quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sebastião Alba

A PALHOTA
Espanta não ver nada
que se coma e caçarolas
As aranhas debandaram
não há moscas
até o humor secou
nas espinhas largadas
Vive-se como?
Donde a modeladora energia
que põe a carne?
Ladino um rato
como na infância o quereríamos
rói os bambus a viga
as horas urdem
e um opaco cisco indizível
aduz as proporções laqueia
a quietação à roda.

///

Ninguém meu amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

///

ÚLTIMO POEMA
(ao Jorge Viegas)
Nestes lugares desguarnecidos
e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?

De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos)?

É ou não o último voo
bíblico da pomba?

Que sem horizonte a esperamos
em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.

///

ÍCARO
Da Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.

///

Não sou anterior à escolha

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.

///

NO MEU PAÍS
No meu país
dardejado do sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
o equilíbrio jacente
faz florir as acácias;
a terra incha;
na derme da possível
geografia,
um frémito cinde
as estações do ano.

///

A UM FILHO MORTO
Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desenlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.

///

COMO OS OUTROS
Como os outros discípulo da noite
frente ao seu quadro negro que é
exterior à música dispo o reflexo
sou um e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.

///

COMO SE O MAR
Quero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos... etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.

///

O LIMITE DIÁFANO
Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

///

HÁ POETAS COM MUSAS
Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

///

GOSTO DOS AMIGOS
Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

///

SEM TÍTULO
Para isto de dar
um bambo passo entre as estrelas
não se vai com a grande ocasião reclinada
na cabeça a ouvir Puccini

Breve empanadas as estrelas
não mais se acenderão e apagarão
O rumo estará raso
O silêncio a nada obrigará

De pouco serve a ida ao lugar de ausência

que o teu sono já não é extensível
Aboliu-se uma posição relativa na noite
Não circulando em ti com a sua mistura
o ar atravessará o esqueleto

E tudo será sem data e sem prenúncio

E não acrescentarei ao poema ainda um verso relvado Que buxo!
Ele não seria a medida ou a balança Seu inconcreto molde
restaria quebrado entre outros cacos

(Se bem que da infância suba até mim o coro admonitório dos anjos.)

///

AS MÃOS
Componho com as linhas dos meus dedos outros puros
cujas pontas façam girar nenhum raio sucessivo
de sol Dedos sem o cadastro de enlaces doendo
e se declamo ficções que eles escorem
Sem par noutras mãos Nem fundos na algibeira
mexidamente obscenos e a salvo da garra dos gatilhos
Dedos com um horizonte de pálpebra baixando
que assim não acordem as formas tacteadas
donde um sono mane estrie os espaços vedados
Dedos de que mesmo a chuva escorra sem uma lágrima
Ou os que já compus e assinam adiam o poema.

///

EPÍLOGO
Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.

///
SOBRE SEBASTIÃO ALBA

Copiado da Revista Modo de Usar

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Rainer Maria Rilke

Se eu me tivesse criado em algum lugar
onde os dias são mais leves e as horas mais delicadas,
eu te teria conseguido uma grande festança
e minhas mãos não te pegariam assim,
como às vezes te pegam,
tensas e assustadas.

Lá eu teria ousado te desperdiçar,
presença sem limites.
Como uma bola
eu te teria jogado no meio de toda a estonteante alegria
e tua queda
com mãos erguidas saltasse a amparar,
ó tu, coisa das coisas.

Como uma lâmina eu te teria
deixado reluzir.
Com o dourado anel
de teu fogo eu te deixaria envolver
e seria mister eu segurar-te
acima das mais alvejadas mãos.

Ter-te-ia eu pintado: não uma parede
e sim no céu, de ponta a ponta,
e te daria a forma de um gigante
e te faria assim: montanha, incêndio,
simum crescendo das areias do deserto
- ou, é também possível,
um dia eu te acharia...

Longe estão meus amigos,
mal lhes ouço ecoarem as risadas;
e tu estás caído de teu ninho
qual tenro pássaro de patas amarelas
e olhos grandes, e me fazes sentir mal.
(Minha mão, para ti, é larga demais.)
Com o dedo apanho da fonte uma gota
e vejo se não a queres com sede
e sinto que teu coração e o meu
palpitam assustados.

