domingo, 31 de março de 2013

Gê César de Paula


tempos

é preciso um tempo de esteio
para o peixe cravejado na pedra

é preciso um tempo de veio
para o espeleotema gotejado na gruta
é preciso um tempo de cerne
para o magma assentado na terra

é preciso um tempo de luz
para o relâmpago tracejado no infinito
é preciso um tempo de espera
para o plexo que expele a vida
é preciso um tempo de feixe
para a partícula que concede o caos
é preciso um tempo de ausência
para o acaso do mundo

Fonte: Oficina Literária, Revista Cult, fevereiro 2013, São Paulo

Gê César de Paula, 50, é jornalista e ouvidor público em São Paulo (SP).
Mantém o blog www.oemporiodocesar.blogspot.com.br

sábado, 30 de março de 2013

Paulo José Miranda

Já nada tarda
Por vezes, tudo é tão tarde que já nada tarda.
Um pouco de imaginação e a humilhação é doce.
E o que cresce dentro de nós não clama unidade,
espera-se o sol, qualquer flor do prado,
Chamamos homem a tão pouco e até se ama por isso.
Veste-te, agora veste-te para a cidade,
escuta os malefícios de um gesto que não quiseste.
Mais simples que isto não consigo,
tudo é tão tarde que já nada tarda.

Devolução
Não sinto culpa por não saber o nome das flores.
Foram dúvidas o que sempre tive,
e as dores não admitem nomes.
Uma vez não acreditamos já tudo ter sido dito.
Espera-se numa palavra a devolução do amor.

O sábio
Despojou-se das metáforas,
depois sentou-se nos seixos do rio
a escutar as águas.

A liberdade de Jeremias
Jeremias libertado na dor do espaço.
Aqui, Lisboa é o pior dos séculos.
Deus - Senhor, perdão! - onde estás?
Sequer uma voz vinda de longe, um sorriso,
uma mão que me acalme.
Já noite, o calor intempestivo de insectos,
as ruas passam ao largo das tabernas, de todos outros.
O pouco que sabe não lhe dá que fazer,
e quão difícil não pecar, rejeitar um verso.
Sem passos ao lado, voz,
p'ra'qui entregue a estes livros,
Jeremias escuta o pó de alguns
animais e os donos em viagem.
Quem parte assim de noite - já foge - procura?
Libertado - e não quer dizer nada - o profeta.

In A voz que nos trai,  Lisboa: Ed. Cotovia, 1997. 









Henrique Dória

SOMOS APENAS ÁGUA
Somos apenas água dentro
Da ânfora.
É da ânfora a nossa forma
A nossa luz e a nossa sombra.

Estamos para ser
Bebidos
Ser o alimento das rosas
E a saliva do cão

-o bico da rola
que abre a música dentro do cristal.

Somos para ser despejados na rua
Ou, tão só, nos perdermos dentro dos tubos escuros
Misturados em urina e fezes.

E, no entanto, a água que somos
Torna brancas as escadas de mármore
E tantas vezes arde
Até ao incêndio.

CEDO
Cedo
Foste atirado
Para as florestas de chumbo
Onde todos nos iremos encontrar
Sem nos conhecermos.

Galerias de água negra 
Se abriram nos teus olhos 
Quando círculos e círculos 
Te sorveram.

Não
Não era hoje o dia mais propício
Para morreres
Com um doce coágulo de sol
Na fronte.

QUE A ESCADA TE SIRVA 
Que a escada te sirva
Para alcançares o Monte Ararat.
Que a vieira te sirva
Para beberes o mar.
Todos somos o teu bordão.

Planta uma árvore 
Sobre o mar vermelho
Planta-a dentro do triângulo
Planta-a 
Para que cresça sobre o fel sufocado 
Entre a lua e o sol.

