quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Gérard de Nerval

EL DESDICHADO
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
O Senhor de Aquitânia à Torre da abulia:
Meu único Astro é morto, o meu alaúde iriado
Irradia o Sol negro da Melancolia.

Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado,
O Posílipo e o mar Itálico me envia,
A flor que tanto amava o meu ser desolado,
E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.

Sou Biron, Lusignan?...  Febo ou Amor?  Na fronte
Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia;
Eu sonhei na Caverna onde nada a Sereia...

E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte:
Modulando na cítara a Orfeu consagrada
Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.

[In Alexei Bueno, Cinco Séculos de Poesia, Rio de Janeiro, Ed. Record Ltda., 2012, p. 69]




quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Daniel Jonas

SÃO TRISTES OS MEUS DIAS COM PEDRAS
São tristes os meus dias com pedras
em lugar de mãos
ou a cabeça funda na brancura
de través do travesseiro
e o corpo depresso em moles guindastes.
São dias de chorar por menos
ou teimar queixoso com um crânio polido,
batuque convexo
no muro demorado.
Ficar a ouvir o sangue,
o som tubular do sangue. Ao vale seco
da clavícula atrair a água, o sangue
e sorver a sopa intestina
ou se o líquido escapa à boca
tantálica, calar com argila
o que me pede água.
Ficar a palpar os buracos
da ausência, as ligas
da ausência, as ribanceiras
a que caem os pensamentos, a cor
dióspiro que banha a enfermidade
e em seguida tomar o pulso
evadido, travar o touro, o soco da dor,
o infinito infinitivo presente.
Uma amálgama de alma
migra no fôlego de modorrento
pregão de dor, o condor
passa e anda andino e é uma
traça asfixiante: faço um céu rarefeito,
a dispneia é um felino
que arranha céus
e a boca rebuliço espúmeo
expele o sabor da morte
e o que mais consiga cuspir
por entre ovéns e enxárcias
e traves quebradas.
É uma desilusão com as coisas,
uma desilusão funda com as coisas,
com o vazio meio-cheio das coisas.
Meu fôlego um fólio cheio
de silêncio, uma catástrofe natural
um vulcão: no meu pulmão pôr lava
e no trovão treva.

 [in Os Fantasmas Inquilinos, Lisboa: Livros Cotovia, 2005]

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Ximena Gómez

FILHOS DE ARES
Houve sangue na atmosfera e nuvens nos charcos
E picadas de pássaros em lábios de cadáveres.

E houve homens lagarto arrastando-se no lodo.
E pragas multiplicando-se em casas desocupadas.

E houve corvos na observação de soldados nus.
E mulheres ocultas em ossários, recolhendo cantos.

E houve homens em peleja pelas urinas de uma latrina.
E um proscrito faminto que sonhava devorar explosivos.

E houve cantos, silvos e sussurros ao alvorecer.
E um homem que solfejava de dia e tossia à noite.

E houve crianças que cremavam formigas que iam para o combate.
E um judeu que procurava seu filho entre as ervas.

E houve soldadesca e gargalhadas, cervejas e whisky.


ESPECTRO NOTURNO
O vento açoita a porta.
A chama da vela se extingue.

O eco de um canto se escuta...

Uma árvore arranha nos vidros
Um enxame de formigas pulula nas frestas
Suspensa num livro a aranha aguarda
Umas pisadas, um estalar de pedriscos...

O eco de um canto se reitera...

A avó hermafrodita com bigode,
Senta-se acocorada na lâmpada.
Duas chamas oscilam na cara do gato.
O pai morto cruza o umbral...

O eco de um canto se extingue...

— Tenho medo, papai — grita o menino.
Alguém acende a luz.

Tradução: José Pires Cardoso

Ximena Gómez é uma poeta colombiana radicada em Miami! 

Novalis

SAUDADES DA MORTE
Desçamos ao reino terrestre,
Deixemos império de Luz.
Sinal de partirmos alegres
Das mágoas são golpes e fúria.
Varemos estreito batel,
Veloz, nas margens do Céu.

Louvados noite e sono,
Eternos e sempre louvados.
O dia deu-nos o calor,
Secura dão-nos cuidados.
Errantes seremos não mais,
Buscamos a casa do Pai.

No mundo, então, que faremos
Com tanto amor, tão fiéis?
Se põem de lado o velho,
O novo o que nos reserva?
Mas que só, desconsolado,
O devoto do passado!

Do tempo em que altas brilhavam
As chamas da luz dos sentidos.
As mãos do bom Pai e o Rosto
Do homem eram conhecidos
Ainda à sua imagem feitos,
Tantos espíritos eleitos.

Do tempo em que ainda floriam
Antigas estirpes magníficas,
O reino do Céu pretendiam
Crianças pelo martírio.
Mil corações d’amor rasgados,
Outros só a prazeres dados.

Do tempo em que jovem e ardente
A Si mesmo Deus se mostrou.
À morte tão cedo consente
Dar vida tão doce de amor.
Penas nem medos afasta
Porque ser fiel lhe basta.

Mas vê temerosa saudade
Estaremos na noite encobertos.
Jamais a transitoriedade
Acalma a sede que aperta.
Nós vamos voltar à pátria,
Ver esse tempo sagrado.

Já tarda nosso regresso,
Repousam há muito os Amados!
O túmulo a vida nos fecha,
Agora são dores e os medos
Nada quer o coração
Tão farto em mundo tão vão.

Secreto, infindavelmente,
Um manso arrepio perpassa.
Parecendo-nos que se sente
Funéreo eco de mágoas.
O hálito da saudade
Vem daqueles que amamos.

Descer até à doce Noiva,
Até Jesus – nosso Amado.
A paz de quem ama e sofre
É sol poente iluminado.
Um sonho desprende laços,
O Pai nos cinge nos braços!

In Os Hinos À Noite. Trad.: Fiama Hasse Pais Brandão

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Eugénio de Andrade

JUVENTUDE
Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.

 in "Até Amanhã"

ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

OS AMIGOS
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.