 [In Livro de Horas, Tradução de Geir Campos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1994]

Jake Wood-Evans



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Paul Celan

FUGA DA MORTE
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita

[In  "Quatro mil anos de poesia", J. Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, São Paulo: Perspectiva, 1969].


sexta-feira, 17 de julho de 2015

Adam Púsloitch

SÓ A MORTE ESTÁ EM TODA A PARTE, COMO UMA ESPÉCIE DE AMOR
Desperto com os olhos.
Desperto com o grito de minha mãe.
Desperto com os dias e com as noites.
Despertam-me no norte, acordo no sul,
Desperto ao esmagar o meu sonho com as mãos.
Nas mãos do pai,  sangrento
Desperto com as profundezas, com a treva, com a luz.
Um vidro no monte de lixo reluz.
E eu desperto com isso.
No escuro seio do bosque tomba um tronco
e eu desperto de imediato.
Desperto com milhares de anos brilhantes
E desperto de uma só vez.
Desperto com as mãos cruzadas.
Desperto com os sonhos alheios.
Desperto em segredo diante dos deuses.
Desperto durante os gritos da aurora e durante os ruídos do poente.
Desperto com o Tigre e com o Eufrates.
Desperto com oceano.
E também desperto quando já estou desperto.
Todo o cosmo me desperta.
Só há futuro em estar desperto.
E somente a morte está em toda a parte, como um ramo de amor. 


[In Poesia Iugoslava contemporânea, prefácio, tradução e notas de Aleksandar Jovanovic, São Paulo: Meca, 1987, p. 237].

SOBRE ADAM PÚSLOITCH

 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Adélia Prado

CONSTELAÇÃO
Olhava da vidraça
derramar-se a Via Láctea
sobre a massa das árvores.
Por causa do vidro, da transparência do ar,
ou porque me nasciam lágrimas,
tinha a impressão de que algumas estrelas
mergulhavam no rio,
outras paravam nos ramos.
Passageiros dormiam,
eu clamava por Deus
como o cachorro que sem ameaça aparente
latia desesperado na noite maravilhosa:
Ó Cordeiro de Deus, ó Cruzeiro do Sul,
ó Cordeiro, ó Cruzeiro!
Como o cão, minha língua ladrava
à aterradora beleza.
[In A DURAÇÃO DO DIA, São Paulo: Record, 2010, p. 87].



quarta-feira, 15 de julho de 2015

Armando Freitas Filho


42
Destrava o que o ar segura
e o chão clama.
Instante imprevisto do tempo
não sujeito à cronologia.
Transpira, transparece
se entretém — vide verso livre e único
que, do outro lado, ao revés, emite sua aura
de animal arisco à mão caçadora
e ilumina algumas linhas
dando vida, fibra, força
à trama do aramado inteiro.
11 III 2003

43
Seu gosto se aproxima da palavra almíscar.
Da palavra, não do odor da substância
que procuro no dicionário, pois nunca a testei.
No entanto, em você mastigo almíscar.
Mistura de dor e flor, rima óbvia, dueto vocabular
tantas vezes tentado, mas aqui o que molha minha boca
sabe a surpresa
13 IV 2003 

44
Parar de escrever pode ser morrer.
Mas se não for? Dias sem ruído.
O kastelo interior em ruínas acabadas.
A "tresnoitada luz", de Borges
batendo em cima do "sol aparafusado"
de Van Gogh, no texto de Artaud.
Não poder nem sonhar mais por escrito
debaixo da lua implacável, de Goeldi.
2 V 2003

45
A linha preta do pensamento
— trêmula, feita à mão —
pauta, de cima a baixo
o amarfanhado espaço
do amanhecer.

Não se escreve nada no campo
deste dia longo, parado
de raro mar, árvore estrita
de paisagem repetente, de palavras
despida.

Não se escreve nada na máquina
deste dia estatístico, indiferenciado
que se produz em série
embora o gráfico se sobressalte, aqui e ali.
2 VI 2003

(In Raro Mar, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 70-71)


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ruy Cinatti

POEMA DE AMOR
Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar,
tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,
nós olhando triste uma saudade imensa
num corpo de mulher metamorfoseada.

Sou demasiado são para me esquecer
do tempo apaixonado que vivi nos teus braços
e bebo no teu um coração meu
adormecido no mar do meu cansaço
ou no rio das minhas secas lágrimas.

