quinta-feira, 31 de julho de 2014

Daniel Faria

Deve ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Deve ser o último degrau na escada de Jacob
E último sonho nele
Deve ser-lhe a última dor no quadril.
Deve ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Deve ser a véspera. Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.


[Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais, 1998]

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Murilo Mendes

FLORES DE OURO PRETO
A Cecília Meireles

Vi a cidade barroca
Sem enfeites se levantar.
Nem flores eu pude ver,
Flores da vida fecunda,
Nesta áspera Ouro Preto,
Nesta árida Ouro Preto:
Nem veras flores eu vi
Nascidas da natureza,

Da natureza lavada
Pelo frio e o céu azul.
Tristes flores de Ouro Preto.
Só vi cravos-de-defunto,
Apagadas escabiosas,
Murchas perpétuas sem cheiro,
Só vi flores desbotadas
Nascidas de sete meses,
Só vi cravos-de-defunto,
Que se atam ao crucifixo,
Que se levam ao Senhor Morte
Vi flores de pedra azul...
Eu vi nos muros de canga
A simples folhagem rasa,
A avença úmida e humilde,
Brancos botões pequeninos
A custo se entreabrindo,
Mas não vi flores fecundas,
Não vi as flores da vida
Nascidas à luz do sol.
Eu vi a cidade árida,
Estéril, sem ouro, esquálida;
Eu vi a cidade nobre
Na sua patina fosca,
Desfolhando lá das grimpas
No seu regaço de pedra
Buquês de flores extintas.

Eu vi a cidade sóbria
Medida na eternidade,
Severa se confrontando
À cinza das ampulhetas,
Sem outro ornato apurado
Além da pedra do chão.
Eu vi a cidade barroca
Vivendo da luz do céu.

[Contemplação de Ouro Preto, In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 470-471].





domingo, 27 de julho de 2014

Giorgos Seféris

Lembrança, II
Éfeso
Falava sentado sobre um mármore
que parecia resto de um antigo pórtico;
à direita, intérmino e vazio, o campo;
à esquerda, as sombras do monte que baixavam:
"O poema está em toda parte. Tua voz
por vezes se avizinha do seu flanco
como o golfinho que acompanha fugazmente
um navio dourado sob o sol
e de novo some. Está em toda parte
o poema, como as asas do ar que dentro do ar
roçam por um instante as asas da gaivota.
Igual e diverso em nossa vida, como se transforma
o rosto que no entanto permanece o mesmo
da mulher a desnudar-se. Sabe-o
quem amou; à luz dos outros
o mundo se consome; lembra-te porém
"São o mesmo o Hades e Dioniso."
Disse e foi-se embora pela estrada larga
que leva ao porto de outros tempos, ora em ruínas
além dos juncos. Dir-se-ia
ser o lusco-fusco um bicho que morre,
assim tão nu.
Lembro-me ainda:
eu viajava por promontórios jônicos, conchas vazias de teatros
onde só o lagarto rasteja sobre a pedra árida
e perguntei-lhe: "Voltará a encher-se?"
Replicou-me: "Na hora da morte pode ser."
E correu gritando até a orquestra:
"Deixem-me escutar o meu irmão!"
E era áspero o silêncio à nossa volta
sem traço algum no cristal do céu azul.

[Poemas Giorgos Seféris,  sel., trad. e notas de José Paulo Paes, São Paulo: Nova Alexandria, 1995, pp. 143-144]. 





quinta-feira, 24 de julho de 2014

Fernando Sernadas

POEDRAS
A linguagem é um cesto de
Arrecadação dos pedaços
Não um meio de organização do caos
E por isso as leis da poesia são as da física
Pega-se numa pedra e o poema nasce
Do equilíbrio entre o peso das pedras
E o jorro do sangue
E dentro do caos em permanência
Muda-se a História quando esse equilíbrio se quebra
Pega-se numa pedra
Pelo peso e rugosidade se julga
A eficácia da pedrada
E assim se multiplicam as pedras
E desvanecem as palavras

POEMA PRENSADO
Outras vezes é o apressado das asas na despega
O empenho científico em que
A caligrafia se não entenda
Uma ave caminhando na areia
Nesse espaço criativo e indiferente
Entre o tinteiro do mar
E a teimosia do vento