In "Coração do Dia"

O AMOR
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.

***
É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo.
Antes do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.

In Sulcos da Sede


domingo, 27 de janeiro de 2013

Etty Hillesum

SEXTA-FEIRA PELA MANHÃ [5 DE JUNHO DE 1942], ÀS SETE E MEIA.

Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Detesto muitas palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. Na realidade as palavras devem acentuar o silêncio, tal como naquela gravura japonesa com o ramo florido para baixo, para o canto. Umas tênues pinceladas  — mas com que olho para reproduzir o mais pequeno pormenor — e, à volta delas, o grande espaço,  mas não um espaço representando um vazio, mas sim, digamos, um espaço com alma. Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida. Se algum dia chegar a escrever — o quê, sinceramente? — gostaria então de pincelar algumas palavras sobre um fundo mudo. E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir. E em cada novela — ou seja lá aquilo que for — o fundo em silêncio terá de ter um matiz e um conteúdo diferentes, exatamente como acontece nas gravuras japonesas. Não se trata de um silêncio vago e inatingível, esse silêncio terá também de ter os seus próprios contornos definidos e a sua própria forma. E, por conseguinte, as palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.

[In Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, colecção Teofanias].

Paulo José Miranda

DA CORRUPÇÃO DOS CORPOS
À saída da cidade bizantina, depois das Muralhas de Teodósio
o mar de Mármara e as janelas (enormes laranjas brilhantes
penduradas nas altas árvores de betão e famílias no lado de lá, na Ásia)
que lembram os olhos a arder ao fim de mais um dia

depois de se largar a solda e antes de se deixar a oficina.
Com um só cigarro, restava-lhe pôr-se a andar
ao contrário dos carros, em busca de peixe e Raki.
Toda a terra é estrangeira, se não houver

uma gota de álcool e uma língua que se cale,
as pequenas coisas com que se desperdiçam os dias
e se inventa a eternidade ou uma noite de sexo à tarde.
Do Mar Negro, chegaram

um maço de cigarros e um prato de anchovas.
Juntou-se ao velho que cantava versos dolentes
acerca da corrupção dos corpos e de raparigas.
Com a neve a derreter, os carros

ficam cobertos de um gelo mal semeado
como a barba dos velhos quando acordam
com os olhos e as ruas enlameadas pelo peso dos passos.
Partilharam a mesma garrafa,

palavras sem decência alguma,
folhas de agrião a moverem-se nos lábios
e um isqueiro como dados de gamão.
Eram dois irmãos filhos de um pai inexistente,

despediram-se para nunca mais.
A beleza branca e macia da neve (que quase sempre mata)
já não cobre a noite nem de silêncio nem de vontades ferozes
de se pegar num corpo qualquer e perfurá-lo,

como se essa vida fosse o dente que nos maça.
Ainda assim não procurou a casa, seguiu as velhas ruas de Gálata
decidido a pagar para ouvir alguém fingir prazer,
como se fingir não fosse realmente natural.

(O Tabaco de Deus, Edições Cotovia: Lisboa, 2002, pp. 37-38)

***

Esforça-te para que saibam que o
[mundo começou de vez
Estende uma palavra amável ao
[transeunte
E o luxo anacrónico de um sorriso
Àquele que falar mal de ti
Perdoa – o com a ternura de falar bem
[dele
Segue pela rua não esquecendo nunca
Essa missão dura e difícil que tens
[pela frente
Ainda que te esbofeteiam te
[espezinhem te humilhem
És e serás sempre o profeta do
[humano
Aquele que anuncia a chegada do
[mundo

***

Ninguém diria que trazias o cheiro
Dos últimos começos
Da primeira apanha de frutas das
[nossas árvores
Ninguém diria que cheiravas ao
[momento
Em que por fim
O enfermo abre a janela e deixa
[entrar o ar fresco
A prometida e bela manhã tantas
[vezes sonhada
Que faz renascer a vida e seus
[atributos
Ninguém diria que serias o Sol
E sua chama acesa bem alta
Queimando a pele humana
Desgastando todos os outros animais
Deixando o dia e que girar á sua
[volta em cinzas
Ninguém diria que tudo irá acabar
Numa cova profunda e escura
De tão escura que um ou outro
[insecto
Parecerá uma estrela

Fonte: http://manuthinkerfree.blogspot.com.br

Sobre o Autor

sábado, 26 de janeiro de 2013

Walden Carvalho

OS QUE PASSAM
São os que passam que rompem a paisagem,
como seres enfurecidos que procuram outro ponto
no conjunto das belezas adormecidas
que formam os contornos de cada instante.
Os que passam avançam sobre neblinas,
seres de névoa que carregam sonhos e promessas,
escondem o sol, mostram fantasmas brancos esparramados,
e brincam de esconder as árvores, os morros, o caminho,
e que chamam. Principalmente, chamam para dentro do seu mundo.
Os que passam despertam dos sonhos os pássaros,
senhores do vento e do traço fino,
capazes de desenhar no nada arabescos de puro prazer,
como uma dança obediente apenas à música das coisas
que compõem a paisagem silenciosa,
e pela qual só os mansos são capazes de chorar,
de puro amor aconchegado.
Os que passam não conhecem o seu lugar na paisagem
e por isso se inquietam com a paz de tudo que está em seu ponto certo,
como se o silêncio e o gesto delicado da brisa que sopra dos morros
balançando as folhas
não fosse apenas a mesma vida que também é sua.
Os que passam são apenas circunstâncias que procuram
e não são mais do que uma leve onda
na vida daqueles que, sem pressa, com a certeza do encontro,
se abraçam com o soprar do tempo
e esperam.

Fonte: Suplemento Literário de Minas Gerais, Maio–Junho/2010, Edição 1.330, p. 36

Walden Camilo de Carvalho foi um dos primeiros vencedores do prêmio da Revista Literária da UFMG, em 1967. Publicou o livro de contos Cordiais Saudações, pela Editora Codecri, em 1979. Mora em Divinópolis (MG).

