UMA VAGA LEMBRANÇA
Nos nossos debates, companheiros,
me parece às vezes
havermos esquecido algo.
Não é o inimigo.
Não é a linha.
Não é a meta.
Não consta do Breve Curso.
Se nunca o tivéssemos sabido
não haveria luta.
Não me perguntem o que é.
Não sei como se chama.
Apenas sei que ê
o mais importante
aquilo que esquecemos.
A FACA REAL
Havia, porém, milhares num porão
ou um sozinho consigo ou dois
e lutavam entre si um contra o outro
Um era quem dizia A Mais-Valia
e não pensava em si e não queria saber
nada de nós recitava A Doutrina
O Proletariado e a Revolução
Palavras cultas na sua boca como pedras
E também levantava as pedras
e as jogava E tinha razão
Não é verdade E era o outro
que o dizia Amo apenas a ti
e não a todas Que fria está minha mão
E a dor devoradora no teu fígado
não consta nas senhas Não
morremos ao mesmo tempo Quem
terá razão quando estamos contentes? E tinha razão
Mas E assim continuava o outro Doravante
não posso por atrás o teu
pé Quem sabe tanto quanto nós
não se ajudará tão facilmente a si mesmo e Eu
não conto mais Por isso
entre no partido etc. Mesmo se
não tivermos razão E tinha razão
Desde sempre sabia que aquilo
que tu mesmo não crês
Dizia o outro Diante de nós
Como uma faca levas Porém aqui
já está cravada até o cabo
na tua carne A faca
A faca real E tinha razão
E então morreram um e outro
também Mas não ao mesmo tempo
E morreram todos E então
gritavam e lutavam uns contra os outros
e se amavam e se alegravam
e oprimiam-se uns aos outros
Milhares num porão
Ou um sozinho consigo mesmo ou dois
E se ajudavam E tinham razão
Não se podiam ajudar um ao outro
[In Eu falo dos que não falam, ed. Brasiliense, 1985, trad, Kurt Scharf e Armindo Trevisan]
SOBRE HANS MAGNUS ENZESBERGER