terça-feira, 19 de abril de 2016

Cecília Meireles

O gosto da Beleza em meu lábio descansa:
breve pólen que um vento próximo procura,
bravo mar de vitória — ah, mas istmos de sal!

Eu — fantasma — que deixo os litorais humanos
sinto o mundo chorar como em língua estrangeira
eu sei de outra esperança: eu conheço outra dor.

Apenas alia noite algum radioso espelho
em sua lâmina reflete o que estou sendo.
E em meu assombro nem conheço o próprio olhar.

Alta é a alucinação da provada Beleza.
Pura e ardente, esta angústia. E perfeita, a agonia
Eu, que a contemplo, vejo um fim que não tem fim.

Dunas da noite que se amontoam.

[In Solombra, Poesia Completa. Vol. II, Nova Fronteira, 2008]



sábado, 16 de abril de 2016

Hans Magnus Enzensberger

UMA VAGA LEMBRANÇA
Nos nossos debates, companheiros,
me parece às vezes
havermos esquecido algo.
Não é o inimigo.
Não é a linha.
Não é a meta.
Não consta do Breve Curso.

Se nunca o tivéssemos sabido
não haveria luta.
Não me perguntem o que é.
Não sei como se chama.
Apenas sei que ê
o mais importante
aquilo que esquecemos.

A FACA REAL
Havia, porém, milhares num porão
ou um sozinho consigo ou dois
e lutavam entre si um contra o outro

Um era quem dizia A Mais-Valia
e não pensava em si e não queria saber
nada de nós recitava A Doutrina
O Proletariado e a Revolução
Palavras cultas na sua boca como pedras
E também levantava as pedras
e as jogava E tinha razão

Não é verdade E era o outro
que o dizia Amo apenas a ti
e não a todas Que fria está minha mão
E a dor devoradora no teu fígado
não consta nas senhas Não
morremos ao mesmo tempo Quem
terá razão quando estamos contentes? E tinha razão

Mas E assim continuava o outro Doravante
não posso por atrás o teu
pé Quem sabe tanto quanto nós
não se ajudará tão facilmente a si mesmo e Eu
não conto mais Por isso
entre no partido etc. Mesmo se
não tivermos razão E tinha razão

Desde sempre sabia que aquilo
que tu mesmo não crês
Dizia o outro Diante de nós
Como uma faca levas Porém aqui
já está cravada até o cabo
na tua carne A faca
A faca real E tinha razão

E então morreram um e outro
também Mas não ao mesmo tempo
E morreram todos E então
gritavam e lutavam uns contra os outros
e se amavam e se alegravam
e oprimiam-se uns aos outros
Milhares num porão

Ou um sozinho consigo mesmo ou dois
E se ajudavam E tinham razão
Não se podiam ajudar um ao outro

[In Eu falo dos que não falam, ed. Brasiliense, 1985, trad, Kurt Scharf e Armindo Trevisan]

SOBRE  HANS MAGNUS ENZESBERGER




terça-feira, 12 de abril de 2016

Fiama Hasse Pais Brandão

EPÍSTOLA PARA MEUS MEDOS

Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.


[Epístolas e Memorandos, Relógio d'Água, 1996]

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Al Berto

a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo


[AL BERTO, in SALSUGEM (1978/83), in O MEDO ( Assírio & Alvim, 1997)]

Pintura de Catrin Welz Stein


Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...