Paul Éluard

A AUSÊNCIA
Falo-te através das cidades
Falo-te através das planícies
A minha boca repousa na tua almofada
Os dois lados da parede opõem-se

À minha voz que te reconhece
Falo-te de eternidade

Ó cidades lembranças de cidades
Cidades envoltas nos nossos desejos
Cidades precoces e tardias
Cidades fortificadas cidades íntimas
Despojadas de todos os seus pedreiros
Dos seus pensadores dos seus fantasmas

Campo modelo de esmeralda
Viva vivaz sobrevivente
O trigo do céu sobre a nossa terra
Alimenta a minha voz eu sonho eu choro
Rio e sonho entre as chamas
No meio dos cachos de sol

E sobre o meu corpo o teu corpo estende
A toalha do seu espelho transparente.

Tradução:  Maria Gabriela Llansol

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Eugénio de Andrade

 Donald Zolan
DEIXA QUE SEJA UMA CRIANÇA
Deixa que seja uma criança a inclinar a tarde.
Dizem que é verão: não acredites.
O verão tem os pés iluminados pela lua,
o verão tem os nomes todos do mar,
não é o deserto
da cama aberta ao frio,
o prazer imitando a neve.
O que se vê daqui não é a dança
da claridade com o trigo,
o rio onde os cavalos bebem
a tarde a chegar ao fim.

Deixa que seja uma criança.


In Contra a Obscuridade, Limiar, 1988

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Etty Hillesum

Há um desassossego em mim,um desassossego bizarro, diabólico, que poderia ser produtivo
se eu o soubesse utilizar. Um desassossego criador.Não se trata do desassossego do corpo.
Nem mesmo uma dúzia de excitantes noites de amor lhe conseguiriam por fim. É um desassossego quase "sagrado". Ó Deus, toma-me na tua grande mão e torna-me o teu instrumento, faz-me escrever.

In Diário 1941-1943 04.07.1941, sexta-feira.

Uma pessoa procura o sentido da vida e pergunta-se se ela na realidade ainda tem sentido.
Mas este é um assunto que cada um deve decidir consigo e com Deus. E talvez cada vida tenha o seu próprio sentido e dure uma vida inteira para o encontrar. Pelo menos de momento perdi toda a relação com as coisas e a vida, e tenho a sensação de que tudo é casual e que interiormente uma pessoa
se deve desligar dos outros e de tudo. Parece tudo tão ameaçador e sinistro, e depois a grande impotência.

In Diário 1941-1943


E agora sou aquilo a que chamam doente e anêmica e mais ou menos acamada, e no entanto, 
cada minuto é frutuoso, até não mais poder.  Como será quando eu estiver novamente com saúde?
Sou obrigada a aclamar-te continuamente, meu Deus: estou-te muitíssimo grata por teres querido dar-me esta vida.

Uma alma é algo feito de fogo e cristal de rocha.É algo muito severo e com a dureza do Antigo Testamento, mas também tão suave como o gesto com que suas cautelosas pontas dos dedos afagam as minhas pestanas.

In  Diário 1941-1943. 12-10-42, segunda-feira


Sobre ETTY HILLESUM



Mariana Ianelli

VARIAÇÕES PARA MORTE
Isto que se quer fora de casa,
Asa pestilenta, gosto acérrimo.

No fogo da controvérsia
Edifica o indiscutível
E reconduz a uma só pedra
Muros, troféus, arrependimentos.

Existe aquele que nem sabe
Lhe ter medo, tão perfeito lírio
Inerte no meio do campo,
Uma criança a menos
Para o alvo de escopetas.

Talvez de nós se compadeça,
Talvez conosco se deleite
Ao permitir mais uma obra,
Mais um progresso da ciência.

E ela espreita e ela se mete
Pelas frinchas, pelas guelras,
Desafina o instrumento
Bem no auge de uma récita.

Por dentro amadurece o nada,
Seiva que enrijece o fraco
E ao viçoso empalidece.

Treva Alvorada, p. 47


Belmont

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Olga Orozco

"PAVANA PARA UNA INFANTA DIFUNTA"

Para Alejandra Pizarnik

Pequena sentinela,
Mais uma vez te perdes pela fenda da noite
Munida apenas de olhos abertos e terror
Contra os invasores insolúveis no papel em branco.
Eles eram legião.
Legião encarniçada era seu nome
E se multiplicavam enquanto te desfazias até o último alinhavo,
Encurralando-te a ti mesma contra as teias vorazes surgidas do nada.
Aquele que cerra os olhos se converte em morada de todo o universo.
Aquele que os abre delimita as fronteiras e permanece ao vento e à chuva.
Aquele que anda na linha não encontra o seu lugar.
Insones como túneis para provar a inconsistência de toda a realidade;
Noites e noites varadas por uma só bala que te crava no escuro,
E a mesma tentativa de reconhecer-te ao despertar na memória da morte:
Essa tentação insidiosa,
Esse anjo adorável com focinho de porco.
Quem falou de conjuros para aplacar a ferida do próprio nascimento?
Quem falou de subornos aos emissários do futuro?
Somente havia um jardim: no fundo de tudo há um jardim
Onde se abre a flor azul do sonho de Novalis.
Flor cruel, flor vampira,
Mais ardilosa que a cilada oculta na lanugem do muro
E que jamais se alcança sem deixar a cabeça ou o resto do sangue no umbral.
Mas te inclinavas como que para cortar essa flor onde os teus pés não tinham chão,
Abismos adentro.
Pretendias trocar essa flor pela criatura faminta que te desabitava.
Levantavas pequenos castelos devoradores em sua homenagem,
Te vestias de plumas desprendidas da fogueira de qualquer paraíso possível,
Adestravas animaizinhos perigosos para roer as pontes da salvação;
Te perdias como a mendiga no delírio dos lobos;
Experimentavas linguagens como ácidos, como tentáculos,
Como cordas nas mãos do estrangulador.
Ah, os desastres da poesia, com o fio da aurora te cortando as veias,
E esses lábios exangues se envenenando da vacuidade da palavra!
E de repente não há mais.
Romperam-se os frascos.
Estilhaçaram-se as luzes e os pincéis.
Rasgou-se o papel com um dilaceramento que te faz cair por outro labirinto.
Todas as portas são para sair.
Tudo agora é o avesso dos espelhos.
Pequena viajante,
Solitária com o teu relicário de visões
E o mesmo insuportável desamparo sob os pés:
É certo que clamas por entrar com tuas vozes de afogada,
É certo que sobre ti tua sombra imensa te detém, buscando outra,
Ou que tremes diante de um inseto, cujas membranas cobrem todo o caos,
Ou te amedronta o mar, que cabe ao teu lado nesta lágrima.
Mas te digo novamente,
Agora que o silêncio te envolve duas vezes em suas asas como um manto:
No fundo de todo jardim há um jardim.
Eis teu jardim,
Talítha kum.

