quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Micheliny Verunschk

NAUFRÁGIO

Silêncio,
agora me destroço,
mastro retorcido,
casco arrebentado.

Meu nome encontra
o rosto da sereia cega
e decepada.

Meu nome encontra o nome
desse país provisório
entre a vida e a água.

Vértebras.

Pele furada.
Olho de baleia.

Agora é a minha deixa.

Coluna dolorida
tocando o abismo
desse céu inverso.

Incisão de agulhas de tricô.

Silêncio.
Agora me atravessam
pregos,
travessões.

Silêncio,
agora começou.

Copiado da Revista de Autofagia, Belo Horizonte, MG, n. 3, março de 2009, p. 22
Sobre a autora
Blog da autora: http://www.ovelhapop.blogspot.com

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Verônica de Aragão

MOBILIÁRIO
Como se saído de uma ampulheta
o pó cotidianamente se derrama
sobre os móveis.

E a mulher, com mão de Sancho,
recolhe com pano umedecido
os vestígios do tempo
na serenidade da casa.

Não há nada de eterno sob a razão do tempo.

E o que é a realidade
se não a tentativa frequente
de recolher o pó caído da ampulheta
e depositado na mobília;
se não o polimento contínuo das coisas
para que a imagem delas fique intacta;
se não o movimento incessante da mão
até o esgotamento
— até que outra mão substitua a anterior
e sob sua força se construa uma nova realidade
tão irreal quanto a primeira. 

Como se fosse possível eternizar o amor
que também se esvai, tão quanto a areia.

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 90, seleção e prefácio Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2011, pp. 160-161.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Clarice Lispector

Ângela.- “O Indescritível”

Comprei uma coisa pela qual perdidamente me apaixonei: o preço não importa, esse objeto vale o ar.

Tem essa coisa uma base sólida de metal, muito concisa. Nesse cilindro faiscante há uma levíssima abertura. Nesta se põem hastes delicadas e finas. E em cima de cada haste fica em glória uma bolinha redonda e pequena que parece uma joia de prata de lei.

Esse objeto é mágico. Basta um sopro ou um leve toque de mão — e ele vibra todo se confundindo tremeluzente com o ar. É um objeto de lua ou de sol? parece uma boa notícia, parece um susto alegre, parece um “de repente”. São trinta bolinhas e hastes. Mas você se engana: quando elas se põem a vibrar e a mexer-se parecem um delicado trilhão de bolinhas. Mais outra coisa ele tem: quando se acendem as luzes da sala, as bolinhas fazem sombra, verdejantes.

E tem mais: quando vibra resulta do leve entrechoque das bolinhas entre si — resultam umas notas musicais. E esse objeto se for bem trabalhado e impulsionado canta ligeiro — ligeiro dó-ré-mi...

“Pegando a palavra”. Pego a palavra e faço dela coisa.

Peguei a alegria e fiz dela como cristal brilhíssimo no ar. A alegria é um cristal. Nada precisa ter forma. Mas a coisa precisa estritamente dela para existir.


In Um Sopro de Vida (Pulsações), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4a. ed, 1978, p.111


Miguel Cruz

domingo, 25 de novembro de 2012

Gastão Cruz

SEGUNDA GLOSA
ao Manuel Gusmão, que da Litania 
também recolheu os ecos

Regressámos à curva das palavras, ao
eco na abóbada total
onde a nossa pequena eternidade
como a frágil película dum filme
escurecido se fixava

Tínhamos posto as mãos sobre a pele do tempo
por baixo pressentindo
a corrente de lava enquanto esperança
e desejo sopravam
no peito raso

Entendemos agora que
quando cruelmente triunfamos
é fugaz o furor voraz dos músculos
e por isso terror e alegria, então
e hoje, nos trespassam 

[Escarpas, Rio de Janeiro, Móbile, 2011 p. 60]


sábado, 24 de novembro de 2012

Mia Couto

OS PAPÉIS DA MULHER

O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.
Adélia Prado

Sou mulher, sou Marta e só posso escrever.  Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. Se viesses agora, Marcelo, eu ficaria sem fala. A minha voz emigrou para um corpo que já foi meu. E quando me escuto nem eu mesma, me reconheço. Em assuntos de amor só posso escrever. Não é de agora, sempre foi assim, mesmo quando estavas presente.

E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Pala­vras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jerusalém.  Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja.
Só te amei a ti, Marcelo. Essa fidelidade levou-me ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-me da possibilidade de amar. Agora, entre todos os nomes, só me resta o teu nome. Só a ele posso pedir o que antes te pedia a ti: que me faça nascer. Porque eu preciso tanto de nascer! De nascer outra, longe de mim, longe do meu tempo. Estou exausta, Marcelo. Exausta, mas não vazia. Para se estar vazia é preciso ter dentro. E eu perdi a minha interioridade.

Por que não escreveste nunca? Não é de te ler que mais tenho saudade. É o som da faca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém.

* * *
Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.

Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca.

* * *

Esta manhã, contemplei ao longe a queimada. Do outro lado do rio, extensões imensas se consumiam num ápice. Não era a terra que se convertia em chama: era o próprio ar que ardia, todo o céu era devorado por demônios.

Mais tarde, quando as labaredas serenaram, restou um mar de cinza escura. Na ausência de vento, partículas flutuavam como negras libélulas sobre o carbonizado capinzal. Podia ser um cenário de fim de mundo. Para mim, era o oposto: era um parto da Terra. Apeteceu-me gritar pelo teu nome:

Marcelo!

