terça-feira, 27 de outubro de 2015

Ángelos Sikelianós

SAUDAÇÃO A NIKOS KAZANTZAKIS

Meu amigo e eu na Montanha Santa, pelas ladeiras eternas, sós ao amanhecer enquanto se desfaziam pela primeira luz as belezas que a chuva espalhou.

Respirando profundamente víamos até lá embaixo onde brilhava oculto, pálido, o largo mar, e nossa mente, como a poderosa copa do pinheiro

se regozijava na completa calma, na bendita fragrância do monte, e pelo frescor que sentíamos até o interior de nosso jovem coração ressuscitado...

Nas testas, nas mãos, sobre todos os nossos membros, brilhava serenamente a sossegada força que conheceu o mel da criação, e voltando de novo ao passar por onde se sorveu,  ou se amamentou em tudo a alegria mística, fazia-nos elevar os braços como se fossem asas
em direção a  um inefável culto...

Magna graça sobre ele ia derramando o robusto
e irrigador manancial da solidão, e insone em seus olhos negros uma alma pensante

se alegrava, sagrada e amplamente, de abraçar de dia os céus ocultos, e como uma fonte em sua fundura de abraçar em segredo a formosa maturidade da mente...

Alto e silencioso nos rodeava como um ciclópico muro; e de repente, sossegada, tal como água fluente, quando sem cessar chega um sussurro,

A voz de meu amigo soou em meus ouvidos: “Irmão, bendita seja a hora em que tomei a trilha,
a odorífica trilha que se afasta do povoado, e te encontrei tal asceta

debaixo daquele pinheiro, gozando o místico festim da mente, e ali, já juntos,
repartimos como  pão
a alegria do céu cheio de estrelas...


10 de outubro de 1921



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Javier Iglesias

A QUEBRADA ONDA
Para Aylan Kurdi

Esta chuva que cala a memória
não apaga a aleivosia da noite
nem o naufrágio de inocentes
em um mar ausente de manhãs.

Como justificar a inclemência divina,
o ódio contra as religiões
se o sol amanhece em Roma
sem esquecer-se do deserto.

Hoje minha raiva é contra todos
me falta a fé de Jó
os filhos que perdeu
em outra bíblica tempestade.

Em minhas veias não corre futuro
meu sobrenome se afogará numa beira de mar
longe das câmeras
mas me sobram forças para gritar
quando o mundo morre numa praia.

Não me falem de fronteiras
Menos ainda da civilizada Europa
velha puta que esqueceu seu passado.

Fracassou a humanidade

E também é minha culpa.



LA ROTA OLA 
Para Aylan Kurdi

Esta lluvia que cala la memoria
no apaga la alevosía de la noche
ni el naufragio de inocentes
en un mar ausento de mañanas.

Cómo justificar la inclemencia divina,
el odio contra las religiones
si el sol amanece en Roma 
sin olvidarse del desierto.

Hoy mi rabia es contra todos
me falta la fe de Job
los hijos que perdió 
en otra bíblica tempestad.

En mis venas no corre futuro
mi apellido se ahogará en una orilla 
lejos de las cámaras
pero me sobran fuerzas para gritar 
cuando el mundo muere en una playa.

No me hablen de fronteras
menos aún de la civilizada Europa 
vieja puta que olvido su pasado.

Ha fracaso la humanidad 
y también es mi culpa.

sábado, 24 de outubro de 2015

Eugénio de Andrade

ANIMAL DE PALAVRAS

Ele procurava palavras, as mãos tacteando na noite, ávidas ainda. A luz era débil, roubada ao sono. Chamava-as pelo nome, mas elas não vinham, voltava a chamar. Era o que lhe doía, aquele abandono. Com amor lhes queria, longamente sonhava com as faces do seu corpo fino, luzindo no escuro: essas folhas de aço, prontas a ferir. Navalhas, animais de funduras. Agora não respondiam, mesmo que gritasse. Era uma criança espancada, sem elas, um homem amargo, tocado pelo verde da lepra. Para não morrer precisava desse sol a prumo, dessas águas de seda. Estendidas. Sobre as ervas de junho.