In Olga Orozco, Poesía Completa, Buenos Aires: Adriana Higaldo Editora: , 2011, pp. 255-257.


"Os que chegam não me encontram
Os que espero não existem". (Alejandra Pizarnik)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Maria do Sameiro Barroso

O CORPO E OS SEUS LUGARES
Fermenta a mudança, a escrita, o feltro, os filtros e as atmosferas.
Fermenta a noite, errante, com os cabelos errantes
errando, os olhos narrativos,
o corpo desencadeando a forma e a matéria, os olhos fermentando
as linhas distorcidas, as fábricas e as atmosferas;

o corpo e os seus lugares registando as formas de envolver o sangue,
os fluidos errando, enlaçados,
os ritmos loucos desatando o crânio, o peito e a duração dos meses.

Numa noite suave, os violoncelos na penumbra,
os joelhos nascendo, entre a luz e as teclas, os aulos e os clavicórdios.
Caldeiras. Morcegos bruxuleando.
Os joelhos errantes errando numa Hexenlied de Mendelssohn,
as arcas cindidas juntando as trovas e os cabelos,
os joelhos e o corpo, os versos e a minha biografia
fundindo-se, numa simbiose luminosa.

Por vezes, o corpo tem linhas, instantes, lugares e neblinas
no silêncio que anuncia o fogo,
numa atmosfera verde, sublimada, nos momentos parados,

e os poetas têm olhos fundos, onde o peito se evapora,
pelo líquen cego arrancado à convulsão dos dias,
pelas harpas que dizem o corpo e a sombra,
um hálito de estrelas, a luz errante

e as umbelas límpidas, junto às umbreiras matinais.

In “Idades Sonâmbulas”

OS AMANTES DA NEBLINA
“Et tu boies cet alcool brûlant comme la vie”
Guillaume Apollinaire


Ecutas a penumbra, as veias quentes, os pântanos soltos,
a turva região, a cabeça lentíssima,
um caudal de lava que começa pelos olhos e invade
os lençóis negros.
Rarefeito é o ar e o corpo cria as suas dádivas,
as trepadeiras assinalam-te, trazendo o eco das regiões
nocturnas.
O ébano retrai-se, a realidade transforma-te.
Voam para longe os atormentados pássaros
que o olhar dilacera.
Olho os feixes magnéticos, os figos dulcíssimos.
As lareiras criam raízes terríveis e envolvem o corpo
numa língua exótica, numa evidência de musas.
E invento-te, a ti, amante da neblina,
porque Novembro é um silêncio atroz, uma casa nas nuvens,
um gemido que acorda e invade os lençóis negros,
sobre uma evidência putrefacta.
As pérolas são longos e meditabundos silêncios.
Com elas enlouqueço.
Os pulsos escondem-se na penumbra.
Talvez pelos círculos, os laços, a sucessão das bagas,
de romãs e crisântemos.
Talvez pelos círculos, as palavras e as luzes se fechem,
em uníssono, num álcool incessante,
com o respirar das candeias.


In "Amantes da Neblina"
Pierre Bonnard

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

José Paulo Paes

À GARRAFA
Contigo adquiro a astúcia
de conter e de conter-me.
Teu estreito gargalo
é uma lição de angústia.

Por translúcida pões
o dentro fora e o fora dentro
para que a forma se cumpra
e o espaço ressoe.
Até que, farta da constante
prisão da forma, saltes
da mão para o chão e te estilhaces, suicida,

numa explosão
de diamantes.

À TELEVISÃO
Teu boletim meteorológico
me diz aqui e agora
se chove ou se faz sol.
Para que ir lá fora?

A comida suculenta
que pões à minha frente
como-a toda com os olhos.
Aposentei os dentes.

Nos dramalhões que encenas
há tamanho poder
de vida que eu próprio
nem me canso em viver.

Guerra, sexo, esporte
 — me dás tudo, tudo.
Vou pregar minha porta:
já não preciso do mundo.

AO SHOPPING CENTER
Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo.

De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.

Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus

nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.

AO ESPELHO
O que mais me aproveita
em nosso tão frequente
comércio é a tua
pedagogia de avessos.
Fazem-se em nós defeitos
as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
a profundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.
No entanto, sem ti
sequer nos saberíamos
o outro de um outro
outro por sua vez
de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.
Isso até o último
vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo
anterior, posterior
a tudo, isto é, a nada.

[In: Prosas seguidas de Odes Mínimas, São Paulo, Companhia das Letras, 2010].

ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA
a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la
imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto paul éluard oswald de andrade guillaume apolinaire sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos
não adiantou nada
em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de ferro araraquarense
porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece nunca ter existido
nem eu

[In: A poesia está morta mas juro que não fui eu, Coleção Claro Enigma, São Paulo, Duas cidades, 1988].

Sobre o Autor



domingo, 20 de janeiro de 2013

Armindo Trevisan

OS MORANGOS
Foi absurdo que ela viesse. Os morangos
guardavam da chuva a pressa.
As folhas lhe alargavam a pele.
Seus pés tinham perdido o rigor
dos caminhos.