Escutar-se-ia longe, este meu grito. Afinal, neste lugar, até o silêncio faz eco. Se existe um sítio onde eu possa renascer é aqui onde o mais breve instante me sacia. Eu sou como a savana: ardo para viver. E morro afogada pela minha própria sede.

* * *
Que é isto?
Na última paragem antes de chegarmos a Jerusalém, Orlando (a quem devo habituar-me a chamar de Aproximado) perguntou, apontando para o meu nome na capa do meu diário:
O que é isto?
Esta —  emendei. — Esta sou eu.

Devia ter dito: esse é o meu nome, grafado na capa do meu diário. Mas não. Disse que era eu como se todo o corpo e toda a minha vida fossem cinco simples letras. É isso que sou, Marcelo: sou uma palavra, tu me escreves de noite, de dia me apagas. Cada dia é uma folha que tu rasgas, sou o papel que espera pela tua mão, sou a letra que aguarda pelo afago dos teus olhos.

[Fragmento de ANTES DE NASCER O MUNDO, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, pp. 131-134].




sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mariana Ianelli


II
As patas ardendo no sal do estrangeiro,
Bem-vindo seja o caçador que me tem.

Veias abertas,  suplico, costas marcadas,
Que venha a cruz alta, flagelo do céu.
E venham amarras, estacas e brasas,
Este membro adaga, três vezes meu.

Ao som do alaúde, desce o fio d’água,
Esganiço e calo, me regozijo de medo.

Eu, placidez de cabra, perdão de joelhos.
Dentre os animais, um sim que pranteia.

Eu, estado de graça, salvar e adoecer.

Mais, peço mais, flor no baixo-ventre,
Auréola de fogo em minha cernelha.
Toda vela, todo véu, breu me possui
Enquanto, luz, possuo o reverendo.

Sagrada, profana: hóstia que me contém.

Do livro Almádena, Iluminuras: São Paulo, 2007, p. 48

Sobre Mariana Ianelli

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Silvina Ocampo

PRESSENTIMENTO
Durante muitos dias me seguiste.
No canto do pássaro, nas sombras,
Nas modulações do espaço:
Aprendi a conhecer-te.
Eu sentia tua luz atravessar-me
Como uma flecha de ouro envenenada.
Desobedecia-te arrependida.
Falavas-me em segredo.
Nos espelhos quebrados, na tinta
Azul dos cadernos que deixavas
Sobre a mesa de meu quarto.
Eu tremia a olhar-te, eu tremia
Como tremem os galhos refletidos
Na água movida pelo vento.
Agora que conheço teus sinais,
Tua pele e tuas orelhas, teu semblante,
Não te desobedecerei,
E  ajoelharei diante de tua imagem,
Implacável sibila que me segues.

[Silvina Inocencia Ocampo Aguirre nasceu em Buenos Aires no dia 28 de julho de 1903. Na juventude estudou desenho em Paris com Giorgio de Chirico e Fernand Léger. Poeta, contista e tradutora, casou-se com o escritor  Adolfo Bioy Casares, em 1940. Faleceu no dia 14 de dezembro de 1993, em Buenos Aires].

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Adélia Prado

BITOLAS
O mar existindo com este navio imenso,
coitado de quem não viu
e só soube de mar de rosas e rio de enchente parecendo um mar.
O navio apita, dentro dele é grande, dividido em cômodos,
tem espaço pra cozinha, piscina, sala de visita,
até capela tem com seu capelão! OHAH!
Tão diverso de anzolinho de piaba e água doce
esta água estendendo-se até dormir de cansaço
e virar país estrangeiro.
Coitados de pai e mãe que morreram sem ver.
Dizem que estrela do mar, quando está viva, é um bicho,
depois de seca é que vira enfeite de parede. Tem navio
que cabe essa rua toda de gente.
Eu dou as costas pro mar,
afogada em despeito choro um rio de lágrimas.
Já li ´mar de sargaços´; seja o que for, é belo.
Qualquer homem é estrangeiro, comparado a outro homem
que nunca viu sua terra.
Não quero viajar mais. Tenho gravuras do mar e mais
o que me foi dado com pequeno quintal e distraiu meus avós
e foi causa de celebração e motins, juramentos solenes
acompanhados de viola e rostos graves.
Um doou um rim; outro, um lote,
outro me deu um enxoval pra estudar no ginásio
e sofreu até morrer da doença terrível,
sem um ai de sua boca que agravasse o Senhor.
Pecados graves, medo, inocências incríveis cometeram,
espraiaram satisfações por causa da chuva, das galinhas chocando,
por causa das passagens do livro prometendo alegria:
“a figura deste mundo passa, olho humano jamais viu
o que espera os eleitos...”
Não quero saber do mar. No fundo da mina,
em minas, também tem frestas de luz.
Queria ser dramática e não sou.
Isto me fez sofrer até agora.
É um córrego, um veio d’água,
um estro pequeno, o meu.
Se o crítico tiver razão,
nunca terei estátua.
Valha-me, pai,
num mar de vaidades não me deixe morrer,
pela vida, entrego os versos todos;
na perna erisipelada
porei compressas quentes.
A noite inteira, se for preciso. 

In: Poesia Reunida, São Paulo: Siciliano, 2001, pp. 207-208


JOSÉ PANCETTI

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Renan Nuernberger


BANDEIRIANA

para Caru

Um dia - disse-lhe, 
muito embora soubesse 
dos riscos — 
disseca-se a esperança,
esta mortalha sem respiro, 
e descobre-se perplexo 
que no meio da 
gangrena
tem muito sangue, sim.