Tardará muito, se é que as horas contam,
ver-te, de novo, perto de mim, longe,
mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto,
um dia a menos, o da tua chegada.
E assim me fico, rente ao horizonte,
abrigado da chuva numa cabina telefónica,
e ligo para ti — que número? — ninguém responde
do oceano que avança e retrai colinas,
o vulto de um navio, tu na amurada
acenando um lenço, ó minha pomba branca!...

Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva
— as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se... —
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, a minha boca neles
carregada de ilhas, de nocturnos perfumes
que ateiam lumes, ó minha idolatrada,
na minh'alma inquieta um outro bater d'asas
ou num jardim um leito de flores!...

Junho 77

[In 56 Poemas, Lisboa: Relógio D´Água, 1992, p. 27].

O beijo -  Gustav klimt

domingo, 12 de julho de 2015

Marize Castro

COM VERTIGEM E PERÍCIA
Sob as torres de Gaudí,
acredito no amor como acredito e
— com vertigem e perícia.

Caminho pelos subterrâneos e revejo lendas
— fábulas que negros olhos me mostraram.

A beleza permanece com as faces lanceadas.
Como lhe falar da estupidez humana?

Tenho comigo o sudário marinho.
E com ele que sou puta e sagrada.
Celebro nesta noite
uma vida de pontiagudas adagas.

Porque estou só nestas ramblas
consigo contemplar certos mares
e certas sedes escandalosas.

EM SEGREDO
Durante visita a uma casa de Virginia Woolf

Nesta casa renasci.
Tempestade tudo que senti.
Celeste tudo que ficou.
Sob arcos de folhas
permaneço ilha
rasgando dias
guardando lendas,
urnas, trovões.
Esperando teu abraço,
teu chamado.
Ah, senhora loba,
que tudo sabe de mim,
cuida-me em segredo
neste paraíso carmim.

[In ESPERADO OURO, 2005]

Sagrada Família, Barcelona, by Paul Weerasekera




sábado, 11 de julho de 2015

Cristina Campo

Que longa aprendizagem para desnudar até ao fulcro, véu após véu, uma pele a seguir à outra, uma relação. Como se acredita por tanto tempo no tacto, na discrição, na reserva, véus delicados — e é justo que assim seja, enquanto não forem percebidos exactamente como véus: suaves insídias, perigos impalpáveis para a pupila límpida do amor.

Job, o melhor amigo de Deus, não teve nenhum respeito por ele, nem reserva nem discrição. Gritava-lhe tudo de si mesmo e não aceitava resposta senão dele: Voca me et ego respondebo tibi, aut certe loquar et tu responde mihi.

Oxalá estivesse cada amante absorvido apenas pelo seu amor, docemente descuidado dos sentimentos do outro e ao mesmo tempo, e precisamente por isso, esquecido de si próprio, imerso como um peixe jubiloso na realidade do outro. Nenhum amor teria alguma vez fim. «Que eu jamais queira pedir-te amor» deveria ser o voto recíproco dos amantes, a fórmula sacramental das núpcias.

É um equilíbrio impossível, mas de que mais há-de o amor desejar viver? «Enquanto não estiverdes em condições de ouvir o aplauso de uma só mão...».

Cada amor é um caminho sobre as águas de Genesaré: uma dúvida, um temor, um olhar para baixo e afunda-se. Os olhos deveriam permanecer sempre altos, fixos no deus tranquilo que
nos estende a mão.

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A mediocridade, o medo, a sujeição ao mundo. Tudo isto me parece hoje um espelho duplo que o príncipe do mundo faz deslizar como um diafragma por entre as raízes e as copas da alma: para que a estas nunca mais seja concedido reflectirem-se naquelas nem a ambas nutrirem-se umas das outras, felizmente, como o céu e a terra.

Este espelho não só tenta separar as duas partes da alma como também isolá-las a ambas em obstinada contemplação de si próprio: as raízes das raízes, as copas das copas. Nascem assim as linguagens em secções estanques; de um lado, «a vida é outra coisa, conservar um sentido saudável das proporções, não façamos literatura», e do outro: «a sublime missão, o sagrado nome», etc. Fica assim instaurada a retórica das raízes e das copas e a petrificação, ao mesmo tempo, tanto da ideia como da vida.

Talvez a vontade nos tenha sido dada só para destruir aquele espelho (a que com grande frequência as pessoas chamam precisamente vontade). O deus tira o juízo a quem quer perder, dizem. Mas com que sagacidade o tira a quem quer salvar! De outro modo, como poderia induzir um homem através da noite escura, das florestas de ursos e de serpentes, dos fantasmas nocturnos e da imagem dos seus próprios pecados — toda a interminável procissão de horrores necessária ao encontro?