DESPEDE-TE DA CASA
Despede-te da casa
Para ires ao encontro do bosque do mundo
Despede-te do espelho
Para ires ao teu encontro
Despede-te de ti
Para ires ao encontro do branco-nada.
Antes de partires tapa com lenços negros
Os orifícios do teu corpo
Tapa-os com lenços vermelhos

E envolve-te em argila marinha

Se queres que o teu caminho
Seja um poema mais tarde.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Murilo Mendes

QUARTA MEDITAÇÃO
Ó Deus tua solidão
Quando desde toda a eternidade
Conheces tua própria força e teu poder.                      
Tua solidão quando sopraste sobre o homem
Sabendo que ele te iria abandonar:
Tua solidão foi rompida pela intimidade
Que te incarnando concedeste ao homem...
E ao mesmo tempo que rompida, se agravou.
Ó Deus tua solidão
Porque o homem à tua sombra severa e suave
Prefere a companhia de imperfeitos
ídolos à base de terror.
Ó Deus tua solidão
Porque o homem não te pesquisa paciente
No Santo dos santos do seu próprio espírito
Mas observando sempre o espaço e o tempo.
Ó Deus tua solidão
Porque aceitaste experimentar a morte
Decretada pelo teu próprio Pai
E assim do enxerto da tua morte de homem
O homem um dia despontasse Deus.
Ó Deus tua solidão
Porque morte, fome, peste e guerra
Não te podem atingir nem alterar.
Ó Deus tua solidão
Porque abandonado nos abandonas.
Ó Deus tua solidão
Não te distancia — te aproxima de nós.
Ó Deus tua solidão
Te manifesta pobre, fraco e nu,
Ainda mais fraco do que o próprio homem
Usando seu poder de usurpação,
Ó Deus desfeito em sangue, verme vil.

Ó Deus tua solidão
Te desloca domado
Do infinito físico em que te limitaram
E te faz descer até nós
No infinito íntimo,
No recesso de miséria em que te recebemos,
No santuário sinistro do pecado,
Ó Deus que capitulas
E que te fazes semelhante a nós
Em nossa intransferível solidão

[In: Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.  246




Kent Williamns


quinta-feira, 28 de março de 2013

Lélia Coelho Frota

AUTOGRAVURA, EM ÁGUA FRÁGIL II
Pelo que fui de riso claro
no estágio de uma primavera
pela doída confidência
impressa em água curiosa
e navegada por estranhos
em sua vã mansuetude
urdiu o tempo o comentário
que para vós é minha imagem:
apenas jovem ocorrência
de olhos risonhos na paisagem.
E com mineira e atra constância
passeio os córregos delgados
em meandro pervago no trilho
dos novilhos de chocolate.
Coração entre mar e Minas
de ligeiro favônio aceno
brinco entre vossa habilidade
de não saber-me (mar ou Minas)
e de tanta fragilidade
efígie de água me desmancho
frêmito leve de suspiro
para surgir no vau tranquilo
do Rio Verde mapeado na
concreta cidade dos morros
onde o universo se resume
no olhar explícito dos bois
e no severo circunlóquio
dos homens pelo território
cinábrio de seu cafezal —
feudo em que o arame é geografia
única de interna valia
e o que o excede é horizonte
onde a atenção não se ilimita:
já é outra jurisdição.
Rios vermelhos e vermelhas
estradas de barro ferido
pelos arados sonolentos
casas de barro, bois de barro
oco, paixão e anjos barrocos
desfazendo-se no passado
como em lenta câmara rubra
a resumir tudo em difusa
mancha de quem encara o sol.
Mas é na ternura do barro
que se molda a fisionomia
das longínquas tardes de infância
e dos atalhos em surdina
onde o segredo era ciência
de perdular-se e não exaurir-se:
mina que sempre revertesse
um imutável diamante.
E como imprimir à feitura
(assim tão sobre o purpurino)
de minha paisagem madura
o tom que lhe ameiga o contorno
e responde pela moldura
que esmerilha em amorosa luz
mesmo a fidúcia solitária
de quem soma seus desconfortos?
Só descerrando em talho doce
certa líquida anatomia
do espelho antigo que escorria
em nós o humor e os estuários
da reserva que é sentimento
das Gerais em qualquer instância
e sobrepaira em absoluto
diário cerrado, nostálgico,
as noruegas do silêncio
onde itinero em singradura a
 nave azul deste poema
com leme aberto em madrigal
que atravessa na cerração
mares que nunca saberei
em perdida viagem — meu próprio
longo exílio sem remissão.