GULLARIANA

idem

de tudo ao meu amor serei 
e mesmo morto de 
cansaço ou fome 
(que contra incêndios e
sequestros não 
há metáforas nem 
saídas) embalarei 
sua noite (cristais 
me ouvem), lhe 
tomarei em meus 
braços (o corpo pende) 
como um cacho de
uvas, uma lembrança 
de infância, um ideal, 
uma semente, um filhote 
de zebra, um exemplar 
de um velho livro, uma 
língua estrangeira.

Mesmo Poemas
Selo Sebastião Grifo
São Paulo, 2010
pp. 50-51



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Maria José de Queiroz

O QUADRAGÉSIMO-NONO DIA
Na celeste cidade das almas
não me permitem ingresso.
Em discórdia comigo mesma,
deploro o corpo — minha morada,
condenado ao escárneo da terra
e à corrupção nefasta.
Dividida entre dois mundos,
não sei se vivo ou se morro.
Ando à deriva de mim mesma
nesse lento perecer que me consome.
As lembranças me fogem, o passado me escapa.
Tudo é mudança.
Atenta aos impulsos da vida
gasto os dias na aridez do descanso.
Todos os espelhos estão cegos à minha imagem.
Os olhos dos amigos recusam contemplar-me.
Orfã da carne mortal,
aguardo a celebração da morte,
o refrigério do rito funerário.
Aspiro ao definitivo.
Para que se cumpra o resgate
urge sepultar no olvido
o que foi paixão e inquietude.
No quadragésimo-nono dia,
depois da última festa,
tudo estará terminado.

Indonésia

NÃO SE DEVE ENGANAR UM MORTO
Na sepultura provisória
iniciam-me nos discretos mistérios da morte.
A vigilância dos amigos
afugenta os monstros noturnos,
oonjura os maus espíritos,
defende-me do tumulto.
Com gestos puros despedem-me 
da intimidade dos vivos.
Exaltam a umidade da floresta, 
o silêncio da terra, 
o manso aconchego da relva.
Compenso as súbitas mudanças 
na serena imobilidade; 
substituo a fadiga estéril 
pelo sono fecundo, 
surdo a todo alarme.
Não se deve enganar um morto. 
Roubaram-me a inquietude e a dúvida, 
habito a certeza inalterável.

China

In: Resgate do Real: Amor e Morte, Coimbra Ed. Ltda: Belo Horizonte, 1978, pp. 56-57


domingo, 18 de novembro de 2012

Daniel Faria

1
Acordei com as narinas a sangrar perfume
Como um santo quando acaba de morrer
E debrucei-me para dentro
Para encontrar o golpe no sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
Que quebrava vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
Ela rasgou-me as veias com cacos
E deu de beber aos pássaros.

2
Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulhas no coração
Ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo.

3
Ela pôs-me o dedal sobre os olhos
Um vaso pequenino com que me ministrou o sono
Apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas e nos pulmões,
Digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros batessem as asas
E fez circular o ar.

4
Acordei dentro do poço
Do ar
E soube que podia respirar dentro da água
Porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me respondeu,
Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar

5
Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
A mulher era uma ilha de todos os lados
Na sua força de um redemoinho parado

6
Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca,
Espetou-me um anzol na língua e puxou-me
As palavras
Foi então que pensei que ia morrer
Afogado.

7
Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo
Com a boca cheia de búzios em forma de palavras.
Soube que era possível respirar dentro das palavras
Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.

8
E eu disse à mulher: destece-me
Até que alguma coisa me pense para dentro
Como se alguém me chamasse
Como se badalasse um sino ao redor
Dentro de mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio — disse —
Dos teus novelos.

9
Assemelhei-me a um xilofone de silêncio
A um estrondo muito forte que só se ouvia bem em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou a minha tristeza e começou a dobrar.

10
Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço
E disse: é agora que vou descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
Ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança
A prumo.

11
A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares

12
A mulher guardou-me no útero
E eu vi quanta morte existe ao redor de quem nasce.
Perguntei à mulher: porque estás de luto?
Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias do holocausto
Exatamente como nas manhãs depois dos terremotos
Cadáveres e cadáveres de peixes e pássaros

13
Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado
E gritei para fora do poço: existe alguém desse lado?
Eu estava no fundo, eu estava morto e vi
Que os peixes e os pássaros
Ressuscitavam.

Daniel Faria, Poesia, Quasi Edições

sábado, 17 de novembro de 2012

Leopoldo Maria Panero

A CANÇÃO DE AMOR DO TRAFICANTE DE MARIJUANA
E para quê morrer nos bairros onde
o batom substitui o sangue nos dão por cinco reais algo que dizem que é 
um sucedâneo do mel?
(Mesmo que às vezes contenha pestanas afogadas
 que você deve separar cuidadosamente antes de usar.)

Um cigarrinho por tão poucos reais! Melhor oferta não há!
O buraco de que tanto precisávamos para nele meter
a nossa enorme cabeça e
num intervalo de duas horas não ouvir nada além 
do barulho que ela
própria produz (uma espécie de rio de lodo).

O que estão esperando, o que estão esperando para
Desenterrar os pedaços de vidro colorido que a terra
engoliu as balas que ao passar pelo intestino se
transformarão em algo
desagradável ao tato, ao gosto, ao olfato,
ou os cachorros com que brincávamos na esquina
enquanto os carros ao passar nos sujavam de lama?

