terça-feira, 30 de setembro de 2014

Paul Auster

LUZES DO NORTE
São essas as palavras
que não sobrevivem ao mundo. E dizê-las
é sumir

no mundo. Inabordável
luz
que pulsa sobre a terra, ateando
o breve milagre

do olho aberto —

e o dia que se há de abrir
como um fogo de folhas
no primeiro vento gélido
de outubro

consumindo o mundo

na fala clara
do desejo.


[Fonte: Todos os poemas, Tradução e prefácio de Caetano W. Galindo, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 147].


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Dora Ferreira da Silva

DIANA NUA
Ametista rolada em negro céu
silenciosa despenhas no convés desta vigília.
Ao teu lábio abandono o vinho rubro o mel
e o trigo da oferenda.
Corola da altura
deusa em seu trono
tímida e esquiva
embora cingindo a tiara e a branca túnica.

Tocas meu flanco
minha cintura adornas com pérolas frias
e entre tochas pervagas na alta madrugada
trânsfuga do sol exilado nas ilhas.

E as tranças desnastradas
os cabelos desatas sobre minha nudez.
num só corpo amoldadas de pureza tão fria
— rácimos gêmeos do delírio —
as taças derramamos
e os cristais mordemos
entre risos e lírios.

Quando lassas o dorso do equinóxio percorremos
enlaçadas na mesma indolência e nostalgia
o alvo velame da nudez primeira
não-engendrada e sempre fugidia
rompe a muralha da noite
rumo ao mar que principia.
(1970)

[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, p. 309]



sábado, 27 de setembro de 2014

Isabel Mendes Ferreira

O CONTO DO CANSAÇO

"Só vejo pegadas, ruínas, sepulturas, a ferrugem, o musgo e o verdete... lembranças que o Tempo deixa sobre as coisas." 
Teixeira de Pascoaes

o Fernando está longe, também eu. também a memória. também o fogo. também aquele pôr-do-sol rente aos penedos sobre o mar dos sentidos, 
estou para além da luz. concha decepada pelas tempestades de abril não sei de nenhum abrigo, o Fernando escreveu-me ontem, uma carta em branco, um título para a saudade, uma ponte no ar rasgando o futuro em nuvens de sílabas cinzentas, carregadas de renúncia.
era sábado à tarde, uma melancolia doce descia para o cais e do cais vinha o cheiro das sardinhas, das redes e dos barcos, dos homens maduros com palavrões dourados na ponta dos bigodes ruivos, entrei numa tabacaria escura onde uma viúva atiradiça vendia selos, fósforos, totobolas, rifas, livros usados, marcas de cuspo nas folhas dobradas e papel de carta.
comprei um bloco, papel azul com riscas vermelhas, uma relíquia esquecida numa prateleira suja. um sorriso de boa-tarde e saí para a rua. fui andando perdida e leve. quando o ar se tornou mais denso sentei-me num banco de jardim.

os jardins de sábado têm um gosto de paraíso perdido. como uma catedral sem paredes onde os anjos tomam banho e brincam com as pombas, e quis responder ao Fernando, àquela carta sem palavras.
mas só me lembrei da música de Stravinsky. dos poemas de Pascoaes. das tranças de Madalena, dum esqueleto branco, dum quadro de Matisse e duma cesta de maçãs sobre uma mesa de pinho, e muita gente calada.

abri o coração a Horácio. Baco. Lutero e a Sancho. doía-me o corpo de tanta palavra coincidente, eram cores demais na aquarela do meu cansaço, deixei que o tempo fosse um fantasma e esqueci-me de sentir.

um polícia intrigado talvez com a minha imobilidade. confundindo-me com uma estátua de neve assoprou-me as pálpebras, abri os olhos abertos num abismo de sombras e moinhos e vi que os seus olhos eram lilases, perguntou-me se estava bem. respondi-lhe que estava louca, e ele sorriu, e disse então boa-tarde.
eu sorri e disse então adeus d. quixote. e o papel azul continuava sem palavras, num esforço último peguei num lápis de carvão e escrevi. Fernando sinto-me tão só. e disse tudo. fechei o envelope, caixão? e um cansaço mortal invadiu-me o corpo que já sentia dormente.
enderecei-me sem remetente e quando a noite chegou veio a carrinha do lixo.

pegaram-me com ternura e assim me despedi da melancolia de sábado à tarde.