Os lábios lhe batiam,
coração trespassado. Pediu água para beber.

Foi absurdo que ela quisesse me amar neste dia.
Não pronunciamos palavra.
O entendimento dos corpos não nos deixou chorar,
pensamos em coisas que agradariam ao mundo.

Partiu subitamente. Em paz.
Quando se voltou para me olhar outra vez,
senti que não a amara sozinha. Dera-lhe
minha esperança incrível na ressurreição.

(O abajur de Píndaro & A fabricação do real - 1975)

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 60, seleção e prefácio Pedro Liyra, São Paulo: Global, 2011, p.  155.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Georges Bernanos

EXCERTO DE "SOB O SOL DE SATÃ"

Não era a paz, pois a verdadeira paz
é o equilíbrio das forças
e a certeza interior que dela brota
como uma chama.
Quem encontrou a paz não espera mais nada,
e ele, ele estava na expectativa de algo novo
que romperia o silêncio.
Não era o cansaço de uma alma exausta
que encontra o fundo da dor humana e ali repousa,
pois ele desejava mais.
E tampouco era a anulação de um grande amor,
pois no desligamento de todo o ser
o coração ainda está em vigília
e quer dar mais do que recebe...
Mas ele não queria nada:
ele esperava.

A princípio foi uma alegria furtiva,
inalcançável,
como que vinda de fora,
rápida, insistente,
quase inoportuna.
O que temer ou o que esperar
de um pensamento não formulado, instável,
do desejo leve como uma centelha?...
E contudo, assim
como no arrebatamento da orquestra
o maestro percebe a primeira
e imperceptível vibração da nota errada,
porém tarde demais para deter sua explosão,
assim também o vigário de Campagne não duvidava
de que havia chegado aquilo que ele esperava
sem conhecer.

Através das vidraças embaçadas,
o horizonte sob o céu apresentava
apenas um contorno vago, quase obscuro,
e, todavia, no pequeno aposento,
aquele dia de inverno tinha uma claridade leitosa,
imóvel, cheia de silêncio,
como se fosse vista através da água.
E, com certeza absoluta,
o abade Donissan sabia
que aquela inatingível alegria era uma presença.

Esvaecida a angústia, pouco a pouco
surgiram-lhe na lembrança pensamentos
que antes a haviam suscitado,
mas esses pensamentos agora
não tinham força para atormentá-lo.
Após um primeiro impulso de horror,
sua memória amedrontada deixou-os
aflorar um a um, com prudência,
depois apoderou-se deles.
Ele se inebriava ao senti-los domados,
inofensivos, transformados
nos humildes servos
de sua misteriosa alegria.

De repente,
tudo lhe pareceu possível,
e o mais alto degrau fora galgado.
Eis que uma mão o arrancara
do fundo do abismo,
onde se julgara preso para sempre,
e levara-o para tão longe
que ali reencontrava sua dúvida,
seu desespero, suas próprias falhas
transfiguradas, glorificadas.
Haviam-se aberto as fronteiras do mundo
onde cada passo à frente
é pago com um esforço doloroso,
e o fim chegava-lhe
com a rapidez do raio.

Essa visão interior foi breve,
mas deslumbrante.
Quando terminou, pareceu
que tudo ficava sombrio de novo,
mas ele vivia e respirava
na mesma luz suave, e a imagem entrevista,
depois perdida,
deixava atrás de si
um pressentimento inefável,
em lugar de uma certeza
cuja volúpia,  ele sentia,
lhe teria partido o coração.
A mão que o conduzira
afastava-se ligeiramente,
mantinha-se perto, ao seu alcance,
não o deixaria mais...
E o sentimento dessa misteriosa presença foi tão vivo
que ele bruscamente virou a cabeça,
como para encontrar  o olhar
de um amigo.

Obs.: Dei a este texto o meu ritmo. Por favor, não o reproduza nesse formato.... É fragmento de um romance, prosa poética. Não resisti à tentação de versificá-lo.

[Sob o Sol de Satã, tradução de Hildegard Feist, Rio de Janeiro: Ed. Globo,  1987, pp. 102-103]



sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Giorgos Séferis

O ÚLTIMO DIA 
Era um dia nublado. Ninguém decidia.
Soprava uma brisa leve. "Não é o vento leste, é o siroco"
   [disse alguém.
Alguns magros ciprestes espetados na encosta e o mar
cinzento com lagoas de luz um pouco adiante.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
"Não é o vento leste, é o siroco" foi a única decisão
   [que se escutou.
E no entanto sabíamos que na manhã seguinte não nos
   [restaria
mais nada, nem a mulher que ao nosso lado bebe o sono,
nem a lembrança de que um dia fomos homens,
mais nada na manhã seguinte.

"Este vento traz à mente a primavera", dizia a
   [amiga
que passeava comigo a olhar para longe "a primavera
que de repente fez baixar o inverno sobre o mar fechado.
Tão inesperado. Tantos anos se passaram. Como
   [morreremos?"

Uma marcha fúnebre zanzava pela chuva fina.
Como morre um homem? Estranho que ninguém
   [pensasse nisso.
E para os que pensaram era como recordações de velhas
   [crônicas
do tempo dos cruzados e da batalha naval de
   [Salamina.
E no entanto a morte é coisa que acontece; como morre
   [um homem?
E no entanto cada um recebe a sua morte, a sua própria
   [morte, que não pertence a mais ninguém
e a vida é esse jogo.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém decidia.
Na manhã seguinte não nos restaria nada: rendição
   [total; sequer as nossas mãos;
e nossas mulheres servindo aos estrangeiros, nossos filhos
   [nas pedreiras.
Passeando comigo minha amiga cantava uma canção
   [estropiada:
"A primavera, o verão, raiás..."
Vinham à lembrança velhos mestres que nos deixaram
   [órfãos.
Passou um casal a conversar:
"Eu me cansei da tarde, vamos para casa
vamos acender a luz de casa."