Tudo: as flechas, as férias, e tudo por tão pouco preço, 
senhores, por tão pouco preço um arlequim dançará nas 
suas pupilas, uma serpente com muleta aninhará nelas, 
um vento, talvez, reconheço que um pouco cansado 
e com vontade de ir para casa, tratará de limpar os cinzeiros,

e tudo por tão pouco preço, senhor, 
por tão pouco preço.

Tradução de Carlito Azevedo

[Fonte: Bliss, revista de poesia, Rio de Janeiro: 7Letras
volume único p. 137]


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Eduardo Milán


Seguir o fio de um som insinuado
Que bordeja o âmbito mais preciso:
O nascimento a pico entre pluma e palha
Daquele que noutra chave diz “sou”,
Esse assunto, nenhum tão minucioso,
Pelo pontual ponto por ponto caminho de se perder
E se achar em desorbitados
Ecos, boi assomado no abismo
- era assim a fineza procurada pelos stilnovistas
Chamaram-no “dourado” mais pela cor que pelo peso -
E quem o tira disso agora? Impossível:
Fios, fibras, fontes, estrias, olhos d’água.

Tradução: Odile Cisneros e Alcir Pécora

In Sibila - Revista de Poesia e Cultura
Ano 6 - n. 11 - 2006, p. 45
Martins Fontes
São Paulo


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Alejandra Pizarnik

OS TRABALHOS E AS NOITES
para reconhecer na sede meu emblema
para significar o único sonho
para jamais sustentar-me no amor

fui toda oferenda
um puro vaguear
de loba na floresta
na noite dos corpos

para dizer a palavra inocente

In Poesía Completa, Barcelona: Editorial Lumen, 2000, p. 171



Eucanaã Ferraz

ÚLTIMAS NOVIDADES
Houve o tempo em que se acreditava 
no poder da estampa: dizer um nome; 
no dizê-lo por escrito o dito era tinta 
e espírito unidos a quem o dizia de modo

fisiológico, porque tudo lhe pertencia.
Louca tecnologia a de um tempo aquele 
em que se acreditava que o nome assim 
escrito pudesse acender uma janela para

tanto todos tudo um mesmo fruto, e nisso 
um cinema sem tempo, uma ciência do instante, 
o poema, acredite, era o que parecia, que 
a felicidade se fabricava nos pertencia.

**

Recebemos um cartão. Onde estará? Havia 
um sinal característico, a carta, o papel, 
a linha-d'água, era possível segui-la, 
ia dar numa árvore, numa cidade; talvez 
fosse longe a mão que nos fizesse companhia, 
mas o farol, Pequena Ursa, boias de luz 
certificavam se era ou não a direção certa; 
porque as iniciais no envelope não mentiam,
havia presságios e, logo depois, a prova, bastava 
escolher os nomes, saber a data, agitávamos 
um lenço e, então, protocolo, métrica, ali­-
ança, pantomima, avistávamos no outro 
lado o nosso rosto e a terra e o tempo; ou 
uma frase qualquer consolava do desgosto 
de, afinal, não sabermos muita coisa, tanto 
engano, nunca sermos nada, mas nada era 
tão terrível assim. Nunca foi de outro modo, 
afinal. Recebemos um cartão. Onde andará?
Era uma palavra que dizia exatamente 
o que eu pensava.

[In Sentimental, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, pp. 62-63]

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Gastão Cruz

MARGEM DO MAR
Volto-me para ti ou antes para
o teu lugar se é que tal abstracção
é possível, noite sem
som onde tu és o eco múltiplo
procuro

ver novamente os teus vários retratos
animados pelo sol o amor ou a respiração
o sangue torna
a passar-te nos braços fotográficos
devo continuar

a narrar o percurso irregular
da tua multiplicidade
eras o ar a árvore voltar-me
para ti é como procurar
no mar os afogados


NÃO MAIS
Não mais te seguirei a um palco suburbano 
como num mês incerto de setenta e três 
ou mais exactamente

a ninguém seguirei
seja a que lugar for com o duvidoso
e porventura inútil desígnio do amor

Gastão Cruz
Escarpas
Rio de Janeiro, Móbile Editorial
2011
pp. 26-27


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen

O SOL O MURO O MAR
O olhar procura reunir um mundo que foi destroçado
pelas fúrias.
Pequenas cidades: muros caiados e recaiados
para manter intacto o alvoroço do início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento azul
sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência intensa
como o arfar de um toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos pátios
dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e atentos:
silêncio vigiando o clamor do sol sobre as pedras da
calçada.
Diz-se que para que um segredo não nos devore é
preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço ou de
um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para o
exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte, os
seus hábitos, o seu violento azul, o espesso amarelo, a
veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa — tinta que se
despinta — porta aberta para o pátio de chão verde:
soleira do quotidiano onde a roupa seca e espaço de teatro.
Mas também pórtico solene aberto para a vida
sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de manchas
nebulosas e sonhadoras.
A porta desenha sua forma perfeita à medida do homem: as
cores do cortinado de fitas contam a nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do homem.

No promontório o muro nada fecha ou cerca.
Longo muro branco entre a sombra e o rochedo e as
lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto de
escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica,
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do lugar
sagrado.