Juan Carlos Boveri

[In Poesia Lembrada, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1971, p. 119-120].


quarta-feira, 27 de março de 2013

António Ramos Rosa

UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO MITO DE NARCISO 

Quero aconchegar-me nos meus braços nocturnos
sou o meu próprio berço maternal e musical
inteiramente prolongando-se redondo
como um cavalo de veias nuas 
numa vagarosa torrente cálida
no radioso tremor do meu corpo nascente
pertenço-me numa onda que vai morrendo
numa ilha numa nuvem numa teia tecendo-me
pela minha língua pelas minhas mãos pela saliva
do meu sol embriagado
pelo sabor do meu corpo que se dilata como um fruto branco
como um rio que enrola e desenrola numa contínua onda
sou o que só a si se pertence e de um útero verde desponta
numa fuga amorosa
sou Narciso aquele a que se dá esse nome puro
de flor e adolescente de solidão amada
no berço da sua extasiada fonte
e me pertenço na dádiva de me dar
o que vem do fundo de um sim de um princípio divino
e é uma mulher na sua origem de irmã incestuosa
de virgem pródiga na primitiva nudez de Eva.




terça-feira, 26 de março de 2013

Cristina Campo

RÁDONITZA 
(Anúncio da Páscoa aos mortos)

Vento de primavera
translúcido como espada:
afasta do sépalo afiado
a corola carmesim que ainda treme,
como na alma o espírito,
o sangue da veia.
O inverno, oculta haste
que balouçou os desejos, assombrou as mortais hesitações,
decepada sem um grito;
a velhice interior decepa
da terrível vida.
Páscoa da incorrupção!
No vento de primavera
a antiga igreja indivisa
anuncia aos mortos que indivisa é a vida:
sobre as lápides dos túmulos
pousa os sépalos que ainda tremem
e no centro, no plexo, no coração,
lá onde está sepultado o Sol,
lá onde está sepultado o Dom,
o pequeno ovo carmesim do perene retorno,
do humilde, irreconhecível
transfigurado retorno.
Páscoa que libertas todas as culpas!

Paradoxal deserto
de um cemitério metropolitano
entre suavíssimas asas
de andorinhas e véus: quinto tom,
gritos de boiardos sem postura, a espada exposta
na celeste Cidade tomada,
a qual se cruza e enrola, oitavo tom,
— como à vivificante, venerável Cruz
do Arqueiro a rosa que ainda treme —
naquele tão terno lamento fúnebre:
Páscoa, memória eterna!

Patética, patrícia
morte da morte metropolitana
testemunhada apenas por escassas e imóveis bonecas
da Corte asiática: carmesim, prata e ouro.
Pálpebras escavadas,
pálpebras afiadas,
olhos fixos, parados, empedrados
sobre os túmulos de cada lugar, cada memória, cada estirpe,
cada psique que morre.
Lenços enxugam furtivos
os cantos da boca que rega como sangue
o divino grito, as raízes carbonizadas da água
inexaurível da notícia tremenda:
Páscoa, memória eterna!

[Cristina Campo, O Passo do Adeus, tr. José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 103-105].

Tiziano

segunda-feira, 25 de março de 2013

María Victoria Atencia

MARTA E MARIA
Uma coisa, meu amor, ser-me-á imprescindível.
Jan Vermeer
para estar sentada a teu lado no chão;
que meus olhos te olhem e tua graça me preencha;
que teu olhar cubra meu peito de ternura
e extasiada não encontre outro motivo
para morrer que tua ausência.

Mas, que será de mim quando tu te fores?
pouco ou quase nada servem, fora de tuas razões,
a casa e seus afazeres, a cozinha e a horta.
És todo meu ócio:
o que importa que minha irmã ou os demais murmurem,
se sais em minha defesa, já que só amor conta.

MENINA
Levas um copo cheio de transparências
entre inquietas mãos e escorregadios dedos.

Podes cantar o céu, o amor, as estrelas:
tudo nascerá novo de teus lábios formosos.

Descobrirás em sonhos a vida que te persegue
tão docilmente mansa e lhe sorrirás.

Despertarás o dia menos pensado entre
um maio e um setembro e moverá o assombro
ao fio de tua anágua.

Revolverás então de um desconserto grande
o mundo que te preenche; uma luz saltará,
em canos, por teus olhos.

E, seguirá a fonte o curso de teu colo
enquanto pássaros haja em voo por tuas veias
e palavras falando do amor em tua boca.