É sempre um acesso de loucura que abre caminho ao labirinto das aparências enganosas, onde os diamantes parecem cascas de caracol, as pedrinhas da estrada pérolas e o inferno escancarado a cada passo as graciosas pradarias do Eliseu.

A juventude é o primeiro, e o mais fatal, desses labirintos. Até os sonhos se lhe apresentam invertidos, lisonjeando-a de modo a fazê-la perder-se com divinas palavras: mensagens escritas ao contrário numa casa ainda privada de espelhos.

É o tempo em que o deus nos tapa os olhos com a sua mão — ou iremos fazê-lo pouco depois nós mesmos devido ao terror.

[In Os Imperdoáveis, tradução de José Colaço Barreiros, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 162-164].



sexta-feira, 10 de julho de 2015

Rainer Maria Rilke

SALTIMBANCOS

1
Nosso caminho não é mais largo que o teu, freqüentemente calmos de muito alto, também nos arrebentamos, mas a falta de atenção não nos obriga retornar à corda. A ti, qualquer errinho faria morrer. Divertimos com nossos mil erros a morte, espectadora que ocupa a melhor cadeira no circo de nossas desgraças.

2
Façamos como eles: jamais cair sem morrer. Que multidão ao redor de nossa queda! Mas uma criança, meio de lado, observa a corda vazia com, ao fundo, a noite intacta.

3
A corda estava tão alta que aquilo se passava acima dos refletores. Mas logo estava novamente entre nós, em seu traje tão rosa. No alto, havia outro rosa que explicava à noite imensa o absurdo de seu puro perigo movente.

4
Que perfeição. Se fosse na alma, que santos fariam! - É na alma, mas eles a tocam apenas por acaso, nos raros momentos de um imperceptível deslize.

Muzot, 7-11 de agosto de 1924

[In As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, organização e tradução Bruno Silva D´Abruzzo e Guilherme Gontijo Flores, Belo Horizonte: Crisálida, 2009, p. 63]

By Joachim Van Den Heuvel


quinta-feira, 9 de julho de 2015

Boris Pasternak

A MORTE DO POETA*
Ninguém acreditava. Pensavam: «Que delírio!»
Mas sabiam por dois,
por três, por todos. Alinhavam-se
sobre o tempo que parara
as casas de funcionários e comerciantes,
os pátios, as árvores, e lá dentro
gralhas, ébrias de sol,
excitadas com as esposas
que gritam, para que daí em diante essas loucas não
se ponham a pecar, que diabo!
Tinha no rosto rugas húmidas
como vincos rasgados nas feições.

Era um dia, um dia inofensivo, mais
do que dezenas de dias vividos antes.
Amontoava-se o povo em parada à entrada,
como se um tiro os tivesse formado.
Como, esmagados, são esborrachados pelas águas
sargos e lúcios na explosão do petardo,
como o suspiro de um tiro a sério.

Tu dormias, deitado num leito de trapos,
tu dormias e, os calafrios acalmados,
— Belo, aos vinte e dois anos **.
Como anunciava o teu tetráptico.
Tu dormias, a face contra a almofada,
dormias — com todas as pernas, com toda a força,
penetrando de novo e com novo ímpeto
no reino dos mitos recentes.

Viram-te nele entrar ostensivamente
e chegares de um só salto;
o teu tiro foi semelhante ao Etna
nos contrafortes de covardes e poltrões.

______________________
* Escrito à morte de Maiakovski.
** Alusão ao poema de Maiakovski: "A nuvem de calças".

[In Poetas Russos, Tradução e prólogo por Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D´Água, 1995, pp. 119-121].




quarta-feira, 8 de julho de 2015

Henriqueta Lisboa

ARIEL
Dança Ariel sob raios de sol
entre o vergel, vergando
as finas hastes, as corolas
repletas de orvalho. A gota
de orvalho, que clara
medalha sobre o peito de Ariel!

Dança Ariel renascido
de frias ruínas, como o arco-íris
do fundo dos vales. E o vento
com suas flautas e bronzes, que impulso
para os aéreos movimentos de Ariel!