[In A mais loura de Lisboa, Lisboa: Difel, 1984, pp. 77-78]


Alejandra Pizarnik

O DESPERTAR

Senhor
A gaiola se tornou pássaro
e voou
e meu coração está louco
porque uiva para a morte
e sorri detrás do vento
para meus delírios

Que farei com o medo
Que farei com o medo

Já não dança a luz em meu sorriso
nem as estações queimam pombas em minhas idéias
Minhas mãos ficaram nuas
e foram aonde a morte
ensina os mortos a viver

Senhor
O ar me castiga o ser
Detrás do ar existem monstros
que bebem meu sangue

É o desastre
É a hora do vazio não vazio
É o instante de pôr ferrolho nos lábios
ouvir os condenados a gritar
contemplar cada um de meus nomes
enforcados no nada

Senhor
Tenho vinte anos
Também meus olhos têm vinte anos
e contudo não dizem nada

Senhor
Consumei minha vida num instante
A última inocência explodiu
Agora é o nunca jamais ou simplesmente foi

Por que não me suicido diante do espelho
e desapareço para reaparecer no mar
onde um grande barco me esperaria
com as luzes acesas?

Por que não extraio minhas veias
e faço com elas uma escada
para fugir ao outro lado da noite?

O princípio deu à luz o fim
Tudo continuará igual
Os sorrisos gastos
O interesse interessado
As gesticulações que arremedam o amor
Tudo continuará igual

Mas meus braços insistem em abraçar o mundo
Porque ainda não lhes ensinaram
que já é demasiado tarde

Senhor
Expulsa os féretros de meu sangue

Recordo minha infância
quando eu era uma anciã
As flores morriam em minhas mãos
porque a dança selvagem da alegria lhes destruía o coração
Recordo as negras manhãs de sol
quando era criança
quer dizer ontem
quer dizer faz séculos

Senhor
A gaiola se tornou pássaro
e devorou minhas esperanças

Senhor
A gaiola se tornou pássaro
Que farei com o medo

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Guillaume Apollinaire

AS JANELAS
Do vermelho ao verde todo amarelo morre
Quando cantam as araras nas florestas natais
Cavalos-de-frisa de pihis
Aves chinesas de uma asa só voando em dupla
É preciso um poema sobre isso
Enviaremos mensagem telefônica
Traumatismo gigante
Faz escorrer os olhos
Garota bonita entre jovens turinenses
O moço pobre se assoava na gravata branca
Você vai erguer a cortina
E agora veja a janela se abre
Aranhas quando as mãos teciam a luz
Beleza palidez insondáveis violetas
Tentaremos em vão ter algum descanso
Vamos começar à meia-noite
Quando se tem tempo tem-se a liberdade
Marisco Lampreia múltiplos
Sóis e o Ouriço do crepúsculo
Um velho par dc sapatos amarelos diante da janela
Tours
A Torres são as ruas
Poços / Depois
São praças lugares
Depois / Poços
Árvores ocas que abrigam alcaparras vagabundas
Os Chabinos cantam árias de morte
Às Chabinas fugitivas
E a gansa uá-uá trombeta ao norte
Onde os caçadores de roedores
Raspam as pelúcias
Faiscante diamante
Vancouver
Onde o trem branco de neve e fogos noturnos fogem do inverno
Ó Paris
Do vermelho ao verde todo jovem perece
Paris Vancouver Hyères Maintenon Nova York e as Antilhas
A janela se abre como uma laranja
O belo fruto da luz