BONECA QUEBRADA
Que me tenta dizer tua deterioração? Vem,
boneca frágil, doente e ferida,
sem grande saias que cubram teu corpo descomposto,
sem uma alma mecânica que te cubra, desastre
dos anos e o trato.
Não me apartei de ti, nos apartaram
convenções e usos: não era próprio querer-te,
e hoje penso que outras mãos te mexeram em excesso.

Tradução do professor José Pires

Sobre María Victoria Atencia

domingo, 24 de março de 2013

Carminha Gouthier

ADORO-TE
Adoro-Te,
maravilhada,
quando plantas na areia selvagem
cedros e acácias,
murtas e oliveiras,
quando chamas as estrelas pelo nome.

Temendo,
quando surges na ilha da visão:
olhos de fogo,
pés de metal ardente,
na Tua voz, ruído de muitas águas,
na boca, a espada de dois gumes.
Distante e violento,
a medir, a pesar,
a julgar para sempre.

Comovida,
quando Te sei humano,
estremecendo de dor
ante a pedra de um sepulcro.

Amando Teus amigos
com a ternura
com que amo os meus.

Carminha Gouthier, Mystica Poesia - Poemas Reunidos, p. 139.

Rainer Maria Rilke

O TORSO ARCAICO DE APOLO
Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

Tradução: Paulo Quintela

QUE FARÁS TU, MEU DEUS, SE EU PERECER?
Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

Tradução: Paulo Plínio Abreu

MORGUE
Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 115

A PANTERA
                        No Jardin des Plantes, Paris
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 121


A GAZELA
                            Gazella Dorcas
Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 123

SÃO SEBASTIÃO
Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013,p. 125

O ANJO
Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas lhe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 127

FONTE ROMANA
                               Borghese
Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 157

DANÇARINA ESPANHOLA
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 159

O CEGO
Ele caminha e interrompe a cidade,
que não existe em sua cela escura,
como uma escura rachadura
numa taça atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha,
nele se riscam sem que ele as acolha:
só sensações de tato, como sondas,
captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistência -
como se à espera de escolher alguém, atento,
ele soergue, quase em reverência,
a mão, como num casamento.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 243

EXERCÍCIOS AO PIANO
O calor cola. A tarde arde e arqueja.
Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num étude enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes

a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 277

O SOLITÁRIO
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 293

O FRUTO
Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 349

O MUNDO ESTAVA NO ROSTO DA AMADA
O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 351


Marc Chagall





sábado, 23 de março de 2013

Mariana Ianelli

LÍRICA
Chegasse antes da hora
Eu te veria
No ato que sempre só imaginei -
Tua forma estólida, absorta,
Possuída
De um saber que livro algum
Jamais te deu.
Sem tocar teu corpo cântaro
Provaria
O sangue da tua meditação,
E aquele rancor sequer perdoado
A um morto
Num amor rebentaria,
Alheio ao teu juízo,
Como quem canta à noite
À boca de um poço
E pela voz de um outro
É correspondido.
Assim eu revelaria
O teu amor aos assassinos
Precipitando-se
Num rosto compassivo
Que me recebe na hora certa
E permite
Que o meu pensamento
Penetre o teu sem relutância
E faça contigo
Irremediavelmente
O que só um poeta faz com as palavras.

(Em "O Amor e Depois", Iluminuras, 2012)


sexta-feira, 22 de março de 2013

Fiama Hasse Pais Brandão

DOMUS
Ouvirei os ruídos (dos) vivos, percurso de mortos, passadas
horas de afastamento e das visões nítidas;
a ciência dos náufragos, eterno retorno; a vaga
do início das águas, primeiros sentidos da terra
ou hespérida.  Hinos (era de ouro) ao sangue
que no atrito circula; à seta, em sua árvore
de arco; à espécie, o primeiro nado. Hóspede
de solo, humano, ergui o corpo; saúda
em Atlântida a ágora; saúda a urbe (onírica).
Onde penetram os membros, esse cortejo. Congregue
os animais; na praça a cúpula vibre. Seus dons exerça
em exílio — numa estação adversa ou oiço
em fontanários e harpas o mesmo
brado: o desejado sítio, ó espera.