INSÓNIA

Apaguei outra vez a lâmpada, procurei agarrar os fios do sono, mas o que se aproximou foi um camponês muito jovem, que atravessou a noite para saber o que é que me doía.
O meu nome é Guérassim.
Devia responder-lhe que o conhecia bem, mas limitei-me a perguntar-lhe porque deixara a casa de Ivan Ilich.
Agora és tu que precisas de mim. Que é que tens?
O meu mal é sem remédio. O que eu queria era água, água. Água de quatro rios, sobre a garganta. Para adormecer. Com o sol na boca.

[In Poesia e Prosa [1940-1979], vol II, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1980, pp. 194-195]


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Anne Sexton

Há mil portas atrás
quando eu era uma miúda solitária
numa casa grande com quatro
garagens e era verão
desde sempre,
da noite deitada na relva,
com os trevos a enrugarem-se por cima de mim
as estrelas sábias deitadas sobre mim,
a janela da minha mãe um funil
de calor amarelo a escorrer
a janela do meu pai, meia fechada,
um olho onde adormecidos passavam,
e as tábuas da casa
eram macias e brancas como a cera
e provavelmente um milhão de folhas
velejavam nos seus caules estranhos
enquanto os grilos faziam tiquetaque em uníssono
e eu, no meu corpo recém estreado,
que ainda não era o de uma mulher,
dizia às estrelas as minhas perguntas
e pensava que Deus poderia mesmo ver
o calor e a luz pintada,
cotovelos, joelhos, sonhos, boa noite.

- Tradução de Maria Sousa

SOBRE ANNE SEXTON

By Peter Herzog

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Yu Xuanji

PARA OS SALGUEIROS JUNTO AO RIO
Vultos em jade às margens devolutas
à névoa assombram pavilhões distantes
Reflexos deitam-se no rio do outono
e flores descem sobre os pescadores
Peixes ocultam-se às raízes densas
enlaçam os ramos barcos visitantes
Respiração da noite, a chuva e o vento
ecoam tristes sonhos revolutos

PARA FEIGINQ
Grilos cricrilam nos degraus de pedra
Orvalho novo recobre os arbustos
Bem perto à luz do luar soa música
Montanhas: sombras, do terraço, ao longe
Vem brisa fresca deitar-se na esteira
Jade frio corta entre as notas à cítara
Preguiça tens de escrever, Mestre Ji!
Nenhum consolo terei neste outono

VENDENDO PEÔNIAS MURCHAS
O rosto ao vento, a suspirar, pétalas caem
e vai-se outra primavera em seus odores
Hoje ninguém as quer corqprar, dizem-nas caras
Intenso, afasta as borboletas, seu aroma
Pétalas rubras, só crescessem em palácios
Folhas de jade, vão tingir-se ao pó da estrada?
Antes se transplantarem a imperiais vergéis
e as colheriam belos jovens em cortejo

CARTA A LI ZI' AN, OLHANDO A DISTÂNCIA DESDE JIUNLING
Folhas de bordo, milhares, ramo após ramo
no rio, às pontes. Poente, e os barcos não chegam.
Flui dia e noite, Senhor, o rio: meu desejo
oeste a leste não para, nem um descanso.

O QUARTO SOLITÁRIO
Choro, recolhe-se o sol: só ervas nas mãos1
Ouço: à casa vizinha o marido retorna
Dias atrás os cisnes perderam-se ao norte
Hoje nos chegam os gansos, estes viajantes

Vem primavera, antes outono e somente
resta a saudade, não há notícia, nem carta
Melhor cerrar a porta, por que se ocupar
bater as roupas, juntá-las? Há mais ninguém

INÍCIO DE OUTONO
Brilham os novos botões de crisântemo
Ao poente a névoa oculta as montanhas
No verde às árvores um vento frio
nas cordas ressoa uma canção límpida
Mulheres: a espera junto ao tear
Aos homens, a marcha além da   Muralha
As aves no céu; aos peixes, o rio
Ficam as cartas a meio caminho

PARA GUO XIANG
Manhã à noite, beber e cantar
Esta saudade vem com a primavera
À chuva foi-se o mensageiro, a carta
Junto à janela ficou sofrimento
Veem-se entre as contas da cortina os montes
Dores recordam-se ao odor da grama
E àquela festa finda, à despedida,
quanta poeira desabou dos caibros