Fernando Sernadas, 19/1/2014

AS RUAS DE DETROIT
Ninguém passa nas ruas de Detroit
O futuro da cidade é agora
Desfeito naquilo que se alveja deste lado
Algo que rebenta como promessa cumprida
Mas tendo como fisga a matéria sem forma
E os dedos do oleiro de onde nasce o vaso

São frias as noites nas ruas de Detroit
Como casa estroncada a caminho do vento
Ou aldeia saqueada pelos próprios morantes
Numa via de um sentido onde o regresso é mentira

Algo caminha em Detroit imperceptível
Algo mina Detroit por dentro cegamente
Lombriga ondeando nas artérias da fuga
Ou bicho de fruta a salvo da fome alheia

Fernando Sernadas, 17/1/2014

POEMA ESGOTADO
A face do ser é uma página em branco
De não chegar para a vida
Plantar árvores nas margens da dor
Nenhuma fornalha redime a sombra ao fim do dia
Nenhum sorriso ilumina
O olho atento da ave antes da morte
Mesmo sabendo que esse olho
É a porta de saída de tudo

Uma face humana é o espelho do desentendimento
Uma ideia humana é o lugar da luz de todo desentendimento
Só a ave sabe o mundo inteiro por fora
Quando fazer parte de algo é a cegueira iluminada
Como quem desfaz o tecido por um fio solto
E cai o passado às mãos como um fruto podre
E se esgota a palavra de serem velozes as nuvens

Fernando Sernadas, 15/1/2014.


quarta-feira, 23 de julho de 2014

Adam Zagajewski

SENZA FLASH

Senza flash! "Sem flash!"
(exclamação frequentemente ouvida nos museus italianos)

Sem chama, sem noites insones, sem ardor,
sem lágrimas, sem grandes paixões, sem convicção.
Assim a vida segue: senza flash.

Tranquilas e calmas, dóceis e sonolentas,
as mãos estão manchadas com a tinta preta dos jornais,
os rostos engordurados de cremes, senza flash.

Turistas sorrindo com suas  camisas limpas,
Herr Lange e Miss Fee, Madame e Monsieur Rien
entram no museu:  senza flash

Estão diante do quadro de Piero della Francesca, onde
Cristo, quase insano, emerge da sepultura,
Ressuscitado,  livre: senza flash.

E quem sabe ocorra algum imprevisto:
o coração  se agita sob o liso algodão,
acaba o silêncio, o flash dispara.

SOBRE ADAM ZAGAJEWSKI






terça-feira, 22 de julho de 2014

Wislawa Szymborska

A MULHER DE LOT
(1976)
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Eloy Sánchez Rosillo

CORPO ADORMECIDO
Às vezes relembro a lassidão daqueles dias,
a graça daquele corpo adormecido,
a brancura do leito num canto do quarto,
o livro abandonado, entreaberto,
a lâmpada submissa, a janela,
o barulho distante da chuva,
os lentos rumores da noite,
e penso então que a vida foi bela
e acaricio as feridas do tempo em meu peito.

25 de agosto de 1975

CAMINHO DO SILÊNCIO
Agora cala-te.Teus lábios
jamais proferirão as palavras  que hoje
pela última vez disseste. Guarda a voz
para tua solidão. Que teu trabalho
seja o silêncio, o gozo e  a alegria de calar
o que as horas te deram, o que aprendeste
nos dias luminosos que se foram.

DEPOIS DA CHUVA
Ao entardecer, depois da chuva,
o sol acariciava as pedras da antiga cidade
de um modo especial,
com um profundo e triste e natural amor.

E ao olhar tomamos consciência
daquele minuto prodigioso,
daquela intensa e instável beleza.

05 de setembro de 1976


sábado, 19 de julho de 2014

Luiz Ruffato

Da calçada cumprimentava-nos
o Tempo e, engalanado, sentava-se
na puída poltrona da sala, honestamente
nos aguardando sob o retrato oval
de alguém que conosco se parecia, diziam.
Onde estaria agora, esse? Quanto envelhecemos
ali, à janela debruçados, nos indagando:
o que será, quando crescermos? Melhor
permanecêssemos sob a cama, escondidos.
Assim, quando o Tempo, exasperado,
se despedisse, teríamos ressonado,
e nem notaríamos os fiapos de pão
se confundindo com sua barba encanecida.