[In OBRA POÉTICA, Alfragide,  Caminho, 2011, pp. 739-740].


domingo, 11 de novembro de 2012

Júlio Castañon Guimarães


ESTUDO PARA ONTEM
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
tanto quanto noite adentro
a Mantiqueira te envolve com o frio
tanto quanto à noite no alto da Mantiqueira
os perfis escuros das árvores
marcados contra a noite
assim quase imóveis na cerração que corre
tanto quanto na Mantiqueira
se chega a tal ponto

a tal ponto da memória
em que ao longo das curvas
lento se recurva sobre si o corpo
contra ele próprio envolto
e uma espiral desaba desenvolta
até os confins de outra cerrada cerração
tão remota tão sem repercurso
que sequer se pode entrever
a manhã clara e o espaço aberto
dentro em pouco sobre a Mantiqueira

a noite sim a noite insiste sempre adiante
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
para que melhor se desfie a espiral
que desce até quando
o corpo sobre outro se envolvia
até mesmo quando lá no alto
em meio às árvores
ainda eram desde sempre
os únicos personagens do horizonte
mergulhados num silêncio
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
a  cada curva da espiral
num silêncio que subsiste
concreto como uma sombra

In Poemas [1975 - 2005], Cosacnaif: São Paulo, 2006, pp. 85-86

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Olga Orozco


LAMENTO DE JONAS
Este corpo tão denso com que fecho todas as saídas,
este paletó de sombras costurado às minhas duas asas
não me impede de ir até o fundo de mim:
uma noite fechada onde se refletem todas as miragens da noite,
umas águas absortas onde molha seus pés a esfinge de outro mundo.

Aqui costumo encontrar vestígios de outra idade,
fragmentos de panteões não dissolvidos pelo sal de meu sangue,
oráculos e faunas aspirados pelas cinzas de meu porvir.
Às vezes aparecem continentes voando, plumas de outras roupagens submersas;
Às vezes permanecem quase como o anúncio da ressurreição.

Mas é melhor não estar.
Porque aqui há armadilhas.
Alguém brinca de não estar quando eu estou
ou me observa das tocas de cada solidão.
Alguém simula um fosso entre o sonho e a pele para que me
deslize até o último abismo dos outros.
 Ou me induz a escavar debaixo de minha sombra.

É difícil sair.
Me tampam com um muro que só corre em direção ao nunca, jamais;
me escolhem para morrer lentamente;
me amaram às veias de um organismo cego que me exala e
me aspira sem cessar.

E o coração no entanto,
onde o coração, o tambor de saudades
que convoca em trevas a todos os relevos?
Para não falar deste corpo,
deste guardião opaco que me transporta e me retém
e me lança consigo em uma náusea dos pés à cabeça.

Sou meu próprio refém,
o lento refugio do veneno do verdugo,
o pacto com a morte.
E quem acaso disse que este seria um lugar para mim?


Fonte: Olga Orozco, Poesía Completa, Adriana Higaldo Editora: Buenos Aires, 2011, pp. 162-163.
Tradução: José Pires Cardoso e Antonio Damásio Rêgo Filho 




quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Renata Pallottini

ANTONIO EM LISBOA
1
Ouve, Antonio, quando fores a Lisboa 
espera a noite chegar,
mas que seja noite funda
e noite desesperada,
sai pra longe da cidade
pra fora, ao que lá se chama
não sei se fora de portas 
e vai ao Lobos do Mar.
O lobo é falsificado,
o mar é falsificado,
Nazaré cheira a Miami
mas não faz mal.
Vai e diz àqueles lobos
que eu os amo com constância,
com muita inutilidade
como convém que se ame
ao que longe nos está.
Em disponibilidade:
e que choro a madrugada
(e que choro a madrugada)
que me arrebatou de lá.

2
Imprecisão de lugares e réstias de sol sobre as pedras;
um cheiro de flor anônima: ciência de primavera.

Lembras-te do café no Rocio? Era de tarde,
o frio era amável e abria os braços
enquanto a fonte distribuía pássaros.

Lembras-te dos livros postos para a nossa gula?
Depois de subir a ladeira
que grande fome, a nossa, de Pessoa!

Bela coisa, ter-se fome e ser primavera,
bela coisa, beber-se café num grande gole tranqüilo
e estar-se tão imensamente vivo,
com o ar transeunte entre os dedos,
com sangue nos lábios conscientes
que vedam para sempre as palavras denunciadoras,
que guardam para sempre essa solene alegria.

3 (Cantadeira)
Fazes pensar num quarto — água-furtada —
num leito modestíssimo e insalubre
onde deitassem tua submissão.

Ali, tendo a cabeça subjugada,
havias de cantar um fado triste
pra aquela original celebração

a alguém que por mulher te tomaria
e não, como o desejas, por canção.

[In Obra Poética, São Paulo, Editora Hucitec, 1995, p. 82-84]
Abel Manta

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Augusto Frederico Schmidt


ALMA
Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.

Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.

Sou o que fui ...
Sou o que serei ...

Às vezes me abandono inteiramente a saudades estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua –
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então

Sou o que fui.
E sou o que serei.