POEMA PARA A PADEIRA QUE ESTAVA 
A FAZER PÃO ENQUANTO SE TRAVAVA A BATALHA DE ALJUBARROTA
Está sobre a mesa e repousa
o pão
como uma arma de amor
em repouso

As armas guardam no campo
todo o campo
Já os mortos não aguardam
e repousam

Dentro de casa ela aguarda
abrir o forno
Ela em mão que prepara
o amor

Pelos campos todos armas
não repousam
mais os mortos
ter amor

Sobre a mesa põe as mãos
pôs o pão
Fora de casa o rumor
sem repouso

Ela agora abre o fogo
para o pão
em repouso ela ouve os mortos
lá de fora

Lá de fora entram armas
os homens
As mãos dela não repousam
acolhem

Sobre a mesa pôs o pão
arma de paz
Contra as armas da batalha
arma de mão

Contra a batalha das armas
não repousa
Caem contra a mesa os mortos
contra o forno

Outra paz não defende ela
que a do pão
Defende a paz que é da casa
e das mãos

Picasso

quinta-feira, 21 de março de 2013

Henriqueta Lisboa

RESTAURADORA
A morte é limpa.
Cruel mas limpa.

Com seus aventais de linho
— fâmula — esfrega as vidraças.

Tem punhos ágeis e esponjas.
Abre as janelas, o ar precipita-se
inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras.

Porém tudo voltou a ser como antes da carne
e sua desordem.

In  Flor da Morte, 1945-1949



Salvador Dali

quarta-feira, 20 de março de 2013

Paulo José Miranda

A SOMBRA
Ó sombra da respiração
Minha mãe
Que abandonaste teu filho às margens de uma estrada grande
Parco de tudo o que existe menos de ignorância
Altiva como o nada que nos assola pela manhã
Assola à tarde e nos assola de novo na aurora

Minha mãe
Sombra da respiração de onde vim
Desenha uma porta neste caracol vazio que é a nossa vida
Deixa-me sair de mim e de ti
Que nada aconteceu entre nós que não se possa apagar
Como a luz que acontece às vezes no campo nas noites escuras

Ó minha sombra de respiração
De quem sou filho e filho também do que nada sei
És a responsável
Pelo desequilíbrio com que se começa a vida
Por tudo o que cai e se desfigura
Muitos ou apenas poucos dias depois

Meu coração é do tamanho do escuro
É à porta de mim que se faz luz
Não tenho dores em lugar algum para mostrar
Há em mim uma parte de todos
Que se espalha entre nós como sémen
Um humano desperdício vingativo

Tenho a cabeça derramada na laje fria
E não é a primeira nem será a última
Escrever da dificuldade de respirar
Da dificuldade de ver que vim de onde vim
É crer na noite e no fim de tudo
Crer é um enorme ponto final

in "Cintilações da Sombra", antologia coordenada por Victor Oliveira Mateus.


kal gajoum

terça-feira, 19 de março de 2013

António Salvado

É NOITE, MÃE
As folhas já começam a cobrir
o bosque, mãe, do teu outono puro...
São tantas as palavras deste amor
que presas os meus lábios retiveram
pra colocar na tua face, mãe!...

Continuamente o bosque se define
em lividez de pântanos agora,
e aviva sempre mais as desprendidas
folhas que tornam minha dor maior.
No chão do sangue que me deste, humilde
e triste, as beijo. Um dia pra contigo
terei sido cruel: a minha boca,
em cada latejar do vento pelos ramos,
procura, seca, o teu perdão imenso...

É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!... 


[In DIFÍCIL PASSAGEM (1962)]

segunda-feira, 18 de março de 2013

Maria de Lourdes Hortas

ENQUANTO NÃO SABES, PETRUS
Enquanto não sabes
que as baleias não são peixes,
que as estrelas não são lanternas de anjos
ou buracos de fechaduras do infinito,
que o trovão não é Deus que está ralhando,
nem são Pedro arredando móveis no céu,
que a chuva não é o mesmo santo despejando cântaros
sobre a terra,
que as nuvens não são mares suspensos, cabeças de avós,
rebanhos, fantasmas, mas vapor - só vapor condensado.

Enquanto não sabes que tudo é fenômeno
como, por exemplo, o arco-íris,
espectro solar.

Enquanto não sabes o que é
fenômeno, Ltda, ONU, verbos e provérbios,
química, teu nome, sobrenome & Cia.
cores, alfabeto, psicologia.