***
Enclausurado, as orelhas
afila o tigre. Lento,
o espaço entre o sofá
e a televisão percorre,
o imenso bigode desliza
por sobre o pó e as teias
de aranha. Inquieto, espia
pela janela a noite,
com cobiça. Grunhe, as patas
dianteiras ergue, a porta força.
O triste tigre trancafiado.

[In As máscaras singulares, São Paulo, Boitempo, 2002, p. 54-55]



sexta-feira, 18 de julho de 2014

Raduan Nassar

LAVOURA ARCAICA - Excerto
[..] a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso é que digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem pelo dia funesto que súbito se precipita, nem pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá blasfêmia por ocasião de outros reveses, se as crias não vingam, se a rês definha, se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se os grãos caruncham, se a lavoura pragueja, se se fazem pecas as plantações, se desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade devastadora sobre o trabalho da família; e quando acontece um dia de um sopro pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas das nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios; e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser esses, no seu fundamento, os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete”. E o pai à cabeceira fez a pausa de costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade: “Era uma vez um faminto”.

[In Lavoura Arcaica, 3a. ed. revista pelo autor, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, pp. 58-61]


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Louis Aragon

Eu sou o herege de todas as igrejas
Amo mais a ti do que a tudo que há para viver e morrer
Carrego para ti o perfume dos lugares santos e a canção do fórum
Veja os meus joelhos feridos de tanto rezar a você
Meus olhos morrem por tudo o que não é a tua flama
Eu sou surdo a toda queixa que não vem de tua boca
Eu nada sei de milhões de mortes quando é você quem chora
É a teus pés que me doem todas as pedras no meio do caminho
A teus braços rasgados por cercas de espinhos
Todos os fardos trazidos martirizam teus ombros
Toda a tristeza do mundo está em apenas uma de tuas lágrimas
Eu jamais sofri antes de você
Sofrimento é o que ela sofreu
A besta clamando uma ferida
Como você pode comparar com o mau animal
Esta janela em mil pedaços em que acontece a crucificação dos dias
Você me ensinou o alfabeto da dor
Eu sei agora ler os soluços Eles são todos feitos de teu nome
De teu nome teu nome partido teu nome de rosa desfolhada
Teu nome o jardim de toda Paixão
Teu nome que eu irei ao fogo do inferno para escrever na face do mundo
Como essas misteriosas epístolas para a escritura do Cristo
Teu nome o grito de minha carne e a dilaceração de minha alma
Teu nome pelo qual eu queimaria todos os livros
Teu nome toda ciência após o deserto humano
Teu nome que é para mim a história dos séculos
O cântico dos cânticos
O copo de água na cadeia de condenados
E todas as palavras não são mais que um muro de cacos de vidro à entrada de uma cidade maldita
Quando teu nome canta aos meus lábios partidos
Teu nome e que cortem a minha língua
Teu nome
Toda música no minuto da morte

Tradução:  Claudio Daniel

(In Elsa, de 1958)

Je suis l’hérésiarque de toutes les églises 
Je te préfère à tout ce qui vaut de vivre et de mourir 
Je te porte l’encens des lieux saints et la chanson du forum 
Vois mes genoux en sang de prier devant toi 
Mes yeux crevés pour tout ce qui n’est pas ta flamme 
Je suis sourd à toute plainte qui n’est pas de ta bouche 
Je ne comprends des millions de morts que lorsque c’est toi qui gémis 
C’est à tes pieds que j’ai mal de tous les cailloux des chemins 
A tes bras déchirés par toutes les haies de ronces 
Tous les fardeaux portés martyrisent tes épaules 
Tout le malheur du monde est dans une seule de tes larmes 
Je n’avais jamais souffert avant toi 
Souffert est-ce qu’elle a souffert 
La bête clamant une plaie 
Comment pouvez-vous comparer au mal animal 
Ce vitrail en mille morceaux où s’opère une mise en croix du jour 
Tu m’as enseigné l’alphabet de douleur 
Je sais lire maintenant les sanglots Ils sont tous faits de ton nom 
De ton nom seul ton nom brisé ton nom de rose effeuillée 
Ton nom le jardin de toute Passion 
Ton nom que j’irais dans le feu de l’enfer écrire à la face du monde 
Comme ces lettres mystérieuses à l’écriteau du Christ 
Ton nom le cri de ma chair et la déchirure de mon âme 
Ton nom pour qui je brûlerais tous les livres 
Ton nom toute science au bout du désert humain 
Ton nom qui est pour moi l’histoire des siècles 
Le cantique des cantiques 
Le verre d’eau dans la chaîne des forçats 
Et tous les vocables ne sont qu’un champ de culs-de- bouteille à la porte d’unecité audite 
Quand ton nom chante à mes lèvres gercées 
Ton nom seul et qu’on me coupe la langue 
Ton nom 
Toute musique à la minute de mourir

