quinta-feira, 26 de maio de 2016

Miguel Manso

NA MORTE DA AVÓ
não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e nocturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquilhagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimónia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota

[in Santo Subito, edição do autor, 2010]

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Orides Fontela

HERANÇA
Da avó materna:
uma toalha (de batismo).
Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.
Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

KANT (RELIDO)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.

O CORAÇÃO (PASCAL)
As ignotas
(des)razões
do
espanto.


DO ECLESIASTES
Há um tempo para
desarmar os presságios

há um tempo para
desamar os frutos

há um tempo para
desviver
o tempo.

[Poesia Reunida [1969-1996], São Paulo: Cosac Naify, 2006]

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Anna Akhmátova

O CANTO DO ÚLTIMO ENCONTRO

Sentia-me sem forças, gelada,
mas os meus passos eram leves.
Na mão direita tinha a luva
da mão esquerda, ao partir.

Eram realmente tantos degraus?
Eu sabia que eram só três!
O Outono abraçava os plátanos
e murmurava: «Morre comigo!»

É o meu destino
que me enganasse e me traísse.
Eu respondi: «Oh, meu amor!
Eu também... Contigo morrerei...»

Este é o canto do último encontro.
Olhei para a casa escura,
Só no meu quarto, amarelo e indiferente,
ardia o fogo das velas.

[In Poetas Russos, Relógio D´Água, 1995, p.169]


Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...