Dança Ariel sobre as ondas. Seus pés
como pérolas salvas pendem
de dois frisos. E o mar,
que voluptuoso ninho de conchas
para o jogo de Ariel!

Dança Ariel sobre o altar das noites
despertando as estrelas. E elas
próprias, suspensas
de secretos transportes, que ardentes
comparsas para o sacrifício de Ariel!

Dança Ariel para o tempo, à margem
da eternidade. E que precária
cousa, a eternidade,
para a alegria pura de Ariel!

[In Nova Lírica, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971, p. 107]


Georges Henri Rouault -  1939






segunda-feira, 6 de julho de 2015

Friedrich Hölderlin

NOVE POEMAS DE HOELDERLIN

POR DE SOL
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De todas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Ele no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas
Que o honram ainda.

O APLAUSO DOS HOMENS

Não trago o coração mais puro e belo e vivo
Desde que amo? Por que me afeiçoáveis mais
Quando era altivo e rude,
Palavroso e vazio?

Ah! só agrada à turba o tumulto das feiras;
Dobra-se humilde o servo ao áspero e violento.

Só crêem no divino
Os que o trazem em si.

AS PARCAS
Mais um verão, mais um outono, ó Parcas,
Para amadurecimento do meu canto
Peço me concedais. Então saciado
Do doce jogo, o coração me morra.

Não sossegará no Orco a alma que em vida
Não teve a sua parte de divino.
Mas se em meu coração acontecesse
O sagrado, o que importa, o poema, um dia:

Teu silêncio entrarei, mundo das sombras,
Contente, ainda que as notas do meu canto
Não me acompanhem, que uma vez ao menos
Como os deuses vivi, nem mais desejo.

FANTASIA DO CREPÚSCULO
Descansa o lavrador à sua porta
E vê o fumo do lar subir, contente.
Hospitaleiramente ao caminhante
Acolhem os sinos da aldeia.

Voltam os marinheiros para o porto.
Em longínquas cidades amortece
O ruído dos mercados; na latada
Brilha a mesa para os amigos.

Ai de mim! de trabalho e recompensa
Vivem os homens, alternando alegres

Lazer e esforço: por que só em meu peito
Então nunca dorme este espinho?

No céu da tarde cheira a primavera;
Rosas florescem; sossegado fulge
O mundo das estrelas. Oh! levai-me,
Purpúreas nuvens, e lá em cima

Em luz e ar se me esvaia amor e mágoa!
Mas, do insensato voto afugentado,
Vai-se o encanto; escurece, e, solitário
Como sempre, fico ao relento.

Vem, suave sono! Por demais anseia
O coração; um dia enfim te apagas,
ó mocidade inquieta e sonhadora!

E chega serena a velhice.

OUTRORA E HOJE
Meu dia outrora principiava alegre;
No entanto à noite eu chorava. Hoje, mais velho,
Nascem-me em dúvida os dias, mas
Findam sagrada, serenamente.

CANTO DO DESTINO DE HIPERION
No mole chão andais
Do éter, gênios eleitós!
Ares divinos
Roçam-vos leve
Como dedos de artista
As cordas sagradas.

Como adormecidas
Criancinhas, eles
Respiram. Floresce-lhes
Resguardado o espírito
Em casto botão;
E os olhos felizes
Contemplam em paz
A luz que não morre.

Mas, ai! nosso destino
É não descansar.
Míseros os homens
Lá se vão levados
Ao longo dos anos
De hora em hora como
A água, de um penhasco
A outro impelida,
Lá somem levados
Ao desconhecido.

METADE DA VIDA

Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.

Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!

Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as
Flores? e aonde
0 calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; à fria nortada
Rangem os cata-ventos.

MADURAS ESTÃO
Maduras estão, cm fogo imergidas, cozidas
E na terra provadas as frutas. É for^a
Que tudo penetrem, à guisa de cobras,
Profeticamente e sonhando nas
Colinas do céu. Muita coisa
Devemos guardar como um fardo
De lenha nos ombros. Entanto
São maus os caminhos. Indóceis

Cavalos, trabalham
Elementos e as velhas
Leis da terra. Ah, e sempre ao
Sem peias vai uma saudade. Contudo
Muito há que guardar. É mister a constância.
Mas nós não queremos ver nem
Para diante nem para trás! só queremos
É que nos embalem da mesma maneira
Que o lago num bote.