Atenas, fevereiro de 39

[Poemas Giorgos Seféris, São Paulo: Nova Alexandria, 1995, pp. 113-114, sel., trad. e notas de José Paulo Paes].



quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Daniel Faria


Depois das queimadas as chuvas
Fazem as plantas vir à tona
Labaredas vegetais e vulcânicas
Verdes como o fogo
Rapidamente descem em crateras concisas
E seiva
E derramam o perfume como lava

E se quiséssemos queimar os animais de grande porte
Eles não regressariam. Mas a morte
Das plantas é sua infância
Nova. Os caules levantam-se
Cheios de crias recentes

Também os corações dos homens ardem
Bebem vinho, leite e água e não apagam
O amor

***
A estrela nasce da raiz carbonizada
Do caule queimado
Da roda dos bois afogueados
Quando em chamas com cornos espigados
Passam entre medas que alumiam o caminho para casa.
O fogo é provisão e possessão
O degrau na vida - ao meio
A bússola que arde. E há constelações na mão
Que leva o gado.

***
Largo é o aberto abandonado
E o vazio é pata que sustenta
De leveza o ramo. O pássaro amanhece
E o seu bico não fere o seu canto.

***
Como doem as árvores
Quando vem a Primavera
E os amigos ainda estão de pé

***
Como as crias no colo dobrasse as patas
E nas pequenas hastes trespassasse
O que separa
E bebesse do chão aberto pelos cascos

***
Voz o vento passando entre poeira
Edifício
Árvore noutro poema
Fico à sombra da vide e do esteio no Outono

E enxerto a luz
em tudo o que nomeio

[Daniel Faria, Poesia, Quasi Edições]


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

João Cabral de Melo Neto

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR
Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

João Cabral de Melo Neto, Obra Completa, Editora Nova Aguilar S.A.,  Rio de Janeiro, 1994, pág. 560.


RUBEM BRAGA E O HOMEM DO FAROL
É necessário vocação
na carreira de faroleiro.
Consta do serviço civil,
tem obrigações e direitos.

Porém não se entra nela como
em qualquer outra profissão:
entrar para ser faroleiro
é como entrar em religião.

É como entrar-se para a Igreja
numa ordem contemplativa,
pois no alto cargo se cavalgam
vazios propícios à mística.

Na torre só, mais: isolado
de tudo o que faz transeunte,
habita a linha de fronteira
onde espaço e tempo se fundem.

O mar em volta do farol
é qual relógio sem ponteiros.
O faroleiro é só em si,
sem companhia nem do espelho.

O faroleiro é como nu,
ser devassado por janelas
que o cercam de todos os lados
e para o nada sempre abertas,

sobretudo para esse nada
que há na fronteira espaço-tempo:
o silêncio, que abafa como
almofada de algodão denso.

Ora o nada aberto ao redor
leva-o à posição uterina,
fechando-o ainda mais em si,
habitando a moela mais íntima,

ora dissolve o faroleiro,
que embora desperto se anula:
as vias da contemplação,
qualquer das duas, se quer, usa.

Rubem Braga uma vez tentou
salvá-lo do não metafísico:
foi visitar um faroleiro
titular de uma ilha do Rio.

Rubem Braga logo decide:
não é homem de introspecção.
Vê que precisa de diálogo
esse afogado em tanto não.

De volta ao Rio, nos jornais,
lança um apelo: que doassem
vitrolas, rádios, qualquer voz
ao navegante sem navegagens.

João Cabral de Melo Neto, Obra Completa, Editora Nova Aguilar S.A.,  Rio de Janeiro, 1994, pp. 607-608


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Alejandra Pizarnik


FORMAS
Não sei se pássaro ou jaula
mão assassina
ou jovem morta ofegando na grande garganta escura
ou silenciosa
mas talvez oral como uma fonte
talvez jogral
ou princesa na mais alta torre.

SALVAÇÃO
Se a ilha escapa
e a moça volta a escalar o vento
e a descobrir a morte do pássaro profeta
Agora
é o fogo submetido
Agora
é a carne
a folha
a pedra
perdidos na fonte do tormento
como o navegante no horror da civilização
que purifica a caída da noite
Agora
a moça descobre a máscara do infinito
e rompe o muro da poesia

EXÍLIO
A Raúl Gustavo Aguirre
Esta mania de me saber anjo,
sem idade,
sem morte para a qual viver,
sem piedade por meu nome
nem por meus ossos que choram vagando
E quem não tem um amor?
E quem não goza por entre amapolas?
E quem não possui um fogo, uma morte,
um medo, algo horrível,
ainda que fira com plumas,
ainda que fira com sorrisos?
Sinistro delírio amar uma sombra.
A sombra não morre.
E meu amor
só abraça ao que flui
como lava do inferno:
una loja calada,
fantasmas em doce ereção,
sacerdotes de espuma,
e sobretudo anjos,
anjos belos como lâminas
que se elevam na noite
e devastam a esperança.              
a moça descobre a máscara do infinito
e rompe o muro da poesia. 

PEREGRINAÇÃO
Chamei, chamei como náufraga ditosa
as ondas verdugas
que conhecem o verdadeiro nome
da morte
Chamei o vento
confiei-lhe o meu desejo de ser
Mas um pássaro morto
voa até a desesperança
em meio à música
quando bruxas e flores
cortam
a mão da bruma.
Um pássaro morto chamado azul.
Não é solidão com asas,
é o silêncio da prisioneira,
é a mudez de pássaros e vento,
é o mundo irritado com meu riso
ou os guardiões do inferno
rompendo minhas cartas.
Tenho chamado, tenho chamado
Tenho chamado até nunca.

In Poesía Completa, Barcelona: Editorial Lumen, 2000
Tradução de Ana Maria Ramiro



segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Maria do Sameiro Barroso

POEMA PARA MARIA GABRIELA MARTINS
Frescura alvíssima de magnólia e nuvens,
assim és tu, estrela branca, figura esguia,
roteiro de sol,
chama derramada, na fronte algarvia.