SOBRE LOUIS ARAGON




domingo, 13 de julho de 2014

Gregório Duvivier

num dia ensolarado, eu disse,
você pode ouvir o big bang até
hoje, eu li num jornal, até hoje,
é um barulho ensurdecedor, eu
disse, mas como é, você disse,
como é que não estamos ouvindo
nada agora, você disse, mas nós
estamos ouvindo ele agora, eu
disse, só não estamos escutando,
porque sempre ouvimos, desde
pequenos, mas se ouvíssemos
agora pela primeira vez seria
ensurdecedor, eu disse, e você
de repente disse, e eu nunca
me esqueci, disse que talvez por
isso as pessoas não se entendam
direito, por causa do estrondo,
e nós voltamos a ouvir música,
e ninguém disse mais nada.

(e eu pensei: talvez por isso
a música — para calar o estrondo)

[In Ligue os pontos poemas de amor e big bang, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 55].



sábado, 12 de julho de 2014

Antonio Tabucchi

ESTÁ FICANDO TARDE DEMAIS - Excerto

Um amigo meu defende a ideia de que o suicídio, pelo fato de ser uma decisão radical, paradoxalmente, no fundo é mais fácil, um gesto, e pronto. Bem mais difícil é o silêncio. Este pressupõe paciência, constância, teimosia; e sobretudo, se confronta com o dia-a-dia da nossa vida, os dias que nos restam, um depois do outro, realmente longos com as suas pequenas horas, é como uma promessa, é de vidro, pode quebrar-se com um nada, e o seu inimigo é o tempo. Como vão as coisas. E o que as guia: um nada. Foi por acaso. Entrei no corredor daquela taberna por simples curiosidade, para olhar. A sala era sóbria, com cadeiras de palha amontoadas umas sobre as outras, e as mesas colocadas num canto. Havia fotografias nas paredes e comecei a olhá-las. Naquele vilarejo veneram duas pessoas: uma é Venizelos, porque nasceu por aqueles lados e ali teve o seu quartel-general durante as batalhas; e vê-se em retratos de quando era jovem e jornais amarelecidos que representam em cor sépia o seu amor pelo povo. O outro é Kazantzakis, porque parou neste vilarejo quando uma das suas muitas infelicidades o perseguia, e aqui o acolheram. É um escritor de que nunca gostei muito, talvez porque nos parecemos na soberba, só que nos micromeandros do nosso ser os caminhos da soberba são mais infinitos que os caminhos do Senhor, e no seu caso a soberba escolheu o caminho da coragem e do orgulho de tê-la. O meu é um caso totalmente diferente, como você bem sabe, é quando o orgulho pode optar pela covardia. Além do seu retrato, vestido de homem de bem (paletó, gravata, bigode bem cuidado, brilhantina, olhar profundo de quem está olhando a máquina fotográfica como se olhasse nos olhos a Verdade), havia também a fotografia do seu túmulo (se assim o podemos chamar), porque a sua Igreja não acolheu no cemitério um homem que lhe parecia blasfemo, e a sua cidade, Herakleion, enterrou os despojos na muralha que a circunda, e escreveu na lápide uma frase sua que o retrata fielmente, da cabeça aos pés: “Não acredito em nada. Não espero nada. Sou livre.” Veja como vão as coisas, e o que as guia, basta uma frase assim para destruir o propósito de uma pessoa como eu. O silêncio é mesmo frágil.