[In 31 poetas 214 poemas, antologia de poemas com notas e comentário de Décio Pignatari, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. pp.109-110]


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Manuel Fernando Alves

Poema E
O ângulo onde a arvore baloiça
E o exacto lugar do sono a sombra
O centro do mundo e em qualquer parte
E tudo existe la fora
Por não caber cá dentro
Por isso se avista a vida a retalho
E cada momento um recomeço
E cada lembranca uma praga
O copo de água sobre a mesa
Sorvendo o futuro pela sede
De serem longos os dias
E o preco do vinho pela hora da morte

Poema D
Vou ter de forçar este poema
Deve haver uma cegueira de muita luz
E muitos poetas escrevendo ao mesmo tempo
De se entupir a mente de Deus
A palavra amor um guardachuva revirado pelo vento
Tão doce o sumo da romã
Dedilhado o fruto através da dúvida
Faltam cinco versos em forma
Engrossando folha a folha o outono da minha mente
E Dickens tem de pagar a conta do talho
Não há maneira de lá chegar sem
Esmolas da História o preso habituado as algemas

[Publicados com licença do autor]. 



terça-feira, 23 de setembro de 2014

Luiza Neto Jorge

RECANTO 2
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.

Pensemos no comércio de viver:
passagem dos navios
quando, a passar, se retém a espessa
água do tempo, da tempestade.

Um comércio, apenas — desvio da moeda
da trajectória do ouro
para o papel.

Sempre viver incluiu andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.

[In Poesia (1960-1989), 2a. edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 179]






domingo, 21 de setembro de 2014

Else Lasker-Schüler

ESTER 

Ester é esbelta como a palmeira brava,
Os pés de trigo têm o cheiro dos seus lábios,
E os dias de festa que em Judá se celebram.

De noite, o seu coração repousa sobre um salmo,
Os ídolos escutam nas salas do palácio.

O rei sorri se vai ao seu encontro —
O olhar de Deus está sempre posto em Ester.

Os judeus jovens fazem canções à irmã,
Gravam-nas nas colunas da sua antecâmara.

[In Baladas Hebraicas, tradução e apresentação de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 77].

By Francois-Leon Benouville

sábado, 20 de setembro de 2014

Jorge de Lima

37

Vinde vós das cidades para o campo
onde existe a aventura da malária.
Foi em agosto, o lago respirando
que ouvi no sangue a mais formosa ária.

E vi mais um ginete galopando
num ocaso de sangue iluminado;
era o tempo mais ouro das queimadas,
e as geórgicas se enchiam de piratas.

Deram-nos tudo: frêmitos e prata
e certo afã de lírios encarnados.
Que madura estação provisionada!

Que lagunas noturnas sobre as frontes!
Que mãos frias errando no ar parado!
Que sibilos de medos e de fontes!


[In Invenção de Orfeu, São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 88]



sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Ana Hatherly

A MATÉRIA DAS PALAVRAS

Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
                                                                        perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.


[In O Pavão Negro,  Assírio & Alvim, 2003]

SOBRE ANA HATHERLY





segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Margarita Aliger

DE PRIMAVERA EM LENINGRADO

No curso daquele longo inverno
você repetia, voz serena,
esmagando-lhe a treva de ferro:
“Resistiremos. Somos de pedra”.
Estreitava-se o anel venenoso.
O inimigo sempre mais chegado.
Podíamos vê-lo rosto a rosto,
feroz, como fazem os soldados.
Leningrado sem luz e sem água!
Rações de pão:cento e vinte gramas...
Como animal ferido o céu gane,
céu mortiço, nuvens estagnadas.
As pedras suspiram,
lajes ringem,
e a gente encontra força e vive.
Os mortos se empilham, um a um,
guerreiros numa cova comum.
Afinal cansou-se o próprio inverno.
Os turvos horizontes se abriram.
E surgem casas negras do inferno
das bombas. Mortas. Não resistiram.
E vamos nós dois passando pontes
sob a asa triunfal de maio,
você se alegrava sem dar conta
do porquê desse sentir-se gaio.
Uma nuvem mostrou-se no alto,
uma brisa esfriou-nos os lábios.
Falávamos ambos num sussurro
do tempo passado e do futuro.
Vadeamos uma longa treva,
passamos pelas balas em crivo:
Você dizia: “Somos de pedra”.
É mais do que pedra.
Estamos vivos.
1942