Enquanto não sabes ver televisão
e olhas a Lua — Bolacha Maria -
que — não sabes — é satélite da Terra,
telhado de ébrios
e nau de poetas.

Enquanto não sabes o que é poesia,
crença ou ceticismo
e a diferença
de Banco maiúsculo e banco de praça.

Enquanto não sabes o que é comunismo,
megatons, foguete,
gregos e troianos.

Enquanto não sabes dar corda ao relógio,
só tu sabes tudo,
pois chegaste há pouco
da cidade-enigma.

(Logo esquecerás.)
Quano já souberes
falar convenções,
ler definições,
apertar botões,
lembra-te que és Petrus
e sobre esta pedra
tua mãe se reconstruirá.

(in AROMAS DA INFÂNCIA) 

 POEMA DE DESPEDIDA AO QUE PARTE PARA O MUNDO
Neste átrio para o mundo viste passar nove luas.
Agora estás pronto e eu te digo adeus porque não poderás voltar.
Aqui tens o teu farnel para a viagem.
Nele eu pus tudo, sem nada esquecer:
teus olhos, tuas mãos, teu cérebro,
teus nervos, teu sangue, tua vocação, teus sentimentos,
tuas palavras, teu nome, tua vida inteira
com atitudes a vestir em cada ocasião.

Aqui tens tua bagagem.
Vai devagar, sozinho, ao leme de tua nave.

De ti eu me despeço:
para este átrio onde nove luas passam silenciosamente
não há caminho de regresso.

(in FIO DE LÃ)

In: Palavra de Mulher (Poesia Feminina Brasileira Contemporânea), Rio de Janeiro: Ed. Fontana, 1979, pp. 184-185

Sobre a autora: Maria de Lourdes Mateus Hortas nasceu na Vila de São Vicente da Beira, Beira Baixa, Portugal, a 4 de Dezembro de 1940. Na terra natal viveu até Outubro de 1950, quando, acompanhando a família (seus pais, Manuel Hortas e Maria Amélia Hortas e sua irmã Maria Daniel), emigrou para o Brasil (Recife, estado de Pernambuco), onde vive até hoje.


sábado, 16 de março de 2013

Mariana Ianelli

UMA ESTRELA NOS CAMPOS

Em memória de Etty Hillesum (1914 – 1943)

Trabalhava. Trabalhava numa primavera fria
esperando ser como a lua, ser como um pasto:
uma vasta paisagem tranquila  –
e desenterrava Deus de sob pedras e cascalhos.
O caminho até o cais era feito entre soldados
(todos tão pequenos por trás de seus crimes).
E trabalhava mais: era uma estaca no mar,
era um pedaço de granito, era o próprio mundo
prestes a ser destruído. E trabalhava mais:
estava com os deportados, com os desaparecidos,
estava com uma flor num retângulo de jardim.
De minuto a minuto forjando a calma em pessoa,
o sorriso de Buda, um terreno baldio.
E já havia partido, muito antes de partir, debaixo
de um céu sem palavras: era uma estrela nos campos,
era a mulher já sem nome do vagão número 12
na direção do Leste, cantando de alegria.

O POETA

Para Paulo José Miranda

Todas essas terras disputadas,
uma vida de alcateia e de cobiça –
mas nem todos nós temos essa fome.
Alguém tem apenas o deserto
de uma história que nunca foi escrita,
a saga sem metáfora de glória
de ciganos tão antigos quanto estrelas –
ao menos um de nós é o outro filho,
o andarilho irmão que foi banido,
e outra vida vem do fundo de um poço,
uma flecha cruza um mundo sem divisas.


Fonte: Revista Pessoa






sexta-feira, 15 de março de 2013

Maria do Sameiro Barroso

COMO UM DITIRAMBO
Desperto, num limiar sonâmbulo, imóvel, quase opaco,
como se o mar me acordasse, nas suas lâmpadas,
e no seu fulgor me enredasse, nos seus búzios claros 
de ardor e doçura.
Entre ossadas, cimento e música, uma árvore brilha,
entre as muralhas irredutíveis de outro tempo.
No sabor de mangas, coco, a lua acorda-me,
cheia de cristais pendentes, qual árvore enamorada,
leito de gatos macios, silêncio onde um suspiro
se extingue, num novo rumor, que de novo se inicia.
No limiar da bruma, as névoas separam-se.