Coleção Melhores Poemas, seleção de Ivan Marques, Global Editora: São Paulo, 2010, pp. 41-42


Rosa Montero


FRAGMENTO: A LOUCA DA CASA

Durante muito tempo achei que escrever podia resgatar-me da disso­lução e da escuridão, porque implica uma sólida ponte de comunicação com os outros e anula, por isso, a solidão mortífera; por isso necessita­mos de publicar e de ser lidos; por isso o fracasso total pode desfazer o escritor, como desfez Robert Walser. Depois compreendi que aqueles a quem chamamos loucos estão, muitas vezes, para além de qualquer res­gate (excepto, talvez, do resgate químico: as novas drogas estão a fazer milagres), e que a literatura só podia proteger aqueles que estavam deste lado ou então na zona fronteiriça, como talvez fosse o caso de Walser. Por último, há alguns anos comecei a pensar que, em determinadas oca­siões excepcionais, a literatura poderia mesmo acabar por ser prejudicial para o autor. Isso acontece quando o que se escreve começa a fazer parte do delírio; quando a louca da casa, em vez de ser uma inquilina alojada no nosso cérebro, se transforma no edifício inteiro e o escritor, num pri­sioneiro dentro dele.
Isso aconteceu, por exemplo, a Arthur Rimbaud, esse poeta deslum­brante que redigiu toda a sua obra antes dos vinte anos. Foi excêntrico e estranho desde pequeno e adquiriu hábitos de um autêntico demente: em 1871, com dezasseis anos, não se lavava, não se penteava, vestia-se como um mendigo, gravava blasfêmias à navalha nos bancos do parque, vadiava pelos cafés como um lobo sedento tentando que alguém o convi­dasse para um copo, contava aos gritos como gozava sexualmente com as cadelas vagabundas e tinha sempre na boca um cachimbo com o fornilho virado para baixo. Pouco depois disto, mudou-se para Paris e conheceu Paul Verlaine, outro poeta excelente e um perfeito tarado, alcoólico e violento. Apaixonaram-se tórrida e venenosamente um pelo outro e, durante alguns anos, arranjaram-se de forma a tornar impossíveis as suas vidas. Batiam-se, insultavam-se, ameaçavam-se, esfaqueavam as mãos um do outro nos cafés. E, ao mesmo tempo, escreviam sem parar. Rimbaud desenvolveu a teoria literária do Vidente. «Eu sou outro», dizia, e com isso talvez tentasse transformar o seu sentimento íntimo de alienação numa clarividência homérica, num dom sagrado e redentor. Passava o dia a estudar livros de ocultismo e chegou a acreditar que podia fundir-se com Deus recorrendo à ajuda das drogas e da magia. Como digo, incluiu a sua literatura no delírio. Como se não bastasse, apanhava carraspanas valen­tes de absinto e mastigava haxixe a toda a hora (nessa altura esta droga ainda não se fumava); fazia-o de uma forma consciente e voluntária, an­sioso por quebrar os laços com a pouca racionalidade que lhe restava, permitindo-lhe dar o salto para a divindade. Tudo isto o conduziu a um estado de perturbação constante: via salas rutilantes no fundo dos lagos e julgava que as fábricas que rodeavam Paris eram mesquitas orientais.
Quer a relação amorosa, quer o estado mental dos dois poetas, foi-se deteriorando rapidamente. Em 1873, Verlaine tentou matar Rimbaud e deu-lhe três tiros, mas só um acertou, na mão. Rimbaud acabou no hospi­tal e Verlaine na prisão (onde passou dois anos) e o escândalo arruinou a vida de ambos porque tomou pública e notória a sua homossexualidade, coisa inadmissível naquela época; até os amigos de Verlaine, poetas e supostamente boêmios, o excluíram da antologia de versos parnasianos que estavam a preparar, como castigo pela sua condição de sodomita. Rimbaud, que se apressou a publicar o livro Uma Temporada no Inferno, para ver se dessa forma recuperava algum prestígio, foi completamente menosprezado por aquela Paris cruel e repressiva. A sua teoria do Viden­te tinha falhado. Não só não se convertera em Deus, como estava mais enterrado do que nunca no demonismo. Em Novembro de 1875, Arthur Rimbaud queimou os seus manuscritos e deixou de escrever para sem­pre. Tinha vinte e um anos.
Passado muito tempo, a irmã perguntou-lhe por que tinha abando­nado a escrita; e ele respondeu que continuar com a poesia o teria enlou­quecido. Por isso não lhe bastou o silêncio, e, tendo sido todo palavras
(e as palavras terem multiplicado o seu delírio), tentou ser todo actos e nada mais do que actos. Ou seja, tentou transformar-se num fazedor. Quis encontrar a sensatez através de uma vida básica, esse tipo de vida que, de tão despida e difícil, parece mais real. Foi capataz de pedreiras e pedreiro no Chipre; viajou pela Somália e pela Etiópia, e, em Harar, em­pregou-se numa empresa de comerciantes de café. Trabalhava como um condenado e era de uma austeridade aterradora, quase não comendo e só bebendo água. Explorou regiões africanas desconhecidas; tornou-se traficante de armas e há quem diga que também traficou escravos. Era uma personagem conradiana, torturada e enigmática, que fugia de si pró­pria. Mas não conseguiu correr o suficiente. Em 1891, num recanto lon­gínquo de África, começou a sentir dores pavorosas no joelho. Era um cancro nos ossos. Amputaram-lhe a perna até à virilha (mutilaram o poeta mutilado) mas não serviu de nada. O tumor deixou-o praticamente parali­sado e demorou nove meses agónicos a devorá-lo. Rimbaud passou-os a chorar lágrimas de sangue, em parte pelo sofrimento físico insuportável, mas também de desgosto por ter vivido uma vida daquelas. Quando mor­reu tinha trinta e sete anos.