[In Está ficando tarde demais, tradução de Ana Lúcia Ramos Belardinelli, Rio de Janeiro, Rocco, 2001, p. 23]

SOBRE ANTONIO TABUCCHI

Mikko Lagerstedt


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Murilo Mendes

O OVO
O ovo é um monumento fechado, automonumento; plano-piloto, realizado agora, do germe inicial da criação.
A exemplo da torre de Pisa, o ovo não costuma sustentar-se em pé. Ninguém ignora que a torre gosta de emigrar durante a noite. De resto, ela subsiste somente porque amparada por uma pena num quadro de René Magritte.
O mesmo pintor em outro quadro Les vacances de Hegel mostra um guarda-chuva aberto: em cima pousa um copo contendo um líquido. Evidentemente todos os observadores sofrem uma ilusão de óptica, trocando o copo por um ovo, de resto mais vizinho ao pensamento do filósofo.
O ovo, objeto concreto de alto coturno, caríssimo, quase inacessível: diamante do pobre.
                                                                       *
No meu tempo de infância, indo a noite alta de dois metros, eu já não ouvia mais o tique-taque do relógio; antes, o pulsar do ovo na sua gema, nunca sua clara.
Num tempo ainda mais recuado eu tinha medo do ovo. O medo: confere-nos uma téssera de identidade, fazendo-nos enfrentar algo de real, o próprio medo. O medo é o ovo da aventura posterior.

[In Poliedro, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 995]

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Rainer Maria Rilke


OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE - EXCERTO
Oh noite sem objetos. Oh janela cega para o mundo lá fora, oh portas fechadas com cuidado; hábitos do passado, recebidos, reconhecidos, nunca inteiramente compreendidos. Oh silêncio na escadaria, silêncio dos quartos vizinhos, silêncio no alto, junto ao teto. Oh mãe: oh única que dissimulou todo esse silêncio, outrora, na infância. Que o toma sobre si, e diz: não te assustes, sou eu. Que tem a coragem, em plena noite, de ser esse silêncio para aquele que tem medo, que se arruma de medo. Acendes uma luz, e já o ruído és tu. E a seguras diante de ti e dizes: sou eu, não te assustes. E tu a depões, devagar, e não há dúvida: és tu, és a luz em volta das coisas costumeiras, cordiais, que aí estão sem sentidos ocultos, boas, simples, inequívocas. E quando algo se inquieta em algum lugar na parede ou dá um passo nas tábuas: apenas sorris, sorris, sorris de maneira transparente sobre um fundo claro para o rosto assustado que te inquire como se estivesses conluiada e tivesses segredos com cada voz baixa, como se estivesses combinada e de acordo com ela. Algum poder no império terreno se assemelha ao teu? Vê, reis jazem e olham fixamente, e o contador de histórias não é capaz de distraí-los. Reclinados nos seios felizes de suas favoritas, o horror rasteja sobre eles e os deixa trêmulos e desanimados. Tu vens, porém, e manténs o monstruoso atrás de ti e o encobres completamente; não como uma cortina que pudesse se abrir aqui ou ali. Não, mas como se o tivesses vencido em razão do chamado que precisou de ti. Como se tivesses chegado muito antes de tudo que pode vir, e tivesses às costas apenas a tua chegada apressada, o teu caminho eterno, o voo do teu amor.

[In Os cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução e notas de Renato Zwick, Porto Alegre, L&PM, 2010, pp. 60-61]. 



quarta-feira, 9 de julho de 2014

Maria Lúcia Dal Farra

TRIUNFO DA VIDA
A Haquira Osakabe

O fósforo das estrelas acende rápido a noite.

Quente é o aroma do jasmim
convocando o cio.
Há gemidos no canavial
tal qual corpos que se estorcem
arrepiados da lâmina das palhas —
veludo áspero de taturanas.

Em outro lugar do mundo
(no mesmo silêncio noturno)
a toada do mar reza seu salmo.
Crisântemos se despenteiam
girassóis sem norte perseguem a lua
lírios brotam (em sigilo) da neblina.

Fosse dia,
malhava o seu ferro na atmosfera
a araponga,
preparava rendilhada mantilha a hera.

Cada qual
(a seu modo)
todos burlamos o desconforme da morte.