SOBRE YU XUANJI

[In Poesia Completa de Yu Xuanji, tradução, organização, apresentação e notas Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, Unesp, São Paulo, 2011, pp. 31-45]


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Pablo Neruda

19
Do incomunicado,
do ignorante hostil que eu sempre fui
desde antes de nascer, entre o orgulho
e o terror de viver sem ser amado,
passei a dar a mão a todo mundo
e me deixei telefonar sem frêmitos
a princípio, aceitando,
uma voz, um conselho pelo fio,
uma metálica comunicação
até que me afastei de mim eu mesmo
e levantando como diante de um revólver
os braços, me entreguei
às degradações do telefone.
Eu que fui com tato singular
me afastando de claros escritórios,
de ofensivos palácios industriais
só de fitar um aparelho negro
que mesmo silencioso me insultava,
eu, poeta torpe como um pato na terra,
fui me corrompendo até conceder
minha orelha superior (que consagrei
com inocência a pássaros e música)
a uma prostituição de cada dia,
conectando ao ouvido o inimigo
que foi se apoderando do meu ser.
Passei a ser telefinho, telefonino,
telefante sagrado,
me prosternava quando a espantosa
campainha do déspota pedia
minha atenção, minha orelhas e meu sangue,
quando uma voz equivocadamente
perguntava por técnico ou putas,
ou era um parente que eu detestava
uma tia esquecida, inaceitável,
um Prêmio Nacional alcoólatra
que a todo custo queria pegar-me
ou uma atriz tão azul e açucarada
que queria violar-me, seduzir-me
usando um telefone cor-de-rosa.
Mudei de roupa, de costumes,
sou só orelhas,
vivo tremendo de que não me chamem
ou de que me chamem os idiotas,
minha ansiedade resistiu a remédios,
doutores, sacerdotes, estadistas,
vou talvez me transformando em telefone,
em instrumento negro e abominável
pelo qual comuniquem os outros
o desprezo que me consagrarão
quando eu já não sirva para nada
ou seja, para que falem
as vespas por intermédio do meu corpo

[In Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos, tradução de Alexei Bueno, edição, introdução e notas Darío Oses, prólogo Pere Gimferrer, 1a. edição, José Olympio: Rio de Janeiro, 2015, pp. 115-119]

Jordi Feliu

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Abgar Renault

SEMI-INTERNATO
A Pedro Nava

Bonde cor de sono das minhas manhãs de colégio triste.
Enevoado bonde abrindo a friagem e o silêncio dos bairros
[estremunhados.
(De onde vinha misteriosamente, arrastando os começos do
[dia,
o bonde madrugador, carregado de junho,
com seu motorneiro de bigodes pardos, suas cortinas de
[vento, seus balaústres de gelo?)
Dor de sentir a manhã entrando debaixo das cobertas,
e ter de sair correndo para pegar o bonde das seis
(e sair sem correr para não pegar o bonde das seis).
Ir às seis, voltar às seis, ser triste como a tarde às seis da
[tarde.
Hoje não vou porque estou com dor de dente.
Como é que hei de ir hoje com esta roupa?
Não sei a lição e hoje não vou.
Não vou porque também a comida é muito ruim.
E ia hoje sem roupa no bonde das seis.
E ia hoje sem lição no bonde das seis.
E ia hoje sem dor de dente no bonde das seis.
Ia ficar com fome o dia inteiro — e partir no bonde das seis,
para só voltar às seis com o meu sono e a minha tarde
[precoce.
Assíduo e inocente, eu fugia das aulas e do almoço
e meditava o Parque Municipal contemplando os gramados
[e as pontes
(dor misteriosa de ver as águas fluindo sob a indiferença
[das pontes paradas)
e vadiava com meus sonhos vagarosos pelas ruas desabitadas
[e infinitas,
em busca dos doceiros que aceitavam coupons de bonde
[como dinheiro.
(Gratuidade da vida simples em que passagens de bonde
[compravam doces!
Ó antiguidade sem ônibus! Ó cinco automóveis na Avenida
[Afonso Penna,
que eu conversava, acariciava e de olhos fechados conduzia!
Ó Distribuidora de Eletricidade! Ó frack do Dr. Carvalho
[Brito!
Ó Cinema Familiar do Poni na Rua da Bahia sem nunca
[matinée!)
Era ali na Avenida João Pinheiro, esquina de Timbiras,
que eu devia residir das seis e meia às seis da tarde,
e era dali que eu fugia nas águas de barcarola do Parque,
[com Nick Cárter e os primeiros punhais de mulher.
Era lá que eu sonhava nunca estar e ser feliz,
e era dentro das paredes grossas que sem olhos, nem ouvidos
[revivia as horas de pagode em casa
e pensava gravemente no olhar de sombras dos olhos lon-
[gínquos de minha mãe.
Não aprendi o francês de Halbout, nem história sagrada,
[nem análise.
Viajava de bonde triste no ar desmaiado da manhã
e em cima da voz do professor ia desenhando jardins assírios,
[crimes, pistas e seminudezes.
Foi outrora. É outrora. Outrora é ali naquela esquina de
[Timbiras
onde estou ainda parado sem querer entrar para não chorar
[perdidos pêndulos;
é o meu olhar de hoje quando translê submersas ruas;
são as minhas calças curtas, as queijadinhas de medievais
[doceiros,
a minha boca temerosa perguntando: "O senhor aceita
[coupon?”;
é um bonde pálido, sujo da madrugada de amarelos arra-
[baldes,
levando para a prisão, às seis horas frias da manhã, o sono
[dos onze anos.