De forma que, ao belo e truculento Arthur Rimbaud, escrever enlou­quecia-o. Claro que, no seu caso, estamos a falar de poesia, não de narra­tiva. O romance é uma obra literária muito mais sensata. O romance constrói, estrutura, organiza. Põe em ordem o caos da vida, como diz Vargas Llosa. É muito mais difícil um romance contribuir para o trans­torno do seu autor. Mesmo assim, também há romances que acabam por ser uma alucinação. O magnífico Philip K. Dick acabou acreditando que os seus romances faziam parte de um complicadíssimo plano mundial e que Deus os colocara na sua mente para lhe revelar que a Humanidade estava presa numa ilusão, porque na realidade vivíamos ainda no Império Romano. E começou a agir de acordo com o que escrevera nos seus livros anteriores.
Mas parece-me que a desordem psíquica mais comum entre os romancistas é a mitomania. Alguns escritores não parecem, de todo, distin­guir as diferenças existentes entre as mentiras dos romances e as outras mentiras que contam na sua vida real. Estes autores costumam embelezar as suas próprias biografias com feitos portentosos, todos falsos, transfor­mando-se a si próprios nas personagens mais elaboradas saídas da sua fantasia. Como aconteceu com André Malraux, conforme nos conta Olivier Todd. Malraux inventou a sua própria vida; por exemplo, falseou o seu curriculum escolar e disse que sabia grego e sânscrito e que tinha feito estudos orientais, tudo isso produto da sua imaginação. Além disso, fabricou para si próprio uma reputação de magnífico combatente da Resistência francesa, quando na realidade se juntou a ela quase no fim da guerra. Malraux embelezava tudo, a tudo acrescentava brilho e épica. Hemingway, que era um mitómano fanfarrão e desagradável, fazia o mes­mo; garantia que tinha combatido na Primeira Guerra Mundial com as prestigiadas tropas de choque italianas, mas a verdade é que o feriram depois de algumas semanas na frente e sempre como condutor de ambulâncias  e mentiu como um canalha negando os conselhos, a ajuda e a enorme influência que o seu amigo Fitzgerald tivera nos seus primeiros livros. Outro exemplo é Emilio Salgari; escreveu dezenas de romances cheios de vibrantes aventuras exóticas, de mares bravios e navegações épicas, mas foi um pobre homem que quis ser marinheiro e não conseguiu porque o suspenderam na academia; que muito poucas vezes em toda a sua vida subiu a um barco e que quase nunca saiu de Itália. Teve uma vida tristíssima: as dívidas consumiam-no, a mulher enlouqueceu e ele era um depressivo. Acabou por suicidar-se, mas o mais terrível foi a sua mitomania o ter levado a imitar os heróis orientais que tanto admi­rava: abriu a barriga de cima a baixo com um miserável estilete e depois rasgou a garganta, numa encenação atroz da morte por hara-kiri dos samurais.
Contudo, continuo a pensar que escrever nos salva a vida. Quando tudo o resto falha, quando a realidade apodrece, quando a nossa existên­cia naufraga, podemos sempre recorrer ao mundo narrativo. Agora que penso nisso, talvez não seja casual o facto de as minhas crises de angústia terem desaparecido pouco depois de começar a publicar os meus roman­ces, completando assim um circuito de comunicação com o mundo; andava a publicar na imprensa desde os dezoito anos, mas o jornalismo carece dessa capacidade estruturadora. «Se não escrevesses, enlouquecias», disse Naipul a Paul Theroux no início da sua relação de amizade. Julgo que a maior parte dos romancistas se apercebem de que o seu equilíbrio depende, de alguma forma, da sua obra; que esses livros, se calhar medíocres ou péssimos, como os de Erich Segai, fazem parte da sua substância mais constante e mais sólida. A escrita é um esqueleto exógeno que nos permite continuar de pé ortopedicamente quando, sem isso, seriamos uma gelatina derrotada, uma massa mole esmagada no chão (claro que o meu amigo Alejandro Gándara deu um dia uma volta inquietante a este argumento quando respondeu: «Não, a literatura pode ser uma desculpa para se continuar a ser uma gelatina sem fazer nada para o remediar.»).
É curioso que a escrita possa funcionar como um dique dos desvios psíquicos, porque, por outro lado, nos põe em contacto com essa reali­dade imensa e selvagem que fica para além da sensatez. O escritor, tal como qualquer outro artista, tenta dar uma vista de olhos para fora das fronteiras dos seus conhecimentos, da sua cultura, das convenções so­ciais; tenta explorar aquilo que é disforme e ilimitado e, esse território desconhecido assemelha-se muito à loucura. Em criança, estamos todos loucos; isto é, estamos todos possuídos por uma imaginação indomesticada e vivemos numa zona crepuscular da realidade na qual tudo é possível.  Educar uma criança implica limitar o seu campo visual, diminuir o seu mundo e dar-lhe uma forma determinada, para que se adapte às nor­mas específicas de cada cultura. Já se sabe que a realidade não é uma coisa objectiva; na Idade Média, a realidade convencional incluía a exis­tência de anjos e de demônios e, por conseguinte, os cidadãos viam anjos e demônios; mas se hoje o nosso vizinho nos dissesse que acabava de se encontrar nas escadas com o Diabo, acharíamos que era doido var­rido. A realidade não é mais do que uma tradução redutora da imensidão do mundo e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem.
De forma que crescer e adquirir a sensatez do cidadão adulto im­plica, de alguma forma, deixar de saber coisas e perder esse olhar multíplice, caleidoscópico e livre sobre a vida monumental, sobre essa vida total que é demasiado grande para poder ser governada, tal como a baleia é demasiado grande para poder ser vista na totalidade. Já o disse James M. Barrie, autor de PeterPan. «Não sou suficientemente jovem para saber tudo.» Ora bem, os escritores, os artistas e, em geral, os criadores de todo o tipo (e há muitas formas de criar, desde as muito modestas às muito importantes) mantêm algum contacto com o vasto mundo de extra-muros; uns limitam-se a debruçar-se no parapeito e a dar uma rápida vista de olhos, outros efectuam incursões comedidas ao exterior e outros ainda empreendem longas e arriscadas viagens de exploração das quais talvez nunca regressem.