LEMBRANÇA

Sopra o nordeste,
O mais grato dos ventos:
Crrato a mim porque é cálido, e aos marujos
Porque promete fácil travessia.
Eia, saúda agora

O formoso Garona
E os jardins de Bordéus!
Lá coleia na íngreme ribeira
A vereda, e no rio
Se despenha o regato; mas acima
Olha o par generoso
De álamos e carvalhos.

Ainda me lembro bem e como
As largas copas curva
O olmedo sobre o moinho.
No pátio há uma figueira.
E nos dias feriados,
Pisando o chão sedoso
Passeiam mulheres morenas
No mês de março
Quando o dia é igual à noite
E nos lentos caminhos
De áureos sonhos pejados
Sopram brisas embaladoras.

Mas estenda-me alguém,
Da escura luz repleto
O aromado copo
Para que eu possa descansar; pois doce
Seria o sono à sombra.
Também não fora bem
Privar-se de mortais
Pensamentos, que bom
É conversar, dizer
O que se sente, ouvir falar de amores,
De coisas passadas.

Porém que é dos amigos? Belarmino
E o companheiro? Muitos
Têm medo de ir à fonte.
É que a riqueza principia
No mar. Ora, eles
Reúnem como pintores
As belezas da terra e não desprezam
A alada guerra não,
Nem desdenham morar anos a fio
Sob o mastro sem folhas, onde à noite
Não há as luminárias da cidade,
Nem dança e música nativa.

Mas hoje aos índios
Foram-se os homens,
Ali, na extremidade
Das montanhas cobertas de vinhas
Donde baixa o Dordonha,
Acaba o rio no Garona
Largo como o Oceano. Todavia
O mar toma e devolve a lembrança.
O amor também demora o olhar debalde.
O que perdura porém, fundam-no os poetas.

Sobre Friedrich Hölderlin

[In Manuel Bandeira, Poemas Traduzidos, 4a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, pp. 76-82]

Ulisse Caputo

domingo, 5 de julho de 2015

Jiří Orten

ETERNAMENTE

A noite cai de joelhos,
ajoelha-se e não crê.

Nada mais na vida me fascina,
calo-me rápido,

e no entanto as mães dos mortos
estão novamente prontas.

Todos nós sobrevivemos
com grande pesar.

Errar eternamente até estar inocente.
Eternamente.

A noite cai de joelhos.
Você irá rezar esta noite, Desdêmona?

Jiří Orten (1919-1941), pseudônimo do poeta tcheco Jiri Ohrenstein. Começa a publicar seus poemas aos dezessete anos, em 1936, com o incentivo de Frantisek Halas. Com a invasão alemã na Tcheco-Eslováquia e a aplicação de severas leis anti-semitas, começa a utilizar os pseudônimos Jiri Jakub e Karel Jílak para tentar publicar seus textos. Suas obras estão contidas em três cadernos, redigidos entre 1938 e 1941. Sua contribuição foi bastante grande para a renovação da poesia tcheca.

[In CÉU VAZIO 63 poetas eslavos, organização, estudo introdutório, notas biográficas e tradução Alexsandar Jovanovic, São Paulo, Huitec, 1996, p. 96] 

François Bouchot 


sábado, 4 de julho de 2015

Lupe Cotrim

SAUDADE
a Guilherme de Almeida

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.

ANJO BARROCO
Anjo barroco é a fonte do teu rosto
e és fiel e grave como as crianças tristes.
Pela tua alma de infância ainda persiste
a pureza, na sombra de um desgosto.

Teus olhos, de um castanho manso e denso,
têm ternura de terra e de brinquedo
e teu riso é sonoro e sem segredo
e em tudo és sempre o mesmo e sempre intenso.

A vida te perturba. A tempestade
que por vezes te rasga o sentimento
vem da aurora de um mundo sem idade

onde o homem solitário, na selvagem
surpresa do primeiro sofrimento,
tinha um deus ainda intacto em sua imagem. 

ÚLTIMA PAISAGEM
Quando eu morrer,
se morrer,
quero um dia de sol,
denso, cintilante,
escorrendo-me pelo corpo
seus dedos quentes.
E quero o vento,
um largo vento dos espaços
que me respire e me arrebate
no seu fôlego,
por outros continentes.
E quero a água,
violenta, fria, palpitante,
possuindo-me a alma
a transbordar dos poros.