Na noite de pérolas, és amendoeira puríssima,
jardim luminoso,
recanto onde voam aves antiquíssimas,
entre as pedras, o limbo,
as águas mouras, as águas cintilantes,
as águas de Abril.

Porque te conheci, um dia, como exaltada flor,
no teu país de brisas doces,
é que repenso o agora, o antes, o sempre,
penso nas rimas perfeitas, nas águas lentas,
coloco um candelabro sobre a mesa,
escuto as estrofes do silêncio,
neste lugar onde o arvoredo brama
e a palavra brilha, no espaço
em que a poesia é a ramagem eleita,
sobre castelos semeados,

na lua clara de preciosas sementes.

Fonte:  sites.google.com/site/nasmargensdapoesia/poetas/maria-do-sameiro-barroso


Thomas Moran

domingo, 13 de janeiro de 2013

María Zambrano

PORQUE SE ESCREVE
Escrever é defender a solidão em que se está;
é uma ação que brota de um isolamento afetivo,
mas de um isolamento comunicável,
em que, necessariamente, pelo distanciamento de toda coisa
concreta possibilita-se uma descoberta
de relações entre elas. O escritor sai de sua solidão
a comunicar o segredo. Logo já não é o segredo
mesmo por ele conhecido que completa,
posto que necessita comunicá-lo.
Será esta a comunicação?
Se é ela, o ato de escrever é só um meio,
e o escrito, o instrumento forjado.
Mas caracteriza o instrumento o que se forja
em vista de algo, e este algo é o que
lhe empresta sua nobreza e esplendor.

AMO MEU EXÍLIO
Renunciei a meu exílio e estou feliz e contente, mas isso não me leva a esquecê-lo. Seria como negar uma parte de nossa história e de minha história. Quarenta anos de exílio não podem me devolver ninguém, o que torna mais bonito a ausência de rancor. Meu exílio está plenamente aceito, mas eu, ao mesmo tempo, não peço nem desejo que nenhum jovem o entenda, porque para entendê-lo seria necessário padecê-lo e eu não posso querer que ninguém seja crucificado.

A TUMBA DE ANTÍGONA
Sombra de minha vida, minha sombra. Sou uma mocinha, nada mais que isso. E o  fui mesmo? Fui algum dia  somente isso, uma mocinha? Por que vejo essa sombra? É a minha? Há novamente luz aqui? Não, não é de hoje, não posso ser a sombra dessa mocinha, rápida, alta, perfumada. Nunca o fui. E agora há outra sombra. És tu, meu irmão, que finalmente foste recebido pela terra e vens buscar-me? Traze-me água, os aromas, me darás tua mão para levar-me ao outro lado? 

Sobre María Zambrano

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Eduardo García

REFUTAÇÃO DA ALEGRIA
Perdoem a imprudência, estou de passagem,
despenquei nesta página, não soube
medir as minhas forças, apurar a brisa,
resistir ao seu enérgico convite,
a página pedia um desalento
à altura do pranto e dos sapatos,
mas não estava eu para defuntos,
brotou em mim uma sonora gargalhada,
um carvalho pendurado de um trapézio,
um tigre amamentando uma gazela,
uma centopeia saudando, inumerável,
nada é seguro aqui, já me dou conta,
por desgraça a página está inquieta,
reclama já seu fastio imemorial,
e eu nos musaranhos, tão contente,
encouraçado, enfim, feliz, já vem,
pouco propenso à melancolia,
convocando o desejo na figura
de uma mulher no término do gozo,
sem tristeza post-coitum, não faz mal,
esplêndido animal, fruta sem dono,
deslumbrante na página, sensual,
uma refutação da elegia,
uma celebração da alegria,
corpo fugaz, matéria derramada,
zomba da página, transpira,
deixo-os com seu deleite, não sem antes
convidá-los a arder pelas raízes,
a viver pela pele na contramão,
não quero saber se a página
persiste por inércia em sua aflição,
se gosta de sofrer é problema dela,
nós com o que é nosso, até o mar alto.

Marcone Moreira










Eduardo García, Antologia Pessoal, Brasília: Ed. Thesaurus, 2011, p. 105, trad. Antonio Miranda

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Paul Celan

TENEBRAE
Estamos próximos, Senhor,
próximos e palpáveis.

Palpados já, Senhor,
Agarrados uns aos outros, como se
o corpo de cada um de nós fosse
teu corpo, Senhor.

Roga, Senhor,
roga por nós,
estamos próximos.

Empurrados pelo vento fomos,
fomos até lá para curvar-nos
rumo a vale e cratera.

Havia sangue, havia
o que verteste, Senhor.

Brilhava.

Cristal, São Paulo, Ed. Iluminuras, 1999, seleção  e tradução Cláudia Cavalcanti, p. 67

OS CÂNTAROS
Nas longas mesas do tempo
embebedam-se os cântaros de Deus.
Eles esvaziam os olhos de quem vê e de quem
                                                              [não,
os corações das sombras reinantes,
o magro rosto da noite.
São os maiores bebedores:
levam à boca o vazio como o pleno
e não transbordam como eu ou tu.

Cristal, São Paulo, Ed. Iluminuras, 1999, seleção  e tradução Cláudia Cavalcanti, p. 41


CANÇÃO DE UMA DAMA NA SOMBRA
Quando vem a taciturna e poda as tulipas:
Quem sai ganhando?
                  Quem perde?
                        Quem aparece na janela?
Quem diz primeiro o nome dela?

É alguém que carrega meus cabelos.
Carrega-os como quem carrega mortos nos braços.
Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em
                                                                        [que amei.
Carrega-os assim por vaidade.  

E ganha.
              E não perde.
                         E não aparece na janela.
E não diz o nome dela.  
É alguém que tem meus olhos.
Tem-nos desde quando portas se fecham.
Carrega-os no dedo, como anéis.
Carrega-os como cacos de desejo e safira:
era já meu irmão no outono;
conta já os dias e noites.

E ganha.
             E não perde.
                    E não aparece na janela.  