Do livro A Louca da Casa, Edições Asa, Alfragide, Portugal, 2008, pp. 117-122.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Antonio Barreto

MUGIDO
Não será preciso a fala a noite
para plantar no teu sangue esta cidade

Nem mistérios de portas e nus fantasmas
para timbrar tua pele com meus dedos

Onde se encontram os vértices da amargura
aí sim, será preciso o meu mugido

Quando cortarem as unhas do teu pé
e esfolarem da memória meus sentidos.

Publicado no "Minas Gerais" (Suplemento Literário), n. 575, 8 de outubro de 1977.
Fonte: Acervo digital da Faculdade de Letras da UFMG


domingo, 4 de novembro de 2012

Miodrag Pávlovitch

PATMOS
I
Do limão amarelo surgirá enxofre.
Colunas partidas erguerão seus membros.
Mulheres grosseiras sobre as colunas,
por fim atraindo a atenção do mundo inteiro.
Cães pastores arrancarão as máscaras
exibindo longos dentes e a coroa imperial.
Pássaros incandescidos voarão dos pinheiros
e gigantes pisotearão pobres oceanos.
Virgens descerão com a cabeça da lua
portando mitras envenenadas nas mãos
e com ferventes pinças atacarão nossos olhos.
E plantas desatarão os seus dragões.
É o que está escrito em teu livro.

Compasso nas mãos. Cabelos grisalhos.
Vês no outro planeta como
as gazelas deitam os chifres no universo;
nada acontecerá aos animais,
a epidemia toda é contra nós.
Diz isto também: o fim não é o fim do fim,
por fim abrem-se os portões da cidade
em cuja santidade não há mais templos.


Silêncio.
Que se vejam melhor ainda os tempos de outrora.

Deuses te observam na ilha que habitas
aguardam teus sinais
artistas recordam tuas lágrimas.

Aquele que te exilou aparece de vez em quando
toga esfarrapada sobre a caverna,
acena para que continues a desaparecer,
e todas as semanas das nuvens mão
aperta as tuas mãos,
Ninguém enxerga o vulto dessa visita.
Que todos escrevam segundo a tua escrita.

Foste jovem esguio, hera alborescente sobre os flancos e
agora tens dorso largo como as tábuas da lei
e o peito sonoro como uma ode da Pítia
teus ombros são penhascos arrancados sobre Delfos.

Miodrag Pávlovitch, Poetas do Mundo, Bosque da Maldição, Trad. Aleksandar Jovanovic, Brasília: Editora UNB, 2003, p. 79-80. 


sábado, 3 de novembro de 2012

Laís Correa de Araújo


PROFISSÃO DE ESPOSA
Cala-te, burguesa,
e serve a minha mesa.

Cala-te, madama,
e serve-me na cama.

Cala-te, obesa,
e deixa a luz acesa.

Cala-te, obtusa,
e chama a minha musa.

In INVENTÁRIO 1951/2002, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 130

VERSÍCULO 100
em verdade, em verdade vos digo:
nem todo aquele que sobe ao Templo
e bate no peito, dizendo
Poesia, Poesia,
entrará no Reino da
Mídia

In INVENTÁRIO 1951/2002, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 141


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Carminha Gouthier

FERIDOS, SILENCIARAM
Era tempo de colheita.

Auroras inesperadas,
a Letra das Escrituras
ungindo as horas para
a Eternidade.

E
eu segredava:

podes levar o que quiseres,
deixando-me
as dimensões da Cruz,
para conferir o que restar.

Então vieste,
sem aviso.

Cega de espanto,
quis regatear.

Cega diante da Tua Vontade,
espada de gume ardente,
fogo a lavrar
nos ermos da minha fé,
nos ermos da minha dor.

Cega, feri os pulsos no Teu Sigilo.

Feridos, silenciaram.

Era tempo de dar.

In Mystica poesia, poemas reunidos, ed. José Hipólito de Faria, Belo Horizonte, 2003

JERCI MACCARI



Henrique Rodrigues

MENOS QUE A CHUVA
Torrencialmente, um deserto
Desaba ao som de trovões.
Não molha tudo o que toca
Mas seca tudo o que pensa.
A areia, essa antimatéria
Untada em forma de vidro,
Simula, toda translúcida
- um vidro, feito olhos falsos?
Lá fora a calha responde
Apenas deixa passar.
O jarro pensa que colhe
Aquilo que jorra, e planta.

Saliva engolida a seco
Vertendo aridez nos poros.
Saio nas poças da chuva
Banhadas de uma poeira,
Lembrando, como quem salva,
O gosto da sua boca.

[A Musa Diluída, São Paulo: Record, 2006, p. 71]

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Emily Dickinson

Morri pela beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –

“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –

E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –

Tradução de Augusto de Campos



Sobre Emily Dickinson

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...