Se nenhum amor me resguardar
em seu abraço,
e dar-me sensação
de que possuo e pertenço,
quero pegar a vida,
palmo a palmo,
traço a traço,
num dia esfuziante de azul,
com o mar na boca e nos braços.

Quando eu morrer,
se morrer,
eu que renasço a cada momento,
criando íntimos laços
por toda natureza,
eu que perduro no eterno
da intensidade,
quero morrer assim;
os olhos na distância
do entendimento
e o corpo penetrando na beleza,
passo a passo.
Meu fim transformado em luz
dentro de mim.


[In ENCONTRO, São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 59-61]

BY ANDRÉ BOGAERT 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Rainer Maria Rilke

PRIMEIRA ELEGIA DE DUINO
Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio às ordenações
Dos anjos? E mesmo se um deles de repente
Me chamasse ao seu coração eu me apagaria face à sua
Presença mais forte. Porque o Belo nada é
Senão o começo do terrível, que estamos apenas supor-
[ tando,
E se assim admiramos é que impassível
Desdenha de nos destruir. Todo anjo é terrível.
Hei de reter-me, pois, e hei de conter em mim
O apelo de um triste soluço. Ah! a quem então
Nos é dado recorrer? Nem aos anjos, nem aos homens,
E os animais sagazes já desconfiam por instinto
Que não nos podemos sentir em intimidade
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Uma árvore qualquer a rever cada dia,
Sobre a encosta; resta-nos a estrada de ontem,
E a fidelidade infantil a algum costume
Que em nós se aprouve e assim ficou e não partiu.
Oh! e a noite, a noite, quando o vento cheio de ruído do
[ mundo
Nos consome a face para quem não seria a desejada
Um suave desencanto, que ante o coração sozinho
Se ergue penosamente. E’ ela mais amável aos amantes?
Ah! esses só fazem se enganar mutuamente com a pró-
[pria sorte,
Não o sabes ainda? Lança o vazio de teus braços
Aos espaços respiráveis; talvez que os pássaros
Sintam num voo mais íntimo o ar mais amplo.
Sim, quiseram-te as primaveras; muitas estreias
Viveram para que as descobrisses. Do passado
Cresceu a onda; ou bem ao cruzares
Uma janela aberta um violino se entregou a ti. Tudo isso
[era missão.
Mas lhe estiveste à altura? Não andaste sempre perdido
A espera, como se tudo te anunciasse
Uma visão amada? (E onde a queres abrigar,
Agora que grandes e estranhos pensamentos
Vêm e vão em ti e às vezes se deixam, à noite) .
Mas se sentes saudade, canta os amantes; bem longe
Da plena imortalidade está seu decantado sentimento.
Canta, a esses abandonados que quase invejas e que
Te parecem tão melhores que os aquietados. Recomeça
Sempre a tua inacessível louvação;
Pensa; o herói persiste, o próprio fim foi nele
Um pretexto para ser: seu derradeiro nascimento.
Mas aos amantes, retoma-os ainda a natureza
Esgotada como se as forças que os realizaram
Não se pudessem reproduzir. Já pensaste bem em Gas-
[para Stampa,
Essa amante em cujo exemplo exaltado se encontra
Toda jovem que o amado abandonou: se eu fosse como
[ela?
Essas penas mais antigas, enfim, não deveriam ser
Fecundas para nós? Não é chegado o tempo
Em que nós, amantes, nos livremos vibrando das amadas
Como vibra a flecha ao deixar a corda para ultrapassar-se
Na tensão do ímpeto. Porque não há repouso em nada.
Vozes, vozes! Ouve, meu coração, como só os santos
Ouviram: eles, que o apelo imenso
Ergueu do chão; e eles sobre-humanos
Prosseguiram ajoelhados, sem atender a nada:
Pois era como ouviam. Não que tu pudesses suportar
A voz de Deus, nem de longe. . . Mas ouve o sopro,
A incessante mensagem que nasce do silêncio.
Agora, daqueles que jovens morreram, sobe um murmúrio
[ aos teus ouvidos.
Não importa onde entrasses, nas igrejas
De Roma e de Nápoles, não te falou sereno o seu destino?
Ou uma inscrição se impunha, majestosa,
Como há pouco naquela lousa em Santa Maria Formosa.
Que me querem eles? Delicadamente
Preciso desfazer a impressão de erro que muitas vezes
Perturba um pouco o movimento puro de suas almas.
Bem certo deve ser estranho não habitar mais a terra,
Não recorrer mais a hábitos apenas adquiridos,
Não mais dar às rosas e às promessas de outras coisas
A significação de um futuro humano;
Estranho não se ser mais o que se foi no infinito cuidado
Das mãos, e abandonar até o próprio nome
Como um pobre brinquedo jogado.
Estranho não mais desejar desejos. Estranho
Ver tudo o que foi laço, no espaço flutuar
Desfeito. Coisa difícil é estar morto;
E cheia de ressurreições, pois que há sempre para nós
Um prenúncio de eternidade. Mas os vivos
Cometem, todos, o erro de tudo distinguir.
Os anjos (diz-se) muitas vezes ignoram se caminham
Entre os vivos ou os mortos. O eterno rio
Carrega sempre através os dois reinos todas as idades
E em ambos o que domina é a sua voz.
Afina! eles não precisam de nós, os cedo transportados;
Suavemente nos libertamos das coisas terrenas como
O ser se despega do seio materno. Mas nós, que preci-
[ samos
De tão grandes segredos dos quais em luto
Nascem tantas vezes vitórias tão abençoadas, podemos
[acaso viver sem eles?
E vá a lenda de que outrora, lamentando Linos
A primeira música ousou penetrar a estéril rigidez da
[ matéria inerte. . . e que então, no espaço em
[sobressalto que um adolescente quase divino
De súbito deixou para sempre, o vazio penetrou
Naquelas ondulações que são para nós arrebatamento e
[ consolo e socorro.