[In Alumbramentos, São Paulo, Iluminuras, 2011, p. 35].



terça-feira, 8 de julho de 2014

Olga Savary

INSÔNIA
A José Carlos Audíface Brito

Quero escrever um poema irritado.
Quero vingar meu sono dividido
(busco palavras que interroguem essa alquimia
do poema, que vire a noite em fogo vário
e a lua em pegada escondida atrás do muro
- vagaroso desmoronar de extinto voo ).
Quero um poema ainda não pensado,
que inquiete as marés de silêncio da palavra
ainda não escrita nem pronunciada,
que vergue o ferruginoso canto do oceano
e reviva a ruína que são as poças d’água.
Quero um poema para vingar minha insônia.

Rio de Janeiro, março 1950 

[In Repertório Selvagem, Obra Reunida, Rio de Janeiro: MultiMais editorial, 1998, p. 26]

By Clare Elsaesser

segunda-feira, 7 de julho de 2014

W. H. Auden

RIMBAUD
As noites, os arcos da ferrovia, o feio céu,
Não o sabiam sequer suas horríveis companhias;
A mentira retórica, qual chaminé, o
Queimava em criança: do frio nascera a poesia.

O álcool que o amigo fraco e lírico ofertara
Metodicamente os sentidos desregrou,
Pôs fim ao contra-senso ao qual se acostumara;
Até que de lira e fraqueza se afastou.

O verso era uma doença especial do ouvido;
A integridade não era o bastante; ali estava
O inferno da infância: devia tentar de novo.

Agora, cavalgando em África, sonhava
Com um outro eu, um filho, alguém bem-sucedido,
E sua verdade aceita pelos mentirosos.

Dezembro 1938

[In Poemas, Seleção de João Moura Jr., Tradução e Introdução: José Paulo Paes e João Moura Jr., São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 73]

- Sobre este poema, leiam o interessante artigo de José Castello: Auden e o Imperfeito

By Ricardo Humberto

domingo, 6 de julho de 2014

Henrique de Lemos

PROCURA NO QUE SONHAS
Procura no que sonhas
apenas a frescura 
de um curso de água
descendo a montanha.

Não faças de barragem
o teu ser: da tua boca
jorrará sempre a mentira
de um suposto saber.

Do eterno, 
da pura visão selvagem,
do avanço intrépido para o que é,
só os bichos podem beber.


sábado, 5 de julho de 2014

Paul Celan

HAVIA TERRA neles, e
escavavam.

Escavavam, escavavam, e assim
o dia todo, a noite toda. E não louvavam a Deus
que, como ouviram, queria isso tudo,
que, como ouviram, sabia isso tudo.

Escavavam e não ouviram mais nada;
não se tornaram sábios, não inventaram uma canção,
não imaginaram linguagem alguma.
Escavavam.

Veio um silêncio, veio também uma tormenta,
vieram os mares todos.
Eu escavo, tu escavas, e o verme também escava,
e quem canta ali diz: eles escavam.

Oh alguém, oh nenhum, oh ninguém, oh tu:
Para onde foi, se não há lugar algum?
Oh, tu escavas e eu cavo, e eu me escavo rumo a ti,
e no dedo desperta-nos o anel.

[In CRISTAL, trad. Cláudia Cavalcanti, São Paulo, Iluminuras, 2011, p. 89]



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Ingeborg Bachmann

MEIO-DIA, CEDO
Calma reverdece a tília na abertura do Verão,
muito distante das cidades cintila
o brilho baço da lua diurna. E já meio-dia,
na fonte já se agita o jacto,
sob os estilhaços já se ergue
a asa aviltada do pássaro mágico
e a mão deformada do lance da pedra
mergulha no trigo que desponta.

Onde o céu da Alemanha enegrece a terra,
o seu decapitado anjo procura um túmulo para o ódio
e oferece-te a taça do coração.

Uma mão cheia de dor perde-se para lá da colina.

Sete anos mais tarde
de novo te lembras,
junto à fonte, às portas da cidade,
não olhes muito no fundo,
que os olhos ficam toldados.

Sete anos mais tarde,
numa casa mortuária,
os carrascos de ontem bebem
a taça de ouro até ao fim.
Baixas os olhos de triste.

É já meio-dia, nas cinzas
contorce-se o ferro, no espinho
foi içada a bandeira e nos rochedos
do sonho ancestral fica a partir de agora
agrilhoada a águia.