[In A outra face da lua, Rio de Janeiro: José Olímpio/INL, 1983, pp. 121-122]




segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Elizabeth Bishop

GALOS
Quatro horas. De repente,
no azul metálico da noite, a gente
ouve o primeiro galo dar um grito estridente

bem junto ao muro
do mesmo tom azul-escuro,
e logo vem um eco, seco e duro,

de algum lugar distante,
e outro, da cerca logo adiante,
e mais outro, horrendo e claudicante

qual fósforo molhado,
na horta, bem aqui ao lado,
acende, e incendeia toda a cidade.

Notas ferinas
vêm da porta da latrina
e do galinheiro coberto de titica,

e, sempre admirados
pelas esposas excitadas,
os galos testam os esporões afiados,

fixam o o olhar parvo,
escancaram o bico ávido
e soltam o velho grito irrefreável.

Estufam o peito
amedalhado de penas, feito
para dar ordens e espalhar o medo

entre as bobinhas
cortejadas com louvaminhas
e depois desprezadas como galinhas;

das gargantas nuas
espalha-se uma ordem absurda
pela cidade inteira. Um galo nos perturba

em nossos quartos,
lá de um galpão enferrujado
ou de uma cerca feita de velhos estrados,

ou do telhado cinzento
de uma igraja, duplo vivente
do galo de metal do cata-vento,

galos oriundos
dos becos mais imundos
traçando verdadeiros mapas-múndi:

alfinetes vivos
de vidro colorido,
azuis, verdes, laranja, decididos

a proclamar
alto e bom som, e sem parar,
a quem os ouça: "Aqui é o meu lugar!".

Sempre gritando:
"Chega de sonhos! Todos levantando!".
Galos, o que vocês estão projetando?

Na Antigüidade
vocês já combatiam à saciedade
quando ofertados a alguma divindade,

e eram tidos
por "muito aguerridos..."
Com que direito agridem nossos ouvidos

com ordens feras
e nos despertam nesta terra
de amor malquisto, arrogância e guerra?

A coroa feia
na cabecinha altaneira
é vermelha de sangue de guerreiro.

Essa excrescência
soma-se à viril eloquência
de beleza vulgar da iridescência.

Em pleno ar,
aos pares, começam a se atracar.
Eis a primeira pena a voar.

Um, moribundo,
ainda briga, furibundo,
disposto a enfrentar sozinho o mundo.

Outro jaz na calçada,
porém suas penas arrancadas
continuam caindo, ensanguentadas;

seu canto tremendo
já afundou no esquecimento.
Seu corpo se mistura ao excremento,

os olhos duros
abertos, as penas já escuras.
Suas esposas jazem no mesmo monturo.

Maria Madalena
pecou com a carne apenas,
o que, afinal, é falta bem pequena

se comparada
com a de Pedro, cujo pecado
foi do espírito, ali "entre os guardas".

Numa escultura antiga
a cena inteira é resumida:
Cristo olha, como quem não acredita,

para Pedro,
que leva aos lábios um dedo,
petrificado de espanto e de medo.

Mas no intervalo
entre os dois homens sem fala,
talhado numa coluna, vê-se um galo,

e, como lembrete,
a inscrição gallus canit; flet
Petrus. Porém o episódio promete

esperança: Pedro chora,
e suas lágrimas escorrem
galo abaixo, e perlam suas esporas.

Lavado em pranto, qual
uma relíquia medieval,
ele espera. Pedro, coitado, mal

sonha que esses tão
temidos cocorocós hão
de tornar-se um dos emblemas do perdão,

um cata-vento
no alto de cada templo,
e que diante do Latrão haverá sempre

sobre um pilar
um galo de bronze, a lembrar
ao papa e a quem por lá possa passar

que até a fraqueza
do primeiro príncipe da Igreja
foi perdoada, e para que finalmente veja

mesmo o mais cego
que "cocorocó" tem outro emprego
além do simples "eu nego, nego, e nego".

E quando
o dia vem raiando,
uma luz aos poucos vai dourando

na diagonal
os brócolis no quintal -
como que a noite terminou tão mal? -

e além das folhinhas,
doura o ventre das andorinhas
e as nuvens que traçam, retilíneas,

o dia em seu papel.
Já os galos calaram o escarcéu.
E, "para ver o fim", surge no céu

o sol renascido,
fiel como um inimigo
ou como (dá no mesmo) um amigo.

[In Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop, Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 129-137]




quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Níkos Gkátsos

DE AMORGÓS

I

(...) Por isso eu quero, meus bravos rapazes, que com
vinho, beijos e folhas em vossas bocas,
Andeis nus pela beira dos rios
A cantar a Barbaria assim como o lenhador procura as
aroeiras
Assim como a víbora se esgueira nos campos de cevada
Com seus altivos olhos irritados
Assim como os relâmpagos açoitam a juventude.
E não rias não chores não te alegres
Não apertes sem razão os teus sapatos como se fosses
plantar plátanos
Não te faças de DESTINO
Porque a águia dourada não é gaveta com chave
Não é lágrima de ameixeira nem sorriso de nenúfar
Ou colete de pombo ou bandolim de Sultão
Ou traje de seda para a cabeça da baleia
É serrote marinho que despedaça as gaivotas
É travesseiro de carapina relógio de mendigo
É fogo de ferreiro a zombar das mulheres dos padres e
a acalentar os lírios
É casamento de turcos festival de australianos
E covil de húngaros
Onde no outono as aveleiras vão secretamente se encontrar
Ali vêem as sábias cegonhas colorir seus ovos

E então choram também
Queimam as roupas de dormir vestem anáguas de pata
Espalham astros no chão para os reis pisarem
Com seus amuletos de prata sua coroa e púrpura
Esparzem alecrim sobre os canteiros
Pelos quais os ratos passam quando vão a outro celeiro-
a outras igrejas roer o Santo Altar
E as corujas, meus meninos, as corujas
Estão uivando
E as freiras mortas se erguendo para a dança
Ao som de tamboris pífanos violinos alaúdes tímbales
Com incensórios e flâmulas, com ervas e com véus
Com as ceroulas da ursa no vale enregelado
Devoram os fungos das martas
Jogam cara ou coroa com o anel de São João e os florins
do Mouro
Escarnecem das bruxas
Cortam as barbas de um padre com o iatagã de
Kolokotrónis
Banham-se no vapor do incenso
E depois, cantando lentos salmos, entram terra adentro
e calam-se
Como se calam as ondas como se cala de manhã o cuco
e a lâmpada de noite.

II

(...) Atirai fora os mortos disse Heráclito e vereis o céu
tornar-se pálido
E vereis na lama dois pequenos ciclamens desfolhando-se
E ele próprio se pôs a beijar seu corpo morto dentro da
terra hospitaleira
Como o lobo desce das florestas para ver o cão morto
e pranteá-lo.
Que me importa a gota rebrilhando em tua fronte?
Sei que o raio escreveu seu nome nos teus lábios
Sei que dentro dos teus olhos uma águia fez o ninho
Mas aqui, na úmida ribanceira, existe um único caminho
Um caminho ilusório mas que cumpre atravessar
Tens de empapar-te de sangue antes de o tempo te alcançar
E de chegar ao outro lado para encontrar os companheiros
Flores corças pássaros
Achar um outro mar outra ternura
Tomar a rédea dos corcéis de Aquiles
Em vez de ficares aqui sentado mudo a censurar o rio
A lapidar o rio como a mãe de Kítso.
Pois tu também te perdeste e tua beleza emurcheceu
Nos ramos de um salgueiro vejo secando tua camisa de
infância
Usa a bandeira da vida para sudário da morte
Que o teu coração jamais se dobre
Que tuas lágrimas não corram por esta terra inexorável
Como corriam outrora por ermos enregelados as lágrimas
do pinguim
De nada adianta a queixa
Por toda parte a vida será igual à flauta das serpentes
no país dos fantasmas
À canção dos bandidos em florestas de aromas
Ao punhal de uma ânsia nas faces da esperança
À dor de uma primavera no íntimo da alvéola
Basta encontrar um só arado e uma foice afiada em mão
de júbilo
Basta que floresça
Um pouco de trigo para a festa um pouco de vinho para
a lembrança um pouco d’água para o pó...

IV

(...) Em algum lugar há uma pedra imortal onde um anjo
humano de passagem escreveu seu nome e uma canção
que ninguém ainda conhece nem a mais doida das crianças
nem o mais sábio rouxinol. Ela está guardada agora numa
caverna do Monte Dévi em meio às grutas e alcantis da
terra de meu pai mas quando esta canção angélica irromper
um dia e se chocar contra a ruína e o tempo há de parar
a chuva de repente a lama vai secar e a neve derreter
nos montes o vento trinará as andorinhas vão ressuscitar
os salgueiros hão de estremecer e os homens com seus
olhos frios e rostos pálidos ao escutarem os sinos tocando
por si mesmos nos gretados campanários acharão chapéus
de festa para a cabeça e laços vistosos para os sapatos.
Porque ninguém então vai mais zombar o sangue dos ria-
chos transbordará os animais romperão as suas bridas nas
manjedouras o feno reverdecerá nos estábulos frescas pa-
poulas e anémonas brotarão sobre os telhados e em todas
as encruzilhadas se acenderão rubras fogueiras à meia-
noite. Então devagarinho virão as moças assustadas para
lançar ao fogo suas últimas peças de roupa e de todo nuas
dançar à sua volta exatamente como quando nós também
éramos jovens e uma janela se abrirá de madrugada nos
seus seios para que ali floresça um cravo incendiado. (...)

[In Poesia Moderna da Grécia, seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Rio, Ed. Guanabara, 1986, pp. 274-277]



terça-feira, 6 de outubro de 2015

Percy Shelley

EPIPSYCHIDION

Anjo celeste, tu, excessivamente belo para seres humano,
ocultando sob uma forma luminosa de Mulher
tudo aquilo que é em ti insustentável
vindo do amor, da imortalidade e da luz!
Suave bênção para os que foram amaldiçoados!
Velado esplendor sobre este universo sombrio!
Tu, lua além das nuvens! Tu, forma viva
entre os mortos! Tu, estrela sobre as tempestades!
Maravilha, e beleza, e terror! Tu,
harmonia da arte que anima a natureza! Tu, espelho
onde, como no esplendor do Sol,
todas as formas aparecem gloriosas ao teu olhar!
Sim, mesmo nas obscuras palavras que te escondem
agora, brilha um relâmpago desconhecido.
Peço-te: vem apagar deste triste poema
tudo o que nele é erro e só mortalidade.



Esposa! irmã! anjo! guia dum Destino
cujo curso ignora as estrelas! Tu, que eu amei
tão tarde, para seres demasiado cedo adorada
por mim — que só nos campos da Imortalidade
devia o meu espírito ter-te venerado,
divina presença num lugar divino,
ou acompanhar-te, fielmente, sobre esta terra,
sombra do teu ser, desde a sua origem.
Mas não como sucede agora, amor, se já pressinto
que se fecharam as fontes do meu próprio coração
com o fim de se manterem puras e brilhantes as suas ondas
para ti, porque nessas lágrimas encontras a alegria.
Não somos, tu e eu, como notas de música
que existem umas para as outras, embora tão diferentes,
— diferença sem dissonância, capaz de gerar
aqueles sons tão suaves, que fazem vibrar as almas
como folhas, ao estremecerem sob a mesma brisa?

Tua sabedoria fala em mim, e ordena-me que ilumine
os escolhos onde se destroçam os grandes corações:
nunca, nunca me senti preso a essa seita poderosa
que julga que cada um devia escolher
entre a multidão só uma amante ou um amigo,
e tudo o resto, apesar da beleza e da sabedoria,
seriam votados a um frio esquecimento, pois assim o decide
a nossa moral, e que seja essa a penosa estrada
atravessada pelos cansados passos dos tão pobres escravos
que seguem, entre os mortos, a caminho do seu lar
pela larga, ampla vereda do mundo, e assim
presos a um só companheiro — inimigo e com ciúmes talvez—,
fazem a mais triste e longa das viagens.

À argila e ao ouro não se compara o verdadeiro Amor,
porque dividi-lo não é torná-lo menos poderoso.
O Amor é como o entendimento, que se torna brilhante
ao contemplar múltiplas verdades; é como a tua luz,
Imaginação!, que desde a terra e o céu,
e das profundidades da fantasia humana,
igual a mil prismas e espelhos, enche
o universo de gloriosos raios, e destrói
o erro, esse verme, com as inúmeras setas solares
da própria luz que reverbera: ah! como são estreitos
o coração que ama, o cérebro que contempla,
a vida que se consome, o espírito que gera
um único ser, uma só forma, e assim edifica
um sepulcro para toda a sua eternidade.



Existia um Ser que o meu espírito
tantas vezes encontrava, lá no alto, entre os sonhos
ao despontar a manhã clara e dourada da juventude;
sobre as ilhas encantadas, com luminosas clareiras
entre montanhas maravilhosas, e as cavernas
do sono divino; sobre a ondulação aérea
de sonhos cheios de prodígio, cujo oscilante chão
suportava os seus ligeiros passos, e numa margem
imaginada sob a pálida falésia de qualquer promontório,
— esse Ser vinha ao meu encontro, vestido de tal esplendor
que se tornava para mim invisível. Com a solidão,
a sua voz veio até mim dos bosques sussurrantes,
chegou com o canto das fontes, com o profundo aroma
das flores, como se os próprios lábios do sonho
murmurassem os suaves beijos que as adormeceram
e, na atmosfera enamorada, apenas falassem do seu nome;
chegou com o maior ou menor rumor das brisas,
com as chuvas que caem de todas as nuvens,
com a harmonia dos pássaros do estio,
com todos os sons, e o silêncio. Nas palavras
de poemas antigos e de lendas — na sua forma,
sonoridade, cor —, em tudo o que pacifica aquela Tempestade
que sufoca o passado com o presente destruído,
nesta suprema filosofia, cujos indícios
são o destino que conduz a nossa dolorosa vida
a um glorioso, ardente martírio,
ficava o seu espírito, a harmonia da verdade.

Erguia-me das cavernas onde sonhava a minha juventude
e encaminhava-me, com sandálias de fogo,
em direcção ao astro do meu único desejo,
voava perturbado como uma falena, cujo movimento
é igual a uma folha morta numa luz crepuscular
quando vai procurar junto de Vésper
uma morte luminosa, um radioso sepulcro,
como se fosse a lâmpada duma chama terrestre.



Enfim, numa floresta obscura, chegou essa Visão
que eu perseguira através do sofrimento e da vergonha.
Através dos ermos invernosos e cheios de espinhos
emanava dos seus gestos um matutino esplendor,
e da sua presença a vida estendia,
sobre a terra desolada, os ramos nus e mortos;
estava o sou caminho atapetado e coberto
de flores tão amenas como o amor nascente;

e a música que vinha da respiração expandia-se
como a luz—porque eram todos os sons penetrados
pelo débil, tranquilo, suave espírito desse som;
os ventos agrestes apaziguavam-se à sua volