quinta-feira, 26 de abril de 2012

Wislawa Szymborska

A ALEGRIA DA ESCRITA

Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vai beber da água escrita
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade
sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio - também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra "bosque" originou.
Na folha branca se aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.
Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.

Esquecem -se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voa.
Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.

Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?

A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal.

[Poemas, Trad. Regina Przybycien, Companhia das Letras: São Paulo, 2011, pp. 36-37]




segunda-feira, 23 de abril de 2012

Adélia Prado

CONSTELAÇÃO
Olhava da vidraça
derramar-se a Via Láctea
sobre a massa das árvores.
Por causa do vidro,  da transparência do ar,
ou porque me nasciam lágrimas,
tinha a impressão de que algumas estrelas
mergulhavam no rio,
outras paravam nos ramos.
Passageiros dormiam,
eu clamava por Deus
como o cachorro que sem ameaça aparente
latia desesperado na noite maravilhosa:
Ó Cordeiro de Deus, Ó cruzeiro do Sul,
Ó Cordeiro, Ó Cruzeiro!
Como o cão minha língua ladrava
à aterradora beleza.

[A duração dos dias, p. 87]





Marly de Oliveira

E se houvesse uma missão


secreta para cada um de nós,
uma senha, um pacto anterior
à própria vida, que vivemos, lassos,
indecisos no mal como no bem,
se bem e mal são forças separáveis?

Vivendo cumpro o meu destino,
ou me cabe fazer o que não sei,
mas vou aos poucos descobrindo,
como a luz se insinua pelos vãos
de janelas e portas, ainda que ferozmente fechadas?

Aliança, p. 63





Marly de Oliveira

Nel mezzo deI cammin di nostra vita,

eis que me encontro numa selva escura,

com tanta fera à espreita

dentro de mim, que por pouco

não sucumbo. Perdi também o caminho, ou entrei por um desvio

onde só havia cardos?

La rencontre manquée de Lacan,

o ser-para-a-morte de Heidegger,

o rio do sangue de Rilke,

a loucura de Hölderlin/Nietzsche, os labirintos de Borges,

tudo se junta e me condena

a refletir sem trégua. A minha pena vem de ainda não saber

o que me trouxe aqui.


Aliança, p. 62


Marly de Oliveira

Contudo, creio em mim, asseguro
que tenho amor, que me invade em momentos de fraqueza
a força da fraternidade.
Investigo, indago, insisto
no projeto de encontrar-me.
Quem sabe de mim, quem me vale?
O diamante mais precioso
não me seduz, nem me rapta
o tesouro que é dado e retirado.

Believe me,
eu não era assim.
De resto, basta lembrar
que o sonho mais desordenado
e sua riqueza singular,
o pensamento perdido
em seus amplos labirintos,
denunciavam logo a mensagem
terna da aprovação.
Hoje sei que nem tudo é doação,
o consolo não vem de onde se espera.
No entanto, a primavera ...

Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 18


Marly de Oliveira

Perdi a capacidade de assombro mas continuo perplexa:
esta cidade é minha, este espaço que nunca se retrai,
mas onde o ardor da antiga chama, que me movia no mínimo gesto?
Esperei tanto, no entanto, esvaem-se na relva, ao sol, no vento,
os sonhos desorbitados,
parte da minha natureza
sempre em luta com o fado.
Perdi também no contato com o mundo,
pérola radiosa, vão pecúlio, uma certa inocência;
ficou a nostalgia de uma antiga união com o que existe,
triste alfaia.

[Marly de Oliveira, Aliança,  Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1978, p. 17].

Virginia Woolf


 O Quarteto de Cordas

 

Bem, aqui estamos, e basta darmos uma olhada pelo salão para percebermos que trens de metrô, bondes e ônibus, os não poucos carros particulares e até mesmo, arrisco-me a acreditar, landôs puxados por baios, estiveram ocupados com o concerto, tecendo fios de um extremo de Londres a outro. Contudo começo a ter as minhas dúvidas.

Se de fato é verdade, como andam dizendo, que a Regent Street se ergueu, e o Tratado foi assinado, e o tempo não está muito frio para a estação do ano, e que mesmo com esse preço não se encontra um apartamento para alugar, e que o pior da gripe são seus efeitos posteriores; se me lembro de ter esquecido de escrever sobre o vazamento da despensa, e deixei as luvas no trem; se os laços de sangue me obrigam a, curvando-me, aceitar  com cordialidade, a mão que se oferece, talvez, com hesitação…

— Faz sete anos que não nos vemos.

— A ultima vez foi em Veneza.

— Onde está morando agora?

— Bem, o entardecer me convém mais, se é que não estou pedindo demais.

— Reconheci-o logo que o vi!

— No entanto a guerra forçou uma interrupção…

Se pequenas setas como essas varam o pensamento e — pois a isso força a sociedade humana — nem bem um se estabelece o outro começa a pressionar; se isso gera calor e além do mais ligam a lâmpada elétrica; se dizer determinada coisa, no mais das vezes, faz esquecer a necessidade de perfeição e reconsideração, excitação ao lado de tristezas, prazeres, vaidades e desejos — se são esses os fatos a que me refiro, e mais chapéus, boás felpudos, fraques de cavalheiros, alfinetes de gravata de pérola que emergem à superfície — então, o que pode haver de acaso?

O quê? A cada minuto torna-se mais difícil dizer por que, apesar de tudo, me sento aqui acreditando poder agora dizer não sei o quê, ou ainda lembrar-me da última vez em que aconteceu.

— Você assistiu ao cortejo?

— O rei parecia indiferente.

— Não, não, não. Mas como foi?

— Ela comprou uma casa em Malmesbury.

— Que sorte ter encontrado uma!

Pelo contrário, tenho quase certeza de que ela, seja ela quem for, esta furiosa, já que tudo é uma questão de apartamentos, chapéus e gaivotas, ou assim parece a uma centena de pessoas bem vestidas que aqui se sentam fortificadas, forradas de pele, saciadas; não que eu possa gabar-me, já que também me sento, passiva, numa cadeira dourada, mal revolvendo a terra que cobre uma memória esquecida, como todos fazemos, pois se não me engano há sinais de que todos recordamos alguma coisa, na busca furtiva de alguma coisa. Mas por que a inquietação?  Por que tanta preocupação com o caimento dos casacos; e as luvas — abotoar ou desabotoar? Observo então os rostos envelhecidos voltados para a rotunda, há poucos instantes polidos e corados; agora taciturnos e abatidos, como imersos em sombras. O que ouvimos foi o som do segundo violino sendo afinado na antecâmara? Ei-los que entram; quatro figuras de preto portando instrumentos e que se sentam ante os quadrados brancos sob a luz transbordante; apoiam as pontas dos arcos nas estantes; num movimento simultâneo, levantam-nos; equilibram-nos de leve sobre as cordas e o primeiro violonista, olhando para o músico em frente, conta um, dois três…

Floreio, salto, rebento, eclosão? A pereira no topo da montanha. Jatos de fonte; gotas que descem. Mas as águas do Ródano escorrem vívidas e velozes, correm sob os arcos e varrem os rastos de folhas fluviais, lavando de sombras os peixes de prata; águas velozes que arrastam os peixes pintados, agora varridos para dentro de um remoinho onde os peixes se amontoam num lago; saltam, chapinham, raspando barbatanas afiadas; e é tal a ebulição da correnteza, que os calhaus amarelos giram e reviram — livres agora, precipitando-se, ou de algum modo ascendendo em raras espirais ar adentro; caracolados como lascas de madeira sob a plaina; sempre mais altos… Quão adorável é a virtude naqueles que, pisando mansamente, passam sorrindo pelo mundo! Também as alegres peixeiras envelhecidas, acocoradas sob os arcos, velhas obscenas, quão vivamente gargalham e gingam e folgam ao andarem de um para o outro lado, hum, há!

— Sem dúvida, isso é um Mozart iniciante.

— Mas a melodia, como todas as melodias dele, causa desespero, digo, esperança. Que quero dizer com isso? Eis o pior da música! Quero dançar, gargalhar, comer bolos cor de rosa, bolos amarelos, beber vinho suave e estimulante. Ou, agora, ouvir uma história indecente — sim, poderia apreciá-la. Quanto mais se envelhece, mais se aprecia a indecência. Ah, ah! Estou rindo. De quê? Ninguém disse nada, nem o cavalheiro da frente — mas imagine, imagine — Silêncio!

Leva-nos o rio melancólico. Quando surge a lua entre os ramos do salgueiro, vejo seu rosto; ouço sua voz e o canto da ave, quando passamos aos pés do vimeiro. Que está sussurrando? Pesar, pesar. Prazer, prazer. Entretecidos, inextricavelmente mesclados, presos em penas e dispersos em pesar — craque!

O bote naufraga. Emergindo, os vultos ascendem, mas agora folhas fluidas, esgarçando-se em sombria aparição que, inclinando-se flamejante, arranca do meu peito sua redobrada paixão. Para mim ela canta, desprende-me o pesar, liquefaz a compaixão, inunda de amor o mundo negro, e cessa; mas assim não anula sua ternura, antes hábil, sutilmente, tece de dentro para fora nesse desenho, nesse acabamento, e une as fissuras; sonho, soluço, descanso no imerso, pesar e prazer.

Por que então o lamento? Pedir o quê? Permanecer insatisfeito? Digo: tudo está posto; sim; sepulto sob uma colcha de pétalas de rosa cadentes. Cadentes. Ah, mas cessam. Uma pétala de rosa, caindo de grande altura, qual pequeno para quedas solto de balão invisível, volteia e esvoaça vacilante. Sem nos alcançar.

— Não, não. Não percebi nada. Isso é o pior da música, esses sonhos tolos. Você estava dizendo que o segundo violino atrasou?

— Lá está Mrs. Munro, tateando o caminho — cada dia mais cega, pobre mulher — nesse chão escorregadio.

Velhice sem olhos, esfinge grisalha… Ela parou na calçada, e acena, rigidamente, para o ônibus vermelho.

— Que maravilhoso! Como tocam bem! Como, como, como!

A boca é apenas aplauso. Simplicidade em si mesma. As penas do chapéu vizinho são luzentes e agradáveis como a algazarra de uma criança. A folha do plátano brilha verde através da cortina entreaberta. Muito estranho, muito excitante.

— Como, como, como! Silêncio!

Estes sobre a relva são os amantes.

— Ah, senhora, se acaso tomasse da minha mão…

— Confio-lhes o meu coração, senhor. Além do mais, deixamos nossos corpos no salão de banquete. Os corpos sobre a relva são as sombras de nossas almas.

— Sendo assim, estes são os abraços de nossas almas. Os limoeiros acenam consentindo. Os cines afastam-se das margens e sonhadores flutuam ao meio da correnteza.

— Mas voltemos. Ele seguiu-me pelo corredor e, ao dobrarmos a esquina, pisou nas rendas da minha saia. Que podia fazer senão exclamar “Oh” e, detendo-me, recolhê-las? Nisso desembainhou a espada, fez passes no ar como que a ferir alguém até a morte e bradou: “Louca! Louca! Louca!” Ao que gritei, e o príncipe, que escrevia no enorme livro de pergaminho junto ao balcão envidraçado, acudiu com seu boné de veludo e de chinelos forrados, arrebatando da parede um florete — presente do rei da Espanha, como se sabe, e, nisso, fugi, cobrindo-me com a capa para cobrir os danos da saia — para esconder… Mas escutem! As trompas.

O cavalheiro responde tão prontamente à senhora, e esta reconsidera com tão arguto cumprimento, que ora culmina num soluço de paixão, que as palavras saem confusas, embora de sentido bastante claro — Amor, riso, fuga, perseguição, ventura divina — e tudo flutuou sobre a mais alegre vibração de suave carícia — até que o som das trompas de prata, em princípio distante, soou aos poucos, mais e mais distintamente, como se senescais saudassem o crepúsculo ou proclamassem, ominosamente, a fuga dos amantes… Jardim viçoso, lago enluarado, limoeiros, amantes e peixes, todos se dissolvem no céu de opala, no qual, à medida que as trompas se unem as trombetas e os clarins as apoiam, erguem-se, cruzando-o, arcos brancos solidamente plantados sobre pilares de mármore… Passos pesados e toque de trombeta.

Clangor e glangoreio. Firme estabelecimento. Forte fundamento. Marcha de miríades. Confusão e caos trituram a terra. Mas a cidade para a qual viajamos não tem pedra nem mármore; preserva-se; persevera; nem rosto nem bandeira saúdam ou acolhem. Que pereça, pois a esperança; desfaleça no deserto meu prazer; um avanço desnudo. Os pilares despidos, a ninguém auspiciosos, não deitam sombras; resplandecentes; austeros. Então volto, não mais ansiosa, apenas com o desejo de partir, encontrar a rua, observar os edifícios, saudar a vendedora de maçãs, dizer à criada que abre a porta: está uma noite estrelada!

— Boa noite, boa noite. Vai por aqui?

— Que pena! Vou por ali.

Fonte: escritorasinglesas.wordpress.com


Virginia Woolf

"O quê?"

"Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações, coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era excluído; e uma coisa era certa - felicidade. Mais tarde porém, quando a gente os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros. Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contra-senso."

"Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. Tão frio deve parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.' Isso é bom senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo compromisso - tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de acreditar que há alguma coisa para descobrir. 'Contra-senso', você diz; querendo dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o tentar."

"A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam quando é jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar."

"Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado."

"Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento."

V. Woof - Contos completos, Cosac Naify, 2005, p. 129.


domingo, 22 de abril de 2012

Alexandre Magno da Silva

Há um tempo perdido o vento nunca fora tão forte. Suas raízes envolviam a terra, agrupando-se juntas em um abraço de agonia. Sua consciência vegetal despertara lentamente dias antes com o silvo da ventania que já vinha longínqua e em toda a sua força natural, acalentada por uma longa vida, teve medo com o declínio repentino das próprias forças. Sabia que seria a sua última tempestade e sentiu curiosidade: de onde ela viria? O que a alimentava? O que havia visto em seu longo trajeto até aqui, neste lugar esquecido pelo mundo e pelo homem?

Havia nuvens em todo o espaço atmosférico a sua volta e elas corriam oprimidas pela força selvagem de mãos invisíveis cujo aperto era irresistível. Chocavam-se umas as outras gritando eletricidade e vertendo um desabamento intempestivo por toda a terra. Ela observava suas folhas soltando-se uma a uma e voando para longe dela como fios de cabelo feitos da mais pura prata e seus nervos comprimiam-se em conjunto para agarrar o solo como um doente ao seu colchão nos instantes de estertor. A dor que sentia não era maior do que a sua capacidade de esperar.

A água descia das encostas formando uma corrente de aço que a obrigava a se contorcer em direção contrária, usando todo o seu peso descomunal para não ser carregada. Uma a uma, as raízes mais profundas iam cedendo vindo dar a luz natimortas. Aves adejavam até o mais recôndito do seu interior procurando abrigo e calor, a maioria exausta diante da luta violenta contra o vento e a chuva. As pequenas criaturas encolhidas e perfiladas emitiam um canto de pavor e pesar. Ela podia sentir o peso da existência de cada uma delas assim pousadas sobre seus ombros. Era preciso esperar.

A longa duração da vida desvendara-lhe o segredo da espera. O seu tempo girava em ciclos, como o de todas as criaturas sobre a terra, mas ela aprendera que para todos os seres sencientes há uma relação subjetiva com as circunstâncias, formada pelo que está vivo em cada um. Haviam coisas ao seu redor que ela aprendera a amar, observando-as com vagar. Muitas dessas coisas ela acabou tomando-as como parte de si própria, numa tentativa de confundir-se com o mundo. Ainda muito jovem, descobriu que pensar sobre uma razão de existir lhe parecera coisa inútil, mas, com o passar do tempo, lhe era cada vez mais nítida a impressão de que a sua finalidade como criatura entre criaturas era persistir e perseverar, por algum motivo exterior a ela. A sua condição natural lhe reservara uma vida longa de tal modo que ela podia observar atentamente cada mudança que sofria com o passar dos anos, o que a contentava. Mas ela aprendeu a lastimar a breve vida do mundo que a cercava. E a amá-lo também por isso.

A cada minuto que transcorria a tempestade se intensificava. Como se os céus estivessem em total desacordo com a terra, lutavam ambos como titãs pelo direito às criaturas de cada lado e por força das circunstâncias as quais ela não era responsável, estava em meio a tudo. Fora jogada naquele ermo entre sementes, a dela a única obstinada o bastante para se fortalecer e vingar. De tal forma o fez que se tornou a mais longeva e a maior em beleza e força. Ela levara séculos para ver desabrochar em si cada pequena transformação, não havia uma única emoção que não tivesse perscrutado com a curiosidade de um pássaro que observa crescer as próprias asas. Aprendera a ficar de tal forma absorta em si mesma que para abrir os olhos passavam-se dias, no entanto, tudo o que aprendia e observava ficava guardado para sempre no mais profundo da terra na qual arrancara a própria vida, e se tornara sábia, por gratidão ao tempo vivido. Em meio à algaravia da batalha entre céus e terra ela tinha consigo um único pensamento: aguardar.

E ela esperou, durante quatro dias e cinco noites, esperou.

A dor que sentia era tal qual a de um navio açoitado por vagas incólumes em meio a vastidão do mar. Jogada de um lado para outro ela sentia o peso de si própria consumindo sua força interior. Como se puxada pelos cabelos era arrastada para baixo emudecida em meio a algazarra das ventanias. Galhos se soltavam e ao longe eram arremetidos e sua casca se partia aos poucos fazendo nascer o suplício do fim. Uma descarga elétrica alcançara o chão próximo queimando as raízes mais distantes. Pedaços de madeira eram arrancados por um machado cujo som podia ser ouvido trabalhando incansavelmente ao longo das noites e dos dias. Como nascera muda, muda sofria a conclusão de si mesma.

Na terceira noite, voltou a fechar os olhos para poupar energias e relembrar por um último instante a vida que tivera. Na quarta noite, sonhou que era um ramo levado por uma pomba em meio ao céu claro. Na quinta noite temeu estar enlouquecendo quando se deu conta que o seu corpo não era mais seu. Era a hora.

Durante quatro dias e cinco noites, esperou.

Quando enfim avistou o céu se abrir e pequenos raios de luz solar foram brincar de iluminar as gotas que caiam de suas folhas ela estava pronta para finalmente aceder. Tinha visto a luz, por um último instante, menos que breve para a sua tão longa vida. De longe pode-se ouvir o seu desabamento como se único, estrondoso e repentino trovão atravessasse o sol do meio dia. Em seu lugar, menos que repentinamente, nasciam flores sem parar, como se um veio d’água pudesse rebentar brotando para sempre.

Fonte:http://palavraguda.wordpress.com

Alexandre Magno da Silva

As coisas se mantêm vivas até que os últimos olhos que as puderam ver se fecham, para sempre – J.L. Borges

Da sala de TV ouviu apitando a fumegante chaleira. Arrastava os pés revelando o cansaço. Logo o seu chá estaria pronto e aguardava ansiosamente por uma noite bem dormida, sem sons invasivos dos jovens vizinhos, dos casais que chegam em casa para a mesmíssima discussão – porque eles voltam sempre? – os barulhos dos calçados no andar de cima e os jovens amantes no corredor às gargalhadas. Sr. Albuquerque sofria por ouvir demais, e por isso não havia paz no mundo que lhe reservasse o digno e merecido repouso. Um beberico ou dois no seu chazinho e os lençóis puxados até os ombros ossudos, estreitos como se fossem feitos para caber numa cama de criança. Sr. Albuquerque realmente parecia estar encolhendo nos últimos anos, por fora, por dentro.

Ah, suspiro! Sentir o cansaço do corpo no alivio do velho colchão de molas, desligar o abajur e sorrir para a paz que nasce no fundo de um dia vencido. Dias difíceis aqueles, coisas da saúde. Não adiantava fingir para si próprio, logo chegaria a sua vez e tudo o que ele mais queria era descansar um pouco, de verdade, uma noite bem dormida, naturalmente, antes de chegar a sua vez de se despedir em definitivo.

Acontece que dormia pouco. Ouvia ruídos o tempo todo e cada um deles invadia seus sonhos, e no momento certo, eles sempre o despertavam. Era exaustivo. Sonhara com o som de ratos correndo com seus olhinhos vermelhos pelo forro do quarto e, menos que repentinamente, lá estavam eles roendo os pés da sua cama, seus farrapos de cobertor, suas meias. “Fora!” Despertava nauseabundo, odiava os ratos. Eles realmente não poderiam estar ali, mas seus ouvidos, que ouviam longe, tornavam tudo real, como se o mundo realmente pudesse invadir o seu quarto de pensão usando as chaves que ele guardava cuidadosamente em seus bolsos. Sonhou que um casal de adolescentes copulava feito animais pequeninos e furtivos defronte à sua janela e acabou com ambos o jogando da cama, “fora, fora, fora!”. O que era sonho ou realidade ou imaginação, ele já não sabia mais. Ouvia tudo sem querer fazer parte. E o repouso não vinha.

Um dia, cansado demais para lutar, Sr. Albuquerque sentou-se na cama e pensou, num misto de contrariado e em paz consigo, “está bem”. Decidiu celebrar a derrota. Comprou uma garrafa da sua bebida favorita, foi para a frente do prédio, e se sentou na escadaria, observando a noite que ia se servindo das dores e do tédio de todo o tipo de gente. Não custou muito para que os vizinhos reparassem no estranho comportamento daquele velhinho dado a manter as portas devidamente fechadas. Sem se dar conta, Sr. Albuquerque cantava. Primeiro daquele modo constrangido, quando cantamos apenas para nós mesmos. Depois, a plenos pulmões, com os braços erguidos, feliz como nunca houvera sido:

“Ao longe, ao longe/ carrega o corpo que fica/ não vê que em noite tão bonita/ já é tempo, é tempo!/ de repouso para a vida?”

Cantava tão emocionado que se serviu do coração como se realmente não precisasse dele. Caiu sentado, apoiado sobre a escadaria. Morto como o silêncio que se seguiu. A imaginação e a realidade encontraram no Sr. Albuquerque um recanto comum para uma última partida. Os ratos, sem chiar, roíam os quartos e corredores em respeito. O prédio inteirinho sumiu no meio da noite. Se houve algum som audível em toda a sua cercania, era o som do vento nos cabelos do Sr. Albuquerque que, embriagado de exaustão, ia embora a passos largos, e sorria, e sorria, pela vida que ficava, e pela outra que antevia, no mais puro e cristalino silêncio.

http://palavraguda.wordpress.com/

Alexandre Magno da Silva

Calado ficou. No instante. E o instante o prendeu, como a um inseto em âmbar. Não podia se mover além do alcance do olhar e o momento repentino lhe causou surpresa além da expressão. Alegria sentiu. Um estremecimento. A pele de tudo o que o cercava podia ser atravessada facilmente com todos os sentidos e além deles um sentimento complexo e profundo. E por fora, e por dentro de todas as coisas animadas e inanimadas, havia uma luz que pulsava incessantemente como uma estrela distante que se observa com cuidado. Calado como quem faz amor no escuro e se prende no ritmo da respiração para não perder uma gota do precioso instante em que o gozo é compartilhado repentinamente apenas pelo prazer de o sustentar, equilibrar e amortecer até as franjas dos lençois. Um instante que finalmente se apreendeu muito além da mais ordinária epifania. Eis o verdadeiro silêncio e a mais espessa mudez. Era como comungava a própria travessia quando o esgotamento espargia-se da última fronteira da alma. Era o que entendia por espiritualidade. E era o amor devotado que tinha pelas coisas que já não eram mais.


sábado, 21 de abril de 2012

Jorge Luis Borges

O CÚMPLICE

Crucificam-me e eu devo ser a cruz e os cravos.
Passam-me o cálice e eu devo ser a cicuta.
Enganam-me e eu devo ser a mentira.
Incendeiam-me e eu devo ser o inferno.
Devo louvar e agradecer cada instante do tempo.
Meu alimento é todas as coisas.
O peso preciso do universo, a humilhação, o júbilo.
Devo justificar aquilo que me fere.
Não importa minha ventura ou desventura.
Sou o poeta.

Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 347


Jorge Luis Borges

OS JUSTOS

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de
certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o mundo.


Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 346



Jorge Luis Borges

A CIFRA

A amizade silenciosa da lua
(citando mal Virgílio) te acompanha
desde aquela dispersa hoje no tempo
noite ou entardecer em que teus vagos
olhos a decifraram para sempre
em um jardim ou um pátio que são pó.
Para sempre? Eu sei que alguém, um dia,
irá dizer-te verdadeiramente:
"Não voltarás a ver a clara lua.
Já esgotaste a inalterável
soma de vezes que te dá o destino.
Inútil abrir todas as janelas
do mundo. É tarde. Não a encontrarás".
Vivemos descobrindo e esquecendo
esse suave hábito da noite.
Olha-a bem. Quem sabe seja a última.

Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 363


Adélia Prado

Com referência a encontros sexuais relação é uma palavra feia. Dizer "o ato" é fresco como dizer "o membro", parece médico piedoso falando pra curso de noivos. As palavras do povo, sim, são engraçadas e honestas. Se o Victor e a Arlete vissem este caderno, escreveu Glória - inventando um nome pra Carlos e Lúcia seus compadres - iam cair duros de susto. Acho que até hoje ele fala com a Arlete na hora deles: "Com licença!" Gabriel diz que eles são "os ambos". O Victor desmancou a victorzice dele e a Arlete a arletice dela e os dois misturados viraram "os ambos". A Arlete pegou no Victor e ele nela, igual doença. Combinam do jeito mais enfaroso. Não sabem que são infelizes, que a vida deles é chata e ruim. O Victor me olha é sempre segurando na mão da Arlete, precisa se esconder debaixo da saia dela pra me reparar, olhar as outras mulheres. Prefiro o ódio que eu sinto do Gabriel, às vezes. Prefiro a capina que ele me dá também. Casar pra virar "os ambos" é coisa pra gente boba!

[Cacos para um Vitral, pp. 66-67]


Elizabeth Blaylock


Adélia Prado

Glória teve vontade de estapear Claudina que veio lhe devolver um livro de Guimarães Rosa, dizendo com sua fala embatumada: "Um autor assim não ajuda em nada a melhorar o vocabulário. Ele escreve popular demais." Claudina fazia curso de letras e dizia poblema. Não valia a pena discutir com ela. Glória só perguntou: você sabe quem cria porcos por aqui? Não demora eu vou denunciar o mau cheiro. Claudina saiu logo, achando Glória esquisita. Glória sentiu raiva de Claudina e de si própria por ter raiva de Claudína. Queria ser corno Stella que teria a mesma paciência e bondade com Clarice Lispector e Claudina. Ritinha: a gente morre é de meia, mãe? Glória: será que não fazia mesmo diferença ser enterrado ou não de meias? Este é certamente um problema de vivos. A morte é outra ordem de coisas. Respeitar o desejo do morto é problema de vivos. O que era a morte? Às vezes, o corriqueiro, às vezes o absoluto terrível. Quero girassol e mel.

Ritinha: - Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: - Ihl Choro até secar.

Cacos para um Vitral, p.  65-66




Adélia Prado

A POSTULANTE
Deus tem todo o poder,
até o de,  por um dia inteiro,  me escutar chorando
sem me infligir castigo.
Tenho natureza triste,
comi sal de lágrimas no leite de minha mãe.
O vazio me chama,  os ermos,
tudo que tenha olhos órfãos.
Antes do baile já vejo os bailarinos
chegando em casa com os sapatos na mão.
O jantar é bom,  mas eructar é triste
quase ímpoetizável.
Deveras,  não hás de banir-me do ofício do Teu louvor,
se até uns passarinhos cantam triste.

A Duração do dia, São Paulo, Record 2010, p. 63




Marguerite Yourcenar

EXCERTO DE "FOGOS"
O amor é um castigo. Somos punidos por não termos podido permanecer sós. 
É preciso amar um ser para correr o risco de sofrer por ele. É preciso amar-te muito para me tornar capaz de sofrer por ti.

Não posso impedir-me de ver no meu amor uma forma requintada de deboche, um estratagema para passar o tempo, para esquecer o Tempo. O prazer realiza em pleno céu uma descida forçada, em meio ao ruído de um motor enlouquecido pelos últimos sobressaltos do coração. Planando, a prece se eleva ao céu e a alma ai conduz o corpo na assunção do amor. Para que uma assunção se torne possível, é necessário um Deus. Tens exatamente a beleza, a cegueira e as exigências necessárias para representares o Todo-Poderoso. Fiz de ti, na falta de algo melhor, a chave de abóbada do meu universo.

Os teus cabelos, as tuas mãos, o teu sorriso lembram vagamente alguém que eu adoro. Quem? Tu mesma.

Duas horas da manhã. Nos depósitos de lixo, os ratos roem os restos do dia morto. A cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos noctâmbulos. Onde estás? Em que leito? Em que sonho? Se eu te encontrasse, certamente passarias sem me ver porque não nos vemos em sonhos. Não tenho fome: essa noite não consigo digerir minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear tua lembrança. Não sinto sono: sequer sinto o apetite da morte. Sentada sobre um banco, embrutecida apesar de mim mesma pela aproximação da manhã, deixo de lembrar-me de que tento esquecer-te. Fecho os olhos ... Os ladrões não desejam senão os nossos anéis, os amantes senão a nossa carne, os pregadores senão a nossa alma, os assassinos senão a nossa vida. Podem tomar a minha vida. Desafioos: nada mudarão nela. Curvo a cabeça para sentir abaixo de mim a agitação das folhas... Encontro-me num bosque, num campo ... É o instante em que o Tempo se disfarça em varredor, e Deus, talvez, em trapeiro. Ele, o avaro, ele, o teimoso, ele que não permite que uma pérola se perca entre o amontoado de conchas vazias à porta das tavernas. Nosso pai que estais no céu ... Acaso verei um dia vir sentar-se ao meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés cobertos de lama por ter atravessado Deus sabe que rio para encontrar-me? Ele se sentaria pesadamente no banco, tendo em sua mão fechada um presente muito valioso que seria suficiente para mudar tudo. Abriria os dedos devagar, um após o outro, prudentemente, porque o objeto poderia desaparecer. .. Que traria ele? Um pássaro, um germe, uma faca, uma chave para abrir a caixa que abriga meu coração?

Espírito? Espírito na dor? Há, de fato, sal nas lágrimas.

Medo de nada? Medo de ti.


[In: Fogos, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1983, pp. 148-150]


Adélia Prado

ASCESE E ASPIRINA
Parece que o papa está pensando em canonizar um casal. Adoro o papa, mas torço pra ele não fazer bobagem do tipo: "...  porque mesmo em tal estado (o do matrimônio, onde homem e mulher dormem juntos) não faltam frutos de santidade ... ' Ai, quero ar. Tia Zina a esta hora começa a ficar insuportável, vai me aporrinhar pra valer. Mudei em alguma coisa, sim. Tempos atrás pedia, tira meu medo, Deus. Hoje digo, estou com medo, meu Pai, me abraça. Contudo, continuo pedindo que Ele aumente minha fé. Ontem minha cabeça doia tanto, até tomei umas gotas de navalgina, como diz a Maria Dalva. Achei tão ruim ter tomado as gotas. depois considerei: uma mulher com fé não é uma mulher enfezada e acreditar que novalgina cura dor de cabeça também é milagre. Fiquei livre do escrúpulo de ter procurado alívio, fiquei mais mansa. A Soninha chega a qualquer hora, resolvi ter paciência com ela. que venha e encha quantas latas quiser de pão de queijo, cada um faz o que sabe, não é mesmo? Continuarei a mulher que sempre fui, mas de um jeito, como direi, salvífico, oferecendo ao homem a margem suportável de perigo, mistério e sofrimento. São pensamentos que, se eu escrever ou falar, parecerão copiados. Não fosse tia Zina precisar tanto de mim, ia me dedicar mais a entender eu mesma o que acabei de descobrir. Entre as mulheres a guerra é atômica, nos vários sentidos desta palavra bomba. Tirei isto de onde? Estou rindo de quê? Sabina deixou um recorte de jornal debaixo da minha porta: APARIÇÃO DE NOSSA SENHORA EM MINAS GERAIS! É gozação dela comigo, porque a vidente tem o mesmo nome meu e ela pensa que vou sair correndo para ver a aparição. Boba, Nossa Senhora está na minha casa e é me esperando, pra me ajudar a dar banho em tia Zina, sem fazer careta. Sabina emprega muito mal a palavra mística. Tivesse ela que dar banho em tia Zina, descobriria com quanta água e sabão se faz um santo. Falo sem soberba, não quero menos.


Extraído de "Filandras", Record: São Paulo, 2001, pp. 79-80

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Clarice Lispector

VIDA AO NATURAL
Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que, além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado. O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele, o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece; ele atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O mais que ela faz é às vezes instigá-lo: "aquela acha", diz-lhe, "aquela ainda não pegou". E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha, homem seu que é, e já está atiçando a acha. Não a comando seu, que é a mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.

Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.


Onde Estivestes de Noite, Rocco: Rio de Janeiro, 1999, p. 94

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Marguerite Duras


A MORTE DO JOVEM AVIADOR INGLÊS (Texto Completo)
Marguerite Duras




O começo, o ponto de partida de uma história.

É a história que vou contar, pela primeira vez. A história deste livro.

Creio que é uma direção do escrito. É isso, o escrito dirigido, por exemplo, para você, do . qual ainda não sei nada.

Para você, leitor:

Isso se passa em uma aldeia bem perto de Deauville, a alguns quilômetros do mar. Essa aldeia se chama Vauville. O distrito é o de Calvados.

Vauville.

Foi lá. É a palavra escrita na tabuleta da porta.

Quando fui lá pela primeira vez, seguia o conselho de amigas, comerciantes de Trouville. Elas me falaram sobre a capela adorável de Vauville. Então nesse dia vi a igreja, pela primeira vez, sem ver nada disso que vou contar.

A igreja é de fato bem bonita e mesmo adorável. À direita há um cemitério pequeno, do século dezenove, nobre, luxuoso, que lembra Père-Lachaíse, muito enfeitado, como uma festa imóvel, parada, no centro dos séculos.

Do outro lado dessa igreja se encontra o corpo do jovem aviador inglês, morto no último dia da guerra.

E no meio da relva há um túmulo. Uma laje de granito cinzento claro, muito bem polida. Eu não a vi logo de saída, essa pedra. Eu a vi quando soube da história.

Era uma criança inglesa. Tinha vinte anos.

Seu nome está inscrito na laje.

No início ele era chamado de o jovem aviador inglês.

Era órfão. Estudava em um colégio de província ao norte de Londres. Ele se alistou, como fizeram muitos jovens ingleses.

Eram os últimos dias da guerra mundial.

Talvez o último, é possível. Ele tinha atacado uma bateria alemã. De farra. Como atirou sobre a bateria, os alemães responderam. Acertaram no garoto. Tinha vinte anos. .

O garoto tornou-se prisioneiro de seu avião. Um Meteoro de um só assento.

Foi assim mesmo. Ficou prisioneiro do seu avião. E o avião caiu no topo de uma árvore da floresta. Foi ali - acreditam as pessoas da aldeia - que ele morreu, durante aquela noite, a última  da sua vida.

Durante um dia e uma noite, na floresta, todos os habitantes de Vauville velaram seu corpo. Como antes, nos tempos antigos, como teriam feito antes, velaram-no com velas, preces, cânticos, lágrimas, flores. E depois conseguiram retirá-lo do avião. E extraíram o avião da árvore. Foi demorado, difícil. Seu corpo tinha se tornado prisioneiro do emaranhado de aço e da árvore.

Desceram-no da árvore. Foi muito demorado. No final da noite, estava encerrado. O corpo, uma vez trazido do alto da árvore, foi levado até o cemitério e logo em seguida cavaram a cova. Foi no dia seguinte, imagino, que compraram a laje de granito clara.

Esse é o começo da história.

Ele está sempre ali, o jovem aviador inglês, naquele túmulo. Sob a laje de granito.

No ano seguinte à sua morte, veio alguém para vê-lo, esse jovem soldado inglês. Trouxe flores. Um homem velho, inglês também. Veio até ali para chorar sobre o túmulo desse garoto e rezar. Disse que era professor daquele garoto em um colégio ao norte de Londres. Foi ele quem revelou o nome do garoto.

Foi ele também quem disse que o rapaz era órfão. Que não havia ninguém a quem comunicar sua morte.

Todo ano ele voltava. Durante oito anos. E sobre a laje de granito, a morte continuou a se eternizar.

Depois, nunca mais voltou.

E ninguém mais na face da terra se lembrou da existência dessa criança selvagem, e louca, alguns diziam: esse garoto doido que, sozinho, ganhou a guerra mundial.

Só restaram os moradores da aldeia para lembrar e cuidar do túmulo, das flores, da laje de pedra cinzenta. Creio que durante anos ninguém soube da história exceto as pessoas de Vauville.

O professor tinha dito o nome do garoto.

Esse nome ficou gravado sobre o túmulo:

W.J. Cliffe.

Sempre que o velho falava sobre o garoto, chorava.

No oitavo ano, ele não veio. E depois não veio nunca mais.

Meu irmão mais novo morreu durante a guerra do Japão. Morreu sem nenhuma sepultura. Atirado em uma fossa comum por cima dos últimos corpos. E é uma coisa tão terrível de se pensar, tão atroz, que não se pode suportar, e até ter passado por isso, é impossível saber como é. Não se trata da mistura dos corpos, em absoluto, é o desaparecimento desse corpo na massa dos outros corpos. É o seu, o seu próprio corpo, atirado na fossa dos mortos, sem uma palavra, sem uma frase. Exceto aquela da prece de todos os mortos. .

Para o jovem aviador inglês, não foi esse o caso, pois os moradores da aldeia cantaram e rezaram de joelhos sobre a grama ao redor do túmulo, e ficaram ali a noite inteira. Apesar de tudo, isso me lembrou aquela fossa de cadáveres nas imediações de Saigon, onde está o corpo de Paulo. Mas agora creio que lá existe outra coisa. Acho que um dia, mais tarde, bem mais tarde, mais tarde ainda, não sei bem, mas já sei que sim, bem mais tarde, reencontrarei, eu já sei que sim, algo de material que vou reconhecer como um sorriso suspenso no buraco dos olhos. Os olhos de Paulo. Lá, há algo mais do que Paulo. Para que isso se torne um acontecimento tão pessoal, essa morte do jovem aviador inglês, há mais do que aquilo que eu acredito haver.

Eu não saberia nunca dizer o que é. Nunca se vai saber.

Ninguém.

Isso me reporta também ao nosso amor.

Existe o amor do irmão mais novo e existia o nosso amor, nosso, dele e meu, um amor bem forte, oculto, culpado; um amor de todos os instantes. Adorável ainda depois da morte. O jovem morto inglês era todo mundo e era também ele mesmo. Era todo mundo e ele. Mas todo mundo não nos faz chorar. E depois essa vontade de ver o jovem morto, de verificar, sem conhecêlo nem um pouco, se seu rosto estava bem, aquele buraco, na extremidade do seu corpo sem olhos, essa vontade de ver seu corpo e ver como estava seu rosto de morto, dilacerado pelos punhais do Meteoro.

Será que ainda era possível ver alguma coisa assim? Isso aflige o pensamento. Nunca pensei que fosse escrever uma coisa dessas. Isso dizia respeito a mim e não aos leitores. Você é meu leitor, Paulo. Pois eu lhe digo, eu lhe escrevo, é verdade. Você é o amor da minha vida inteira, o gestor da nossa cólera diante daquele irmão mais velho, e isso ao longo de toda a nossa infância, da tua infância.

O túmulo está só. Como ele viveu. O túmulo tem a sua idade de morte ... como dizê-lo ... não se sabe ... o estado da grama, e também do jardinzinho. Também contou a proximidade do outro cemitério. Mas, na verdade, como dizê-lo?

Como unir o garotinho que morreu com seis meses, cujo túmulo está no alto do terreno gramado, e esse outro garoto de vinte anos? Continuam ali, os dois, e seus nomes, e suas idades. Estão sós.

E depois vi outra coisa. Sempre depois, a gente vê as coisas.

Vi o céu com o sol através das árvores, elas também mortas nos campos, mutiladas, as árvores negras. Vi que as árvores ainda estavam negras. E depois a escola municipal, ela também estava ali. E ouvi as crianças cantando: "Nunca te esquecerei." Para você. Só. Na origem disso tudo, havia, outrora, aquela pessoa qualquer e aquela criança, minha criança, meu irmãozinho, e mais alguém, o garoto inglês. Parecidos. A morte também batiza.

Aqui estamos muito longe da identidade. É uma morte, uma morte de vinte anos que irá até o final dos tempos. É só. O nome, não interessa mais: era um garoto.

Dá para ficar ali.

Dá para ficar ali, naquele ponto da vida de um garoto de vinte anos, o último morto da guerra.

Não interessa qual seja a morte, é a morte. Não importa qual seja o garoto de vinte anos, é um garoto de vinte anos.

Não é mais, de jeito nenhum, a morte de qualquer um. Continua sendo a morte de um garoto.

A morte de qualquer um é a morte inteira.

Não importa que seja todo mundo. E não importa quem possa tomar a forma atroz de uma infância em marcha. Essas coisas são sabidas nas aldeias, me foram contadas por camponeses com a brutalidade de um acontecimento que se tornou aquele acontecimento,· um garoto de vinte anos morto em uma guerra com a qual ele se divertia.

Talvez também por isso ele tenha ficado intacto, esse jovem inglês morto, tenha se aferrado a essa idade, terrível, atroz, a de vinte anos.

Fiquei amiga das pessoas da aldeia, sobretudo da velha que toma conta da igreja.

As árvores mortas estão lá, loucas, congeladas em uma desordem fixa, de tal modo que o vento não as procura mais. Elas são inteiras, mártires, são negras, o sangue negro das árvores mortas pelo fogo.

Esse passante tornou-se sagrado para mim - esse jovem inglês, morto com vinte anos. Ele sempre me faz chorar.

E depois o velho senhor inglês que vinha todo ano para chorar sobre o túmulo desse garoto, lamentei não tê-lo conhecido para conversar sobre o garoto, o seu riso, os seus olhos, suas brincadeiras.

O garoto morto foi adotado pela aldeia inteira. E a aldeia o adorou. O garoto da guerra terá sempre flores sobre seu túmulo. Continua o desconhecido: a data do dia em que isso cessará ..

Em Vauville, volta a minha memória do canto da mendiga. Esse canto bem simples. Aquele dos loucos, de todos os loucos, em toda parte, os cantos da indiferença. O canto da morte fácil. Da morte pela fome, dos mortos nas estradas, nos fossos, em parte devorados por cães, tigres, aves de rapina, ratos gigantes dos pântanos.

O mais difícil de suportar é o rosto destruído, a pele, os olhos arrancados. Os olhos esvaziados dos sinais da vida, sem mais olhar. Fixos. Virados para o nada.

Isso tem vinte anos. A idade, a cifra da idade pára com a morte, terá sempre vinte anos, tornou-se isso. Não sabe. Não olhou.

Quis escrever sobre o garoto inglês. E não posso mais escrever sobre ele. E escrevo, vocês vêem, assim mesmo, escrevo. É porque escrevo que não sei que isso pode ser escrito. Sei que isto não é uma narrativa. É um fato brutal, isolado, sem nenhum eco. Os fatos são suficientes. Contarei os fatos. E o velho que sempre chorava, que veio durante oito anos, e que, em certo momento, não veio mais. Nunca. Ele também viu-se apanhado pela morte? Sem dúvida alguma. E depois a história terminaria para a eternidade, da mesma forma que o sangue do garoto, os olhos, o sorriso do garoto tolhido pela boca descolorida da morte.

As crianças da escola cantam que há muito tempo o amavam, esse garoto de vinte anos, e que nunca vão esquecê-lo. Cantam assim depois do meio-dia.

E eu choro.

Existia o crepúsculo do azul dos olhos dessas crianças da escola.

Havia essa cor azul no céu, esse azul que era o mesmo do mar. Houve todas as árvores que foram assassinadas. E havia também o céu. Eu o olhei. Ele recobria todas as coisas na sua lentidão, na sua indiferença de todo dia. Insondável.

Vejo os lugares ligados uns aos outros. Exceto a continuidade da floresta, que desapareceu.

Não quis mais voltar. E ainda assim chorei. Eu via o garoto morto em toda parte. O garoto morto de brincar na guerra, de brincar de ser o vento, de ser um inglês de vinte anos, heroico e belo. Que brincava de ser feliz.

Ainda vejo você. O próprio garoto. Morto como um passarinho, de uma morte eterna. A longa morte que virá e a dor do corpo dilacerado pelo aço do avião, ele suplicava a Deus que o fizesse morrer depressa para não sofrer mais.

Chamava-se W. J. Cliffe, sim. É isto que agora está escrito sobre o granito cinzento.

É preciso atravessar o jardim da igreja e ir  para a escola pública que permanece ali, no mesmo lugar. Ir na direção dos gatos, esses doidos, incríveis, esses bandos de gatos, de uma incrível e cruel beleza. Esses gatos chamados "cascos de tartaruga", amarelos como labaredas avermelhadas, como sangue, brancos e negros. Negros como as árvores enegrecidas para sempre pela carga de bombas alemãs.

Há um rio ao longo do cemitério. E depois, ao lado, há ainda árvores mortas, do lado oposto ao lugar onde está o garoto. As árvores queimadas que gritam contra o vento. É um ruído muito forte, um tipo de varredura estridente, do fim do mundo. Dá muito medo. E depois cessa, de repente, sem que se saiba o que era. Sem razão, parece, sem a menor razão. E então os camponeses dizem que não é nada, que são as árvores que guardaram na sua seiva o carvão de suas chagas.

O interior da igreja é admirável, de fato. Tudo se reconhece. As flores são flores, as plantas, as cores, os altares, os bordados, os tapetes. É admirável. Como um quarto momentaneamente abandonado, à espera dos amantes que não vieram em razão do mau tempo.

Com essa emoção, se quer chegar a algum lugar. Escrever sobre o exterior, talvez, limitando-se a descrever, talvez, descrever as coisas que estão ali, presentes. Não inventar outras. Não inventar nada, nenhum detalhe. Não inventar de modo algum. Nada. Não acompanhar a morte. Que fique em paz, afinal, que pelo menos por uma vez não se olhe para isso desse ângulo.

As estradas que vão para a aldeia são caminhos antigos, muito antigos. São da pré-história. Estão ali desde sempre, parece, é o que se diz, eram rotas de passagem obrigatórias rumo ao desconhecido, trilhas e nascentes e praias onde era possível se proteger dos lobos.

Nunca aconteceu de me ver transtornada a tal ponto pela morte. Capturada por inteiro. Presa na sua viscosidade. E agora, para mim, todos os lugares, acabou, não vou mais lá.

Resta Vauville, esse jogo de amarelinha, resta a decifração dos nomes inscritos em alguns túmulos. Resta a floresta, a floresta que a cada ano progride na direção do mar. Sempre preta, de fuligem, pronta para a eternidade que virá. .

O garoto morto era também um soldado da guerra. E podia muito bem ter sido um soldado francês. Ou americano.

Fica a dezoito quilômetros da praia do Desembarque.

As pessoas da aldeia sabiam que ele era do norte da Inglaterra. O velho inglês lhes havia contado sobre esse garoto, o velho não era o pai do garoto, o garoto era órfão, devia ser seu professor, ou talvez um amigo dos pais. O homem amava aquele garoto. Como se fosse seu filho. Tanto quanto um amante, talvez, quem sabe? Foi ele que disse o nome do garoto. O nome foi inscrito sobre a laje cinzenta. W. J. Cliffe.

Não posso dizer nada. Não posso escrever nada.

Haverá uma escrita da não-narrativa. Um dia isto virá. Uma escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras sem apoio de uma gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadas de lado.

Eu queria expor o cerimonial que se criou em tomo da morte do jovem aviador inglês. Sei alguns detalhes: toda a aldeia se envolveu, redescobriu um tipo de iniciativa revolucionária. Sei também que o túmulo foi feito sem autorização. Que o prefeito não se envolveu. Que Vauville tornou-se uma espécie de festa fúnebre em torno da adoração do garoto morto. Uma festa livre de lágrimas e de cantos de amor.

Todas as pessoas da aldeia conheciam a história do garoto. E também a história das visitas do velho, aquele velho professor. Mas nunca falam da guerra. A guerra era para eles aquele garoto assassinado com vinte anos.

A morte reinou sobre a aldeia.

As mulheres choravam, não podiam se conter. O jovem aviador desaparece, morre de uma morte verdadeira. Caso cantassem essa morte como um exemplo de outras, não seria a mesma história. Essa discrição sublime das mulheres, que fez, segundo creio - mesmo que não esteja inteiramente certa disso -, com que o garoto fosse colocado do outro lado da igreja, ali onde ainda não havia túmulo algum. Ali onde ainda só existe o seu túmulo. Ao abrigo do vento louco. Elas tomaram o corpo do garoto, lavaram-no e puseram-no naquele lugar, dentro do túmulo, o da laje de granito claro.

As mulheres não contaram nada sobre isso. Se eu estivesse ali com elas, junto, para fazer o que elas fizeram, creio que nunca poderia escrever sobre isso. Afirmo que esse sentimento fantasticamente forte que experimentei, de estar comprometida com o caso, talvez não se produzisse. É a emoção que retoma ainda agora quando estou sozinha. Sozinha, ainda choro esse garoto que veio a ser o último morto da guerra.

Esse fato inesgotável: a morte de um garoto de vinte anos, morto pelas baterias alemãs no dia em que se fez a paz.

Vinte anos. Digo sua idade. Digo: tinha vinte anos. Terá vinte anos para a eternidade, diante do Eterno. Exista ou não, o Eterno será aquele garoto.

Quando digo vinte anos, é terrível. O mais terrível é isso, a idade. É uma banalidade essa dor que me aflige a respeito dele. É curioso, nunca a idéia de Deus se apresentou a respeito do garoto. Esta palavra fácil que é a palavra Deus, a mais fácil de todas, ninguém a disse. Não foi pronunciada uma só vez durante o sepultamento do garoto de vinte anos que tinha brincado de guerra no seu Meteoro por cima da floresta normanda, bela como o mar.

Não existe nada para dar a medida deste fato. Existem muitos fatos como este no universo. Brechas. Lá, este fato foi visto. E também se viu que o garoto morreu por ter brincado de guerra. Tudo fica claro diante da morte do garoto.

Ele estava contente, ele estava muito feliz ao sair da floresta, não via nenhum alemão. Estava contente de voar, de viver, de ter resolvido matar os soldados alemães. Adorava brincar de guerra, aquele garoto, como todos os garotos. Morto, ele era, o tempo todo, um outro garoto de vinte anos, não importa qual garoto. E depois isso tudo parou com a noite, a primeira noite. Ele tornou-se o garoto dessa aldeia francesa, ele, o aviador inglês.

Ele assinou sua morte, aqui, diante das pessoas de Vauville, que olhavam.

Este livro não é um livro. Não é uma canção.

Nem um poema. Nem um livro de pensamentos.

Mas de lágrimas, de dor, de pranto, de um desespero que não se pode conter e sobre o qual não se pode raciocinar. Cóleras políticas fortes como a fé em Deus. Mais fortes ainda. Mais perigosas porque são infinitas.

Esse garoto morto na guerra é também um segredo de cada um daqueles que o encontraram no alto daquela grande árvore, crucificado naquela árvore pela carcaça de seu avião.

Não se pode escrever lá em cima. Ou então se pode escrever em cima de qualquer coisa. Escrever sobre tudo, tudo ao mesmo tempo, é não escrever. É nada. E é uma leitura insustentável, da mesma forma que uma publicidade.

Ouço de novo o canto das crianças da escola pública. O canto das crianças de Vauville. Isso deveria ser suportável. Ainda é difícil para nós. Sempre chorei com esse canto das crianças. E ainda choro.

Já se vê menos o túmulo do jovem aviador inglês. Ele ainda é visível na paisagem ao redor. Mas já se afastou de nós, na direção da eternidade. E a sua eternidade será vivida como tal por esse garoto desaparecido.

Os locais ao redor da igreja dão acesso ao túmulo do garoto. Lá, ainda existe alguma coisa acontecendo. Encontramo-nos agora separados do fato por décadas e no entanto aqui o túmulo é um fato. Quem sabe essa solidão de um garoto morto na guerra não sejam ternas carícias sobre o granito frio da sua laje tumular? Não se sabe.

A aldeia tornou-se a aldeia desse garoto inglês de vinte anos. É como uma espécie de pureza, um luxo de lágrimas. A atenção extrema dirigida ao local de seu túmulo será eterna. Isto já se sabe.

A eternidade do jovem aviador inglês está ali, presente, se pode abraçar a pedra cinzenta, tocá-la, dormir sobre ela, chorar.

Como um refúgio, essa palavra - essa, eternidade, vem à boca - será a vala comum de todos os outros mortos da região que as guerras futuras terão matado.

Talvez seja o nascimento de um culto. Deus reempossado? Não, Deus é reempossado todos os dias. A gente nunca se acha sem Deus.

Não sei como chamar essa história.

Tudo está ali, em algumas dezenas de metros quadrados. Tudo está ali naquela mixórdia de mortos, naquele esplendor de túmulos, aquele luxo, que faz desse lugar algo admirável. Não se trata do número, ali o número se dispersou, pelas planícies alemãs do norte da Alemanha, pelas hecatombes das regiões de toda a costa do Atlântico. O garoto continuou sempre sendo ele mesmo. E só. Os campos de batalha foram para longe, pela Europa inteira. Aqui é o contrário, é o garoto, o rei da morte causada pela guerra.

É um rei também: é um garoto tão sozinho na morte quanto um rei na mesma morte.

Seria possível fotografar o túmulo. O fato do túmulo. O nome. O sol se pondo. O negrume da fuligem nas árvores queimadas. Fotografar os dois rios gêmeos enlouquecidos e que urram todas as noites, não se sabe nunca por que ou para quê, como cães esfomeados, esses rios malfeitos, equívocos de Deus, mal nascidos, que toda noite se entrechocam, se atiram um de encontro ao outro. Nunca vi isso em, lugar algum.

Dementes de um outro mundo, com um barulho de ferragens, de massacre, de carroças rodando, e que buscam onde se atirar, algum mar, alguma floresta. E os gatos, a nuvem de gatos que berram de medo. Estão sempre nos cemitérios, vigiando não se sabe o quê, algum fato de natureza indecifrável, exceto quanto a eles mesmos, os gatos, sem líder. Perdidos.

As árvores mortas, os prados, o gado, tudo aqui contempla o sol do entardecer em Vauville.

O lugar em si permanece muito deserto. Sim, vazio. Quase vazio.

A zeladora da igreja mora bem perto dali.

Todo dia de manhã depois do café, ela vai olhar o túmulo. Uma camponesa. Veste o avental de pano azul-escuro que minha mãe usava em Pasde-Calais, quando tinha vinte anos.

Esqueço: há também o cemitério novo, a um quilômetro de Vauville. É um cemitério de túmulos padronizados. Há arranjos de flores grandes como árvores. Tudo foi pintado de branco. E ali não há ninguém, ninguém lá dentro, parece que não tem ninguém. Que não é um cemitério. Não se sabe bem o que é aquilo, talvez um terreno de golfe.

Ao redor de Vauville há várias trilhas muito antigas, de antes da Idade Média. Foi sobre elas que fizeram as estradas por onde passamos agora. Ao longo das sebes milenares, existem caminhos para os novos seres vivos. Foi Robert Gallímard que me revelou a existência de toda essa rede de trilhas ancestrais da Normandia. Os primeiros caminhos dos homens do litoral, os homens do norte.

Existem, sem dúvida, muitas pessoas que teriam escrito a história dastrilhas.

O que seria necessário apontar é a impossibilidade de falar sobre esse lugar, aqui, e esse túmulo. Mas assim mesmo é possível abraçar o granito cinzento e chorar por você, W. J. Cliffe.

É preciso começar ao contrário. Não falo de escrever. Falo do livro já escrito. Partir da fonte e segui-la até o ponto onde sua água se deposita. Partir do túmulo e ir até ele, o jovem aviador inglês.

Muitas vezes encontramos relatos e muito raramente se encontra a escrita.

Não existe senão um poema, talvez, e para tentar ainda ... o quê? Não se sabe mais nada, nem mesmo isso, o que era preciso fazer.

Há a grandiosa banalidade da floresta, dos pobres, dos rios enlouquecidos, das árvores mortas, esses gatos carniceiros como cães. Gatos vermelhos e negros.

A inocência da vida, sim, é verdade, ela está lá, do mesmo modo que as cantigas de roda das crianças da escola.

Existe, é verdade, a inocência da vida.

Uma inocência que faz chorar. Ao longe, há a antiga guerra, aquela que agora se fez em migalhas, quando estamos sozinhos na aldeia, em face das ãrvores mártires calcinadas pelo fogo alemão. O corpo das árvores assassinadas pela fuligem. Não, não existe mais guerra. A criança da guerra tomou o lugar de tudo. O garoto de vinte anos: toda a floresta, toda a terra, ele a substituiu, e também o futuro da guerra. A guerra foi enterrada no caixão junto do corpo desse garoto.

Estâ tranqüilo, agora. O esplendor central é a idéia, a idéia dos vinte anos, a idéia de brincar de guerra, que se tornou resplandecente. Um cristal.

Se não existissem coisas como essa, a escrita não teria lugar. Mas mesmo se a escrita está presente, sempre prestes a urrar, a chorar, são coisas que não se escrevem. São emoções dessa ordem, muito sutis, muito profundas, muito carnais, também essenciais, e completamente imprevisíveis, que podem incubar vidas inteiras dentro do corpo. A escrita é isto. É o fluxo do escrito que passa através do corpo de vocês. Atravessa. Daí partimos para falar dessas emoções difíceis de dizer, tão estranhas e que, todavia, de repente se apoderam de vocês.

Eu estava em minha casa, nesta aldeia, aqui, em Vauville. Ia lá todo dia para chorar. E então, um dia, nunca mais fui.

Escrevo em razão dessa chance de me fundir por inteiro, com tudo, essa chance de me achar no campo de guerra, nesse teatro de guerra vazio, na ampliação dessa reflexão, na ampliação que ocupa o terreno da guerra, bem devagar, o pesadelo em marcha da morte desse jovem de vinte anos, nesse corpo morto do garoto inglês de vinte anos, morto com as árvores da floresta normanda, da mesma morte que elas, ilimitada.

Essa emoção vai se estender além dela mesma, rumo ao infinito do mundo inteiro. Isso durante séculos. E então, um dia - todos sobre a terra entenderão algo como o amor. Dele. Do garoto inglês morto com vinte anos por ter brincado de guerra contra os alemães nessa floresta monumental, tão bela, se poderia dizer, tão antiga, secular, adorável mesmo, sim, é isso: adorável é a palavra.

Seria possível fazer um filme. Um filme de insistências, de retornos e de reinícios. E depois abandoná-lo. E filmar também esse abandono. Mas isso não será feito, já se sabe. Nunca será feito.

Por que não fazer um filme sobre aquilo. que é desconhecido, ainda desconhecido?

Não tenho nada nas mãos, nada na cabeça para fazer esse filme. E foi nisso que mais pensei neste verão. Porque esse filme seria, apesar de tudo, um filme da idéia inatingível e louca, um filme sobre a literatura da morte viva.

A escrita da literatura é justamente aquilo que apresenta um problema para todos os livros, para todos os escritores, para cada livro de cada escritor. E sem isso não existe escritor, não existe livro, nada. Assim, parece que se pode dizer também que, desta maneira, não existiria talvez mais nada.

A silenciosa derrocada do mundo teria começado naquele dia - o dia daquela morte tão lenta e tão dura do jovem inglês de vinte anos no céu da floresta normanda, esse monumento no litoral do Atlântico, essa glória. Esta notícia, este simples fato, esta notícia misteriosa se inscreveu na mente das pessoas ainda vivas - um ponto de onde não se pode voltar teria sido alcançado no silêncio elementar da terra. Soube-se que, a partir de então, seria inútil esperar. Isso em toda a superfície da terra e partindo deste único objeto, um garoto de vinte anos, o jovem morto na última guerra, o esquecido pela última guerra no início da vida.

E depois, um dia, não haverá nada  para se escrever, nada para se ler, não existirá senão o intraduzível da vida desse morto tão jovem, tão jovem que chega a doer.

Marguerite Duras. Escrever. Rocco: Rio de Janeiro, 1999, pp. 51-74, trad. Rubens Figueiredo



sábado, 14 de abril de 2012

Orides Fontela

COISAS
mescladas
a esmo:
o fim e o infinito
o mesmo

a hora e sua
seta
o limite e o após
a meta

o justo e o demais
também
- a beleza e seu
além.

Poesia Reunida [1969-1996], São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 277

Paulo Mendes Campos

AUTORRETRATO

Nos olhos já se vê dissimulada
Preocupação de si, e amor terrível.
A incessante notícia de uma luta
Com as panteras bruscas do invisível
É como a sensação de sede e fome.
Mudo, na cor translúcida da face
Já se insinua o pálido comparsa.
Na fronte existe um vinco que disfarça
Qualquer coisa ... se acaso disfarçasse.
Mas não se vê o coração que come
O sangue espesso da melancolia.
Na boca, outro sinal de uma disputa -
Discórdia, dispersão e covardia -.
E um traço calmo buscando castidade.
No rosto todo, a usura da saudade.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ivan Junqueira



QUASE UMA SONATA


É música o rigor com que te moves
à fluida superfície do mistério,
os pés quase suspensos, a aérea
partitura do corpo, seus acordes.
Espaço e tempo são teu solo. E colhem,
não tanto a luz que entornas, mas o pólen
com que ela cinge e arroja as coisas mortas
além da espessa morte que as enrola.
E música o silêncio que te cobre
quando lampeja à noite tua nudez,
em franjas derramada sobre o leito
das águas, onde as algas te incendeiam
porque semelhas, mais que o mar profundo,
o intemporal princípio e fim de tudo.

De Opus Descontínuo (1969-75)

domingo, 8 de abril de 2012

Ivan Junqueira

ROSTO


Teu rosto em fuga na vidraça
é uma gota que escorre devagar,
tão devagar que o tempo, avaro,
sequer ensaia um magro passo.
Uma gota que cai, sem lastro,
leve como a asa de um pássaro,
mas tão repleta de presságios
que sinto o fio de uma adaga
rasgar-me a carne das ilhargas.
Por que, às vésperas do nada,
a alma desperta, arrebatada?

Ivan Junqueira

ANTES QUE O SOL SE PONHA




Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me arderam na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.


Ivan Junqueira. Poemas Reunidos, Record:São Paulo, 1999, p. 244

sábado, 7 de abril de 2012

Ivan Junqueira

Assusta-me essa inóspita brancura
Assusta-me essa inóspita brancura
com que o mudo papel me desafia.
Assustam-me as palavras, a grafia
dos signos entre os quais ruge e fulgura,
como um rio que escava a pedra dura,
a expressão de quem busca, em agonia,
o sentido da fáustica e sombria
angústia de que o ser jamais se cura.
Assombram-me as medusas da loucura,
as pancadas no crânio, a garra fria
que a morte deita em nós qual uma harpia
sedenta, odiosa, hedionda, infausta, escura.
Assusta-me a algidez da terra nua
que é a nossa única herança: a minha e a tua.

[Ivan Junqueira. Poemas Reunidos, Record:São Paulo, 1999, p. 241]













Ivan Junqueira

CARPE DIEM

O duro travo desta hora:
o travo é o mesmo,
diverso embora
a hora
a hora
hera agora
além do tempo dorme
nos relógios da memória

Duro é o travo deste acorde,
aérea forma, áspero
espasmo de órgãos góticos

(e a hora, no adro, se desfolha)

Dura laje, duro claustro
(outrora mártires e apóstolos
aqui, na pedram se rojaram)
os anjos zombam de Deus
napalm sobre o Gólgota

E a Cruz sem hóspedes

A dura bênção desta hora
ladainha litania
sem misericórdia

(Kant, ao canto
esquivo da estante,
indaga se é possível
a metafísica)

A dura bênção desta hora

toda a esperança
ó ave implume
cega e torta
é sempre espera
sem resposta

E o tempo cruza lento a noite morta

[Poemas Reunidos, Record:São Paulo, 1999, p. 94]


sexta-feira, 6 de abril de 2012

Clarice Lispector

Para te escrever eu antes me perfumo toda.

Eu te conheço todo por te viver toda. Em mim é profunda a vida. As madrugadas vêm me encontrar pálida de ter vivido a noite dos sonhos fundos. Embora às vezes eu sobrenade num raso aparente que tem debaixo de si uma profundidade de azul-escuro quase negro. Por isto te escrevo. Por sopro das grossas algas e no tenro nascente do amor.

Eu vou morrer: há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-me do signo Sagitário: metade homem e metade animal. A parte humana em rigidez clássica segura o arco e flecha. O arco pode disparar a qualquer instante e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo.

Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do pró. prio instante. Mas de qualquer modo há alguma de .. fasagem. Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreensão que tem me dado vida li. berta do entendimento, perdi amigos, não entendo a morte. O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e sentem?

Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem "a mim mesma certas coisas. Seria trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu. Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. Ê difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade - o it.


Clarice Lispector. Água Viva, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1978, pp. 54-55

Carminha Gouthier

FERIDA ABERTA 
Caminharemos juntos. 
Aqui está minha cabeça povoada de coisas inúteis, e poderás enchê-la de espinhos. 

Aqui estão os ombros já meio curvos, 

que descerão mais, 
para o equilíbrio da cruz. 

Subiremos a grande montanha. 

Subiremos, e talvez me canse. 
Tu irás bem devagar, para que meus pés
não fiquem muito longe dos Teus pés. 

No alto haverá o mistério do desamparo, 

ferida aberta no mistério da esperança. 
E mais um pouco, as sombras cairão rápidas
sobre os vestígios dos meus passos.

Carminha Gouthier, Mystica Poesia - Poemas Reunidos, p. 92




quinta-feira, 5 de abril de 2012

Clarice Lispector

FINALMENTE, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.

Era finalmente agora. Era simplesmente agora. Era assim: o país estava em onze horas da manhã. Superficialmente como um quintal que é verde, da mais delicada superficialidade. Verde, verde - verde é um quintal. Entre mim e o verde, a água do ar. A verde água do ar. Vejo tudo através de um copo cheio. Nada se ouve. No resto da casa a sombra está toda inchada. A superficialidade madura. São onze horas da manhã no Brasil. É agora. Trata-se exatamente de agora. Agora é o tempo inchado até os limites. Onze horas não têm profundidade. Onze horas está cheio das onze horas até as bordas do copo verde. O tempo freme como um balão parado. O ar fertilizado e arfante. Até que num hino nacional a badalada das onze e meia corte as amarras do balão. E de repente nós todos chegaremos . ao meio-dia. Que será verde como agora.

Acordei de súbito do inesperado oásis verde onde por um momento eu me refugiara toda plena.

Mas eu estava no deserto. E não é só no ápice de um oásis que é agora: agora também é no deserto, e pleno. Era já. Pela primeira vez na minha vida tratava-se plenamente de agora. Esta era a maior brutalidade que eu jamais recebera.

Pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será exatamente de novo uma atualidade.

Eu estava tão assustada que ainda mais quieta ficara dentro de mim. Pois parecia-me que finalmente eu ia ter que sentir.

Parece que vou ter que desistir de tudo o que deixo atrás dos portões. E sei, eu sabia, que se atravessasse os portões que estão sempre abertos, entraria no seio da natureza.

Eu sabia que entrar não é pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo. Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.

Foi assim que fui dando os primeiros passos no nada. Meus primeiros passos hesitantes em direção à Vida, e abandonando a minha vida. O pé pisou no ar, e entrei no paraíso ou no inferno: no núcleo.

Passei a mão pela testa: com alívio notava que finalmente havia começado a suar. Até um pouco antes fora apenas aquela secura quente que nos crestava a nós duas. Agora eu começava a me umedecer.

Ah, como estou cansada. Meu desejo agora seria o de interromper tudo isto e inserir neste difícil relato, por pura diversão e repouso, uma história ótima que ouvi um dia desses sobre o motivo por que um casal se separou. Ah, conheço tantas histórias interessantes. E também poderia, para descansar, falar na tragédia. Conheço tragédias.

Meu suor me aliviava. Olhei para cima, para o teto. Com o jogo de feixes de luz, o teto se arredondara e transformara-se no que me lembrava uma abóbada. A vibração do calor era como a vibração de um oratório cantado. Só minha parte auricular sentia. Cântico de boca fechada, som vibrando surdo como o que está preso e contido, amém, amém. Cântico de ação de graças pelo assassinato de um ser por outro ser.

Assassinato o mais profundo: aquele que é um modo de relação, que é um modo de um ser existir o outro ser, um modo de nos vermos e nos sermos e nos termos, assassinato onde não há vítima nem algoz, mas uma ligação de ferocidade mútua. Minha luta primária pela vida. "Perdida no inferno abrasador de um canyon uma mulher luta desesperadamente pela vida."

Esperei que aquele som mudo e preso passasse. Mas a vastidão dentro do quarto pequeno aumentava, o mudo oratório alargava-o em vibrações até a rachadura do teto. O oratório não era prece: não pedia nada. As paixões em forma de oratório.

A barata de súbito vomitou pela sua fenda mais um surto branco e fofo.

- Ah! mas a quem peço socorro, se tu também - pensei então em direção a um homem que já fora meu - se tu também não me servirias agora. Pois como eu, tu quiseste transcender a vida e assim a ultrapassaste. Mas agora eu não vou mais poder transcender, vou ter que saber, e irei sem ti, a quem eu quis pedir socorro. Reza por mim, minha mãe, pois não transcender é um sacrifício, e transcender era antigamente o meu esforço humano de salvação, havia uma utilidade imediata em transcender. Transcender é uma transgressão. Mas ficar dentro do que é, isso exige que eu não tenha medo!

E vou ter que ficar dentro do que é.

Há alguma coisa que precisa ser dita, não sentes que há alguma coisa que precisa ser sabida? oh, mesmo que depois eu tenha que a transcender, mesmo que depois o transcender nasça fatalmente de mim como o hálito de quem está vivo. .

Mas, depois do que sei, aceitarei como um hálito de respiração - ou como um miasma? não, não como um miasma, tenho piedade de mim! quero que, se o transcender me vier fatalmente, que seja como o hálito que nasce da própria boca, da boca que existe, e não de uma boca falsa aberta num braço ou na cabeça.

Era com alegria infernal que eu como que ia morrer.

Eu começava a sentir que meu passo mal-assombrado seria irremediável, e que eu estava pouco a pouco abandonando a minha salvação humana. Sentia que o meu de dentro, apesar de matéria fofa e branca, tinha no entanto força de rebentar meu rosto de prata e beleza, adeus beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que não quero mais - estou sem poder mais querer a beleza - talvez nunca a tivesse querido mesmo, mas era tão bom! eu me lembro como o jogo da beleza era bom, a beleza era uma transmutação contínua.

Mas com alívio infernal eu me despeço dela. O que sai do ventre da barata não é transcendentável - ah, não quero dizer que é o contrário da beleza, "contrário de beleza" nem faz sentido - o que sai da barata é: "hoje", bendito o fruto de teu ventre - eu quero a atualidade sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança - até agora o que a esperança queria em mim era apenas escamotear a atualidade.

Mas eu quero muito mais que isto: quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não  na promessa, quero encontrar a alegria neste instante - quero o Deus naquilo que sai do ventre da barata - mesmo que isto, em meus antigos termos humanos, signifique o pior, e, em termos humanos, o infernal.

Sim, eu queria. Mas ao mesmo tempo segurava com as duas mãos a boca do estômago: "não posso!", implorei para um outro homem que também ele nunca pudera e jamais poderia. Não posso! não quero saber de que é feito aquilo que até agora eu chamaria de "o nada"! não quero sentir diretamente na minha boca tão delicada O sal dos olhos da barata, porque, minha mãe, eu me habituei ao encharcado das camadas e não à simples umidade da coisa.

Foi pensando no sal dos olhos da barata que, num suspiro de quem vai ser obrigado a ceder mais um passo, percebi que ainda estava usando a antiga beleza humana: sal.

Também a beleza do sal e a beleza das lágrimas eu teria de abandonar. Também isso, pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.

LISPECTOR, C., A Paixão segundo GH, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1979, pp. 76-80.

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...