Só a esperança se agacha cega na luz.

Solta-lhe as grilhetas, leva-a
pela encosta, põe-lhe
a mão sobre os olhos, para que
sombra nenhuma a queime!

Onde a terra da Alemanha enegrece o céu,
a nuvem procura palavras e enche a cratera de silêncio
antes que o Verão as oiça na sua chuva escassa.

O indizível passa, sussurrado, sobre esta terra:
é já meio-dia.

[In O tempo Aprazado, Seleção, tradução e introdução João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, pp. 35-37]



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Antonio Fernando de Franceschi

GEOGRAFIA
"...Touch me, touch the palm of your hand
to my body as I pass..."
— WALT WHITMANN
O leve arrepio de tuas mãos
me comanda suave
sigo-te pelos lugares de mim
que não conheço
amanheço-me vales
me percorro colinas
sou o campo em que te apraz
me transformares
ou senda perdida
num dorso de montanha

Me desvelo geografia
ao teu desejo
qual queiras
para colher-te em prados
ravinas
e na fina erva que me cobre o peito
te sentir os dentes
palmo a palmo cortando rente
sem pressa de me cegares
no olho da paixão

[In Caminho das Águas, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 29]

By Lynn Noelle Rushton 



quarta-feira, 2 de julho de 2014

Yves Bonnefoy

Ó chama
Que a consumir celebras,

Cinza
Que a dispersar recolhes.

Chama, sim, que apagas
Da mesa sacrificial do estio
A febre, os sobressaltos
Da mão crispada.
Chama, para que a pedra do céu claro
Fique lavada desta sombra, e seja
Um deus criança que brinque
Na acritude da seiva.
Sobre ti me debruço, colho, de joelhos,
Chama que vais,
A impaciência, o ardor, o luto, a solidão
Em tua fumaça
Sobre ti me debruço, aurora, e pego
Nas minhas mãos a tua face. Tempo lindo
Faz na cama deserta! Eu sacrifico
E és a ressurreição do que eu queimo.

Chama
Nosso quarto de outro ano, misterioso
Como uma proa de barca que passa.

Chama, esse vidro
Na mesa da cozinha abandonada,
Em V.
Entre os escombros.
Chama, de sala em sala,
O estuque,
Toda uma indiferença, iluminada.

Chama essa lâmpada
Onde faltava Deus
Acima do portal daquele estábulo.
Chama
A vinha do relâmpago, distante,
No pisoteamento dos bichos que sonham.
Chama essa pedra
Onde a faca do sonho lidou tanto.


[In Yves Bonnefoy, Obra Poética, Tradução e org. Mário Laranjeira, São Paulo, Iluminuras, 1998, 266-267]


terça-feira, 1 de julho de 2014

Miguel Torga

S. Martinho de Anta, 28 de setembro de 1965.

UM POEMA
Um poema, poeta!
É o que a vida te pede.
A fome diligente
Colhe
E recolhe
Os frutos e a semente
Doutros frutos.
Junta à fecundidade
Da natureza
Os frutos da beleza...
Versos grados e doces
Na festa do pomar!
Versos, como se fosses
Mais um ramo, a vergar.

Coimbra, 5 de Novembro de 1965.

CAUDAL
Ergo a voz no silêncio hostil do mundo,
Como um galo que canta a horas mortas.
Nem me posso calar,
Nem posso amortecer
A força que faz dela um desafio.
A fonte brota, e tem logo ao nascer
O ímpeto dum rio.
E o rio não tem foz dentro de mim.
Some-se às vezes, não sei como e onde,
Mas reaparece.
E retoma de novo o curso desabrido,
Mais largo, mais barrento
E violento,
E sem que eu lhe descubra o íntimo sentido.

Monforte do Alentejo, 30 de Novembro de 1965-

SERÃO
Lento, o poema
Vai ardendo e abrindo
Na fogueira.
E ponho-me a cantá-lo,
Sonolento:
Lume alentejano
De lenha de azinho;
Calor do calor...
O sol da charneca,
Depois de ser tronco,
Depois de ser rama,
Depois de cortado,
Depois de secar
À própria torreira,
Ainda a brilhar
No céu da lareira!

[In Diário X, In Poesia Completa, Vol. II, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 308-309]

Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...