[Tradução de Haroldo de Campos]



















Margarita Aliger nasceu em Odessa no ano de 1915. Foi operária, bibliotecária e jornalista. Já em meados da década de 1930, fez estudos de Literatura em Moscou. Tornou-se conhecida durante a II Guerra Mundial, muito por culpa de um poema, Zoyá, sobre uma jovem estudante enforcada pelos nazis. Zoyá foi publicado em 1942. Faleceu no dia 1 de Agosto de 1992.

sábado, 13 de setembro de 2014

Keats

VENDO OS MÁRMORES DE ELGIN
PELA PRIMEIRA VEZ
Meu espírito é frágil; ser mortal
Pesa-me como sono indesejado,
E cada abismo ou penhasco escarpado
Lá, de deus, fala que terei final
Como águia enferma a contemplar o céu.
Porém é um fausto luxo o lacrimar,
Que eu, os nevados ventos a guardar,
Nâo os tenha ao abrir do amanhecer.
Essas obscuras glórias do pensar
O coração envolvem em grande arfar;
Tal obra é bela dor estonteante
Que mescla a grandeur grega com o rude
Varrer do velhoTempo — alvor avante
Um sol — a sombra dessa magnitude.

[In Grandes Poetas da Língua Inglesa do século XIX, Organização e tradução de José Lino Grünewald, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 57].






quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Konstantínos Kaváfis

EPITÁFIO DE ANTÍOCO, REI DE COMAGENA
Depois que voltou, tristíssima, de seu funeral,
a irmã daquele que viveu sóbria e afavelmente,
Antíoco, rei muito erudito de Comagena,
queria para ele um epitáfio.
E o sofista Calistrato de Éfeso que se instalava
frequentemente no pequeno estado de Comagena,
e que pela casa real
prazerosamente e repetidas vezes foi recebido como hóspede
redigiu-o, com a indicação dos artesãos sírios,
e enviou-o à velha senhora.

"Do benfeitor rei Antíoco
que se celebre dignamente, ó comagenenses, a glória.
Foi de nosso país um governante prudente.
Foi justo, sábio, valente.
Foi, além disso, o que há de melhor, helênico -
atributo mais honroso não possui a humanidade:
entre os deuses é que se encontram mais elevados".

[Poemas de K. Kaváfis, São Paulo, Ed. Odysseus, 2006, trad. de Ísis Borges da Fonseca, p. 279]. 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Ronald Polito

ENCANTAMENTO
Nem teus passos.
Nem teu peso.
Ou o hálito
como novelo. Ou
a pele feito correnteza.
E um roçar de braços.
Com a prumada do peito.
E já o rosto inteiro.
Não. Nenhuma palavra.

MAS
talvez o que
pudesse acontecer ao
menos uma vez
seria o
desmonte do horizonte
como que um adiante não
mais distante
ou algum ensejo sem desejo
e
suspensa a moenda
a contração do atropelo
o rendimento do bloqueio
somente o presente se erguesse
(como se ergue uma parede)
já então com alívio
sem perspectiva alguma

NO VERDADEIRO CAMINHO
Voar sem trilhos.
Apalpar através dos véus, dos vidros.
Prender-se à superfície do mundo
desprovido de dedos, dentes, cabelos.
Andar até não conseguir chegar.
Construir um abrigo em labirinto.
Insistir no método difícil da ignorância.

UM DEUS
dê-me um minuto
um cajado
um rosto
rotinas para retinas já
então fustigadas
uma cama um dorso
dê-me uma foice
o último terremoto
um touro
o protonauta de neverland
dê-me um sopro

[In Revista Cult, n. 194, ano 17, setembro 2014, p. 13]

SOBRE RONALD POLITO

Photo by JOHN CAVACAS

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Antonio Tabucchi

EXCERTO DE TRISTANO MORRE
A propósito de elefantes, de todos os rituais fúnebres que as criaturas deste mundo excogitaram, sempre admirei o dos elefantes, que têm uma estranha forma de morrer, sabia? Quando um elefante sente que chegou a sua hora afasta-se da manada, mas não o faz sozinho, escolhe um companheiro que vá com ele, e partem. Avançam pela savana, muitas vezes trotando, depende da urgência do moribundo... e caminham, caminham, podem fazer quilômetros e quilômetros, até o moribundo decidir que é ali que ele quer morrer, então dá algumas voltas e traça um círculo, porque sabe que chegou a hora de morrer, leva a morte dentro de si, mas tem de colocá-la no espaço, como se se tratasse de um encontro, como se quisesse olhar a morte de frente, fora dele, e lhe dissesse bom-dia, senhora morte, cheguei... trata-se de um círculo imaginário,naturalmente, mas precisa dele para geografizar a morte, por assim dizer... e só ele pode entrar naquele círculo, porque a morte é um assunto privado, muito privado, e ninguém pode entrar lá senão quem está morrendo... nesse ponto pede ao companheiro que o deixe, adeus e muito obrigado, e o outro regressa à manada... Li Pascal quando era novo, e gostava, nesse tempo, especialmente pelo seu jansenismo, tudo aquilo era ou branco ou preto, tudo muito reconhecível, você há de perceber que naquele momento a vida era em preto e branco, lá na serra, escolhas precisas tinham que ser feitas, ou com uns ou com outros, ou preto ou branco, até a vida se encarregar de introduzir o claro-escuro... Seja como for, sempre gostei daquela definição de Pascal, uma esfera cujo centro está em toda parte e a circunferência em lado nenhum, lembra-me os elefantes... E de certa maneira isto tem a ver com aquilo de que o encarreguei... como lhe disse há pouco, você vai precisar de paciência, porque a minha hora ainda está para chegar, mas foi por isso que você acedeu de imediato a vir trotar comigo, para acompanhar o moribundo... Só eu conheço o meu círculo, sei quando há de chegar o momento, é certo que quem nos escolhe é a hora, mas também é certo que se tem de concordar que ela nos escolha, a decisão é dela, mas no fundo também tem de ser nossa, como se fosse nossa a escolha e nos limitássemos a capitular frente a ela... Por enquanto vamos trotando juntos, aparentemente seguimos em frente, embora na realidade estejamos recuando, porque eu sou um elefante que o chamou para recuar, mas recuo para chegar ao meu círculo, que fica à minha frente.Você entretanto ouve e escreve, quando chegar a hora da despedida eu digo.

[In Tristano morre, Rio de Janeiro: Rocco, 2007, pp. 8-9]

By SEBASTIÃO SALGADO

domingo, 7 de setembro de 2014

Mariana Ianelli

HISTÓRIA DE UM CORAÇÃO REABILITADO
Um dia a casa desaba, é a gota ácida de uma desilusão pequena a que faltava para o oco da imensa desilusão de tudo, é uma vontade de descriar o mundo, de enxotar as palavras que fazem contar histórias, é a solução final de desprezar essas histórias, de matar por esquecimento, pouco a pouco, e, pouco a pouco, as coisas vão ficando menos graves, menos sólidas, as palavras muito frágeis, apagadas, sem memória, mas, mesmo com toda a vontade, com todo aquele imenso oco, ainda assim não é tão fácil, produzir cacos e restos também requer muito trabalho, todo um esforço de força bruta aplicada, todo um labor de fogo, e quanto mais a casa desaba, quanto mais cacos e restos, mais a vontade se energiza, é como drenar o calor das coisas numa explosão magnífica, é um louco glorioso o mentor desse desperdício, criador de escombros, fautor de uma noite infinita, coração desarvorado, um coração em seu limbo, até que um dia, um dia alguém olha a roseira seca no meio de um monte de mato e resolve que ela vai rebrotar, porque, agora sim, está disposto a cuidar de um jardim, mais que disposto, tentado, desafiado a ver se quando rebrota uma rosa vem a vontade de um jasmim, e se é só rebentar o cheiro doce que elas também vêm, as abelhas, essas que andam desaparecidas, as abelhas, as libélulas e as borboletas suicidas de Vinicius, e ver se depois disso tudo a vontade rebenta também, vira corpo de afeto, prazer de cuidar, de dizer e se ouvir dizendo palavras mal despertas, de finas, finíssimas raízes, palavras que um dia se dão ao excesso de estar vivas – lágrimas da aurora, moradas, amor, primícias.

Fonte: vidabreve.com/

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Jorge de Lima

32
No profundo das coisas materiais,
há um roteiro de dança mais severo
que o bailado do vento entre enforcados,
principalmente quando as feiras findam,
e os derradeiros bêbedos proferem
palavras agoniadas, (os sapientes!)
uns cochilos de cova, uns salmos miados;
é o roteiro da cana. Ei-la que os sua
e os adormece com (entre os suores)
os suores de seiva mais vinagres;
pois a cana são gomos, mesmo bares
com ruídos de língua, tragos fundos,
e uma só folha como espada verde
cobrindo pazes, ventres e barricas
e alambiques, bochechas e garrafas.

Falo de canaviais que com seus bêbedos
são canículas sobre os poentos morros;
falo de canas, falo de seus homens,
seus dançarinos, dançam, dançam
e acometem os bois; desconjuntados
diluem-se nas águas, águas lentas,
e escondem-se nos lodos esfiapados.
Todavia, as polícias entram n’água
com punhais de caianas e golpeiam
(dançarinos!) os peitos encharcados.

E todavia acorrem escafandros
tão fofos como bolhas, câmaras lentas,
algodões de botica, bojos de óleo,
e empolam-se nas bicas de oxigênio
cobertos por placentas maternais.

Surgem as mães ciumentas, cuidadosas,
pés ante pés bailando, triplicadas,
acariciando os seus embriões borrachos.
E todavia acorrem as rameiras
que aparecem lavadas de pecados,
e soerguendo as saias encarnadas
mostram dançando peixes devassados.
E todavia acorrem guarda-chuvas
enfunando defuntos embriagados,
vêm revestidos de bagaços brancos
das canas ósseas dos canaviais.
Todavia há soluços nas moendas:
é o roteiro da cana e seu delírio,
e umas visões de bichos e demônios;
é o motivo da cana pelo mundo.
Ó demências, ó mortes, ó bailados!

33
Tu queres ilha: despe-te das coisas,
das excrescências, tira de teus olhos >
as vidraças e os véus, sapatos de
teus pés, e roupas, calos, botões e
também as faces que se colam à
tua, e os braços alheios que te abraçam
e os pés que querem ir por ti, e as moças
que querem te esposar, e os ais (não ouças!)
que querem te carpir, e os cantos que
querem te consolar, e tantos guias
que querem te perder, e as ventanias
que não dormem, que batem alta noite,
tristes, em tua porta, se ressonas
pois nem o vento, nada te abandona.

[In Invenção de Orfeu, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 77-79]

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ana Luísa Amaral

ENCENAÇÕES E QUASE VOOS

Uma luz construída
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça

São quatro santos no cimo
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios

Talvez não sejam santos,
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado

Apóstolos ou santos,
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas

Fingindo-se de mão a abençoar,
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio

E os caracóis solenes e sombrios
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:

Eu não poder,
em pedra,

abrir as asas

Fernando Paixão

  Os berros das ovelhas  de tão articulados quebram os motivos.   Um lençol de silêncio  cobre a tudo  e todos. Passam os homens velho...