Poeira rala e sem memória.

Em nossas mãos, dardo ou lança
nada valem: são brinquedos;
mais do que nós, uma criança
lhes sabe o gume e os segredos.

Aqui estamos, ó rainha,
e não há quem nos demova;
aqui estamos, na bainha
de teu corpo e tua alcova.

Ai de nós, homens sem flama!
A esposa fiel trapaceia:
fia ao sol a infinda trama
e à noite desfaz a teia.

Foi-se Ulisses: sua nau
afundou no mar vinhoso.
Quando, ó Penélope, o sal
provaremos de teu gozo?

Nós somos os pretendentes,
a alma ambígua, o olhar oblíquo
— somos o cume e as vertentes
do que há de mais iníquo.

V
Só. Estou só. O mar que me circunda
é um dédalo de arcaicas escrituras,
de alígeras e esfíngicas criaturas
cujo perfil o azul do oceano inunda.
Meu rei se foi. Em que ânforas e agruras
agora, em desespero, ele se afunda?
Que ninfa o enfeitiçou, que água profunda
lhe enche de horror as órbitas escuras?
Ó doce e astuto Ulisses, tuas vinhas
sangram de dor, definham as espigas,
o ouro esfarela, enfezam as olivas
e a terra seca engole os bois que tinhas.
Só. Estou só. Tudo em redor esquece:
o olho que chora, a alcova, a mão que tece.

Junqueira, Ivan. Poemas Reunidos, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999, p. 168-175.



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...