E diz por último o nome dela.
É alguém que tem o que eu disse.
Carrega-o debaixo do braço como um embrulho.
Carrega-o como o relógio a sua pior hora.
Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora.

E não ganha.
                    E perde.
                              E aparece na janela.
E diz primeiro o nome dela.  

E é podado com as tulipas.

(Tradução: Claudia Cavalcanti )

Fonte: www.culturapara.art.br

Sobre Paul Celan

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Adonis

ESPELHO DO CORPO DO OUTONO
Você já viu a mulher
como carrega o corpo do outono?
Primeiro ela mistura o rosto e a calçada
depois tece um vestido com os fios
          da chuva
as pessoas
          na cinza da rua
são brasa apagada. 

ESPELHO DO TEMPO E DO OLHO
Cantei, disse aos dias:
do sangue ergui cidades
que geram ritmos
disse aos dias: estendi-o
como um ramo saudoso
que na seiva me leva ilumina a morte, a mortalha
cantei disse aos dias:
este é o meu sangue
          (certa essência talvez de
          certa ciência
          se a declarasse diriam:
          adora ídolos)
cantei desjuntei — dos cílios que o teciam —
o sonho e juntei ao tempo
o olho.

[ADONIS poemas, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, seleção e tradução do árabe Michel Sleiman, pp. 128-129].

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Maria Teresa Horta

INVOCAÇÃO AO AMOR
Pedir-te a sensação
a água
o travo

Aquele odor antigo
de uma parede
branca

Pedir-te da vertigem a certeza
que tens nos olhos quando
me desejas

Pedir-te sobre a mão
a boca inchada
um rasto de saliva na garganta

Pedir-te que me dispas
e me deites
de borco e os meus seios na tua cara

Pedir-te que me olhes e me aceites
me percorras
me invadas me pressintas

Pedir-te que me peças
que te queira
no separar das horas sobre a língua

Meu ciúme
meu perfil
minha fome

Meu sossego
minha paz
minha aventura

Meu sabor
minha avidez
saciedade

Minha noite
minha angústia
meu costume

TU
Com esse teu ar
de arcanjo negro

pálido e magro
triste e alheado

ficas por vezes quase etéreo
calado
enquanto eu te olho docemente

Num espanto condenado
quase místico
debruço-me secreta à tua beira

e numa espécie de prece
porque existes

alheado magro
belo e triste

estou de joelhos meu amor
e beijo-te

(Palavras Secretas, São Paulo, Ed. Escrituras, 2007, p. 41-43)

ACUSAÇÃO NO VENTO
Acusaram-me as mãos
na loucura das luas
inclinadas na cintura
das noites

A angústia das aves
só duas
em horizontal no coração das gôndolas
celebraram a paixão
dos amantes sem lábios

rarearam os pianos
nos sonhos

nos espelhos
a angústia
tomou a forma
duma mulher
vestida de encarnado

paixões desencontradas
no som dos violinos
mortos pelo vento

pântanos na vertigem
das princesas

deslealdade
das luzes de neon
entornada nos lagos

acusaram-me os arbustos
nos cabelos

(Palavras Secretas, São Paulo, Ed. Escrituras, 2007, p. 19)
Andrea Farmer

domingo, 6 de janeiro de 2013

Alejandra Pizarnik

Um golpe da aurora nas flores
me abandona ébria de nada e de luz lilás
ébria de imobilidade e de certeza

***
Te distancias dos nomes
que fiam o silêncio das coisas

***
Aqui vivemos com uma mão na garganta. Que nada é possível, isso já o sabiam os que inventavam chuvas e teciam palavras com o tormento da ausência. Por isso em suas orações havia um som de mãos enamoradas da névoa.

Para André Pieyre de Mandiargues

***
no inverno fabuloso
a endecha das asas na chuva
na memória da água dedos de névoa

***
É um cerrar os olhos e jurar não abri-los. Enquanto isso, do lado de fora, se alimentem de relógios e de flores nascidas da astúcia. Mas com os olhos fechados e um sofrimento  imenso pressionamos os espelhos até que as palavras esquecidas soem magicamente.

***
alguma vez
          alguma vez tal vez
irei sem ficar
          irei como quem vai
Para Ester Singer

***
Vida, minha vida, cai, dói, minha vida, enlaça-te de fogo, de silêncio ingênuo, de pedras verdes na casa da noite, cai e dói, minha vida.

***
Para além de qualquer zona proibida
há um espelho para nossa triste transparência

In Árbol de Diana (1962)

Maxim Grunin - acrílico sobre tela

sábado, 5 de janeiro de 2013

Mariana Ianelli

EXPIAÇÃO
Da parceria profunda
reconheço os meus filhos alçados pelo reverso,
nos cordéis do pavilhão
onde cessam aqueles aventureiros
que aprovaram sobre seus prazeres o mal.
Desalinhados pelo osso,
com suas letras emborcadas na pedra,
o couro jovem desfiado em escarlate,
cravado na vara alta por semanas.
Ao toque de alarma para a agonia,
entre se resolverem pelo ferro
ou pelo único tributo indulgente
de rendição que os vingasse,
eles foram acautelados por mim,
ungidos com o meu soro bento
e depois completamente escarnados.

In Duas Chagas, São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 95


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Hilda Hilst

I
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Aquarela Marina Martinelli
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.

II
Como se perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se fosse tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

III
De uma fome de afagos, tigres baços
Vêm se juntar a mim na noite oca.
E eu mesma estilhaçada, prenhe de solidões
Tento voltar à luz que me foi dada
E sobreponho as mãos nas veludosas patas.
De uma fome de sonhos
Tento voltar àquelas geografias
De um Fazedor de versos e sua estada.
Memorizo este ser que me sou
E sobre os fulcros dentes, ali
É que passeio e deslizo a minha fome.
Então se aquietam de pura madrugada
Meus tigres de ferrugem. As garras recolhidas
Como se mesmo a morte os excluísse.

In Obra Poética Reunida, Brasilia: Editora da UNB, 1998 pp. 35-36

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...