domingo, 28 de outubro de 2012

Clarice Lispector

ÂNGELA.- Continuei a andar pela cidade à toa. Na praça quem dá milho aos pombos são as prostitutas e os vagabundos — filhos de Deus mais do que eu. Eu dou milho para você, meu amor. Eu, prostituta 
e vagabunda. Mas com honra, minha gente, com minha homenagem aos pombos. Que vontade de fazer uma coisa errada. O erro é apaixonante. Vou pecar. Vou confessar uma coisa; às vezes, só por brincadeira, minto. Não sou nada do que vocês pensam. Mas respeito a veracidade: sou pura de pecados.
Música de órgão é demoníaca. Quero minha vida acompanhada, como com irmãs gêmeas, de música de órgão. Só que dá medo. Música funeral? Não sei bem, estou um pouco fora de órbita.
Hoje matei um mosquito. Com a mais bruta das delicadezas. Por quê? Por que matar o que vive? Sinto-me uma assassina e uma culpada. E nunca mais vou esquecer esse mosquito. Cujo destino eu tracei. A grande matadora. Eu, como um guindaste, a lidar com um delicadíssimo átomo. Me perdoe, mosquitinho, me perdoe, não faço mais isso. Acho que devemos fazer coisa proibida — senão sufocamos. Mas sem sentimento de culpa e sim como aviso de que somos livres.
Eu sou o meu próprio espelho. E vivo de achados e perdidos. É o que me salva. Estou metida numa guerra invisível entre perigos. Quem vence? Eu sempre perco.
AUTOR.- Ângela é muito provisória.
ÂNGELA.- Eu não chego a me compreender não. É fumaça nos meus olhos, é telefone ocupado, é unha quebrada no meio, risco de giz no quadro negro, é nariz entupido, é fruta de repente podre, é cisco no olho, é pontapé no traseiro, é pisadela no calo do pé, é alfinete furando o dedo delicado, é injeção de Novocaína, é cusparada no meu rosto. Sou uma atriz perfeita.
AUTOR.- Gazela doida que é.

In Um Sopro de Vida (Pulsações), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4a. ed, 1978, pp. 62-63

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