Tradução: Vinícius de Moraes

[In Poesia Alemã, Prefácio e Organização Geir Campos, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1960, pp. 331-337]

BY ALESSANDRA ZAMPARO- FLICKR

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Abgar Renault

DESINTEGRAÇÃO
Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer. . .
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação!

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sobre-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo. . .

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita. Tenho o coração cheio de coisas para
[dizer. . .

Eu estou vivo. Senhor! mas. em verdade, c como se estivesse
[ morto. . .
[1931] 

DIANTE DO CREPÚSCULO
Para que tantas palavras, se não existe onde derramá-las
ou fita de ouro em que enfiá-las em lúcido colar?
Para que esta contiguidade e este contacto,
se são construídos de alturas e de mares que não esquecem?
Para que o jardim de asas verdes e tantos céus,
quando a neblina corta o olhar e estanca o voo?
Por que nas mãos de escamas brotam frouxéis,
se em nenhuma pele se adoçará sua doçura amarga?
Onde a taça desmedida em que se debruçaria
tanto entornado vinho em busca de ser bebido?
E as uvas cálidas de onde ele escorreu
e em que procura regresso e reintegração?
Em que cidade de tantas ruas sem casas
procurar os sapatos já sem couro
e as pernas sem pés que desejam calçá-los para ir aonde?
Toda pergunta fica e interroga outra interrogação:
Quem se abriria em arca ou peito ou bosque
para receber o escuro viajante que está partindo sem viagem?

SOBRE ABGAR RENAULT

[In A outra face da lua, Rio de Janeiro: José Olímpio/INL, 1983, pp. 42-43]



quarta-feira, 1 de julho de 2015

Fernando Paixão

OUTUBRO DE 1999
“Se a tua morte não é notícia
nos diários de Espanha
devemos então concluir
que a presença de um poeta
corresponde tão-somente ao círculo
de uma língua local, intransferível?”

Talvez. Os jornais nascem todas as manhãs
a partir de um engano, bem sabemos.

Quando morre um poeta, verdadeiro,
leva consigo um repertório insuspeito
de dedos noturnos ainda em funcionamento.
Nessa hora os seus versos teclam
aéreo abandono
mesmo cerrados os livros.

Não foi diferente contigo.

Hoje, pelo dia inteiro, chegou às alamedas
e praças de Sevilha e Barcelona
(e mesmo nestas calles de Madri)
um vento seco e severino, João Cabral,
mensageiro da tua ausência.


VÉSPERA
Um resto de hora
varre os telhados
em despedida.

Como outros calendários
sucumbiram
em outros quartos de hotel.

Idêntica mentira: a noite
alonga o corpo da fera
no escuro das velhas ruas.

A viagem termina. O dia
fecha os olhos à própria água.
Devagar: sem protocolo.

[In Poeira, São Paulo: Ed. 34, 2001]



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...