Como um ditirambo, a luz soletra a rota de Dioniso,
Alexandre, à beira do Hidaspes.
Nos vitrais exóticos, à luz de um candelabro,
vislumbro anis, alaúdes, elefantes de magia.
Na noite, acendem-se as jóias obscuras de secreta
alquimia.
Junto das árvores, onde os pássaros cantam,
pela manhã, a erva-doce preenche o espaço, a boca,
a névoa, onde o peito de asas sôfregas respira.

Há pouco, ânforas vazias eram os meus olhos
e amuletos de luz eram as palavras que segredavam
os navios brilhantes, que alguma palavra selou.
Há pouco, num instante apenas nasceria, se no leito
dos teus rios me banhasse,
numa só noite viveria, se no corpo das algas me espraiasse,
e, num só gesto morreria, se de tuas cisternas de cristal
me apartasse.
Nas torrentes de murmúrios e mel, há um rio
onde anémonas de sangue se associam,
para dizer as palavras transparentes.

Nos desertos onde pairam a lua e hibiscos, o céu murmura
as areias límpidas, as sombras que se desprendem
e as ânforas que se enchem-se, de novo,

no liquor luminoso de preciosos sinais.

In “Uma Ânfora no Horizonte” 2009


FANTASIA SOBRE UM TEMA BÍBLICO
Escurecem os jardins, as fontes, as cisternas,
apenas a noite e esta mulher, para mim, Saul,
coroado de treva.
Da sombra, igual ao sheol , recebo as insígnias sagradas,
do espírito divino me chega o lírio tenebroso,
a unção da morte,
e qual rebanho entre as macieiras, repouso em ti,
mulher de En-Dor,
porque as harpas tocam e as fontes vivas reclamam
o meu nome,
o meu sangue, o teu silêncio mo diz,
por isso prossigo, por isso me fortaleço
e no teu seio me demoro.
Em ti bebo a sede eterna, porque as harpas sempre
se pareceram com mulheres e as mulheres
com nenúfares, acedendo à noite incandescente,
de nardos e ciprestes.

Amanhã regressarei às pastagens celestes,
Antes sorverei o teu rútilo mel, nos teus umbrais
perfumados,
breve mandrágora, estrela entre os cardos.

secreta flor colhida em En-Gaddi.

In “Uma Ânfora no Horizonte” 2009


FRAGMENTOS HELÉNICOS
O mar, o vinho e os seus reflexos (as baías do Egeu),
a cal, o húmus, um sol de espigas plenas,
o mistério das coisas simples,
um mundo de dimensões perfeitas.

Depois, as mãos, as raízes, os muros, as manhãs
odorosas.
Uma sílaba exacta semeando um átrio,
a Primavera úbere, o mosto quente de Setembro,
o vinho cristalino, o sabor dos frutos,
cristais de Outono,
Inverno, uma rosa túmida, Eugénio de Andrade.

Como quando li, pela primeira vez
e a poesia me envolveu,
em suas sílabas nocturnas, luminosas,

como girassóis primordiais.

In “Uma Ânfora no Horizonte” 2009


Para os amigos do outro lado do Atlântico: 

MAGNÓLIA ATLÂNTICA
É de vida que o poeta se nutre, de poemas que vai beber 
aos rios,
por isso as suas palavras são carne, fruto, seiva, essência,
constelação brilhante, semeada entre os livros.
É de vida que o poeta se nutre, do cântico dos pássaros,
de vivências exóticas.

Do outro lado do Atlântico, há brisas doces, água de coco,
palmeiras estivais, e a vida recorta-se, em toda a sua luz,
construindo do nada a sua essência.
Na luminosidade dos dias, releio o Memorial de Aires,
e as lágrimas aguardam, pacientes, num jazigo,
entre momentos lépidos, passados entre Shelley,
Thackery, e Fidelia, qualquer coisa a lembrar Beethoven.

Gosto quando as narrativas se enredam e me enredam,
entre uma carta de alforria, uma referência a Heine,
os jacarandás, o cheiro do café,
ou uma reflexão sobre a abolição da escravatura.

É assim o Brasil; entre araras e araucárias,
também se pode ler Goethe, Fausto (o Prólogo do Céu),
nas brisas mornas, feitas de pedras soltas, limas,
jacarandás, limões de açúcar,
quando o cheiro a tinta das tipografias atravessa as praças,
as ruas, os cafés, o céu perfumado e o vasto oceano,

onde refulge o sal precioso da magnólia atlântica.

In “Uma Ânfora no Horizonte” 2009



quinta-feira, 14 de março de 2013

Lélia Coelho Frota

EMPECILHO
Dura efígie que interfere 
em seu mais ínfimo gesto
artifício negador
suprimindo amenidades
armazenadas em azul
cor de flor primaveril.

Artifício volantim
equivocando emoções
(eis a troca sub-reptícia!).
Onde era lume, o fastio
resignado dos legumes
disciplinados em horta.

Sol, que não era, mas um
florim esculpido em blau
irradiando cordura
para as gentes sem paixão
é planeta moderado
a medir luz, donativo.

Fino cicio da grama
sugerindo proporções
de amar que se harmonizassem
ao segredo da paisagem
é verde epitáfio, e talha
sob placidez nossa face
devaneio choro talhe.

Violinha sonantinho
para nosso pé dançar
é pífaro intermitente
convidando a meditar.

Minuto que atrairia
o poema, a flor arisca,
se estilhaça no tinteiro
atrasa a memória pouca:
é fascículo incompleto
o livro que esmeraríamos
limitados, pobres, tensos,
desmedidamente avaros
fixos em lenta dolência
de navio sob pilhagem
a tentar fugas na brisa
mas contido no pesado
calado de sua rota
cor, velame, referência.

É partícula de tédio
e desencontro, letreiro
de nítidos argumentos
carreando senso ao denso
panejamento de amar.
É trave, é pílula grave
que assimilamos, desgosto
mudo, severo, pausado
a afiar no coração
seu dente de interferência
madureza e abstenção.

[In: Poesia Lembrada, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1971, p. 56]

Siron Franco

quarta-feira, 13 de março de 2013

Conceição Lima

QUANDO A LUA CAIU
Quando o luar caiu e
tingiu de escuro os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.
Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites o teu nome.
Não eras.
As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.
Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no teu tempo consumido.
Georgi Petrov
As pedras crescem como ondas
no silêncio do teu corpo.
Jorram e rolam
como flores violentas.
E sangram como pássaros exaustos
no silêncio do teu corpo
onde a noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.
Súbito e transparente chegaste
quando falsos deuses subornavam o tempo,
chegaste sem aviso
para despedir o defeso e o frio,
chegaste quando a estrada se abria
como um rio,
chegaste para resgatar sem demora o principio.
Grave o silêncio agarra-se ao teu corpo,
hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo
mas já tomaste horas e caminhos
já venceste matos e abismos
já a espessura do obô resplandece em tua testa.
E não me bastam pombas dementes no teu rosto
não bastam consciências soluçante em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.
Cantarei em pranto teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre esta terra teu destino de rebelde.
Para te saudar no mar e no palma
na manhã dos cantos sem represas
saudarei a praia lisa e o pomar.
Direi teu nome e tu serás.

1986

Fonte: Jornal de Poesia

Sobre a autora

terça-feira, 12 de março de 2013

Sophia de Mello Breyner Andresen

TRANSPARÊNCIA
Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres


POEMA
A minha vida é o mar o Abril a rua 
O meu interior é uma atenção voltada para fora 
O meu viver escuta 
A frase que de coisa em coisa silabada 
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro 
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações 
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade 
Pois nenhum outro senão o mundo tenho 
Não me peçam opiniões nem entrevistas 
Não me perguntem datas nem moradas 
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente 
Cada dia preparada

[In OBRA POÉTICA,   AlfragideCaminho, 2011, pp. 524-525].

Cláudia Simões


segunda-feira, 11 de março de 2013

Maria do Rosário Pedreira

DORME, MEU AMOR
Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor -

a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos

agora e sossega a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,

meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.


DIZ-ME O TEU NOME
Diz-me o teu nome - agora, que perdi 
quase tudo, 
um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.


In Nenhum Nome Depois, 2ª. ed. Lisboa: Gótica, 2005.

Margarida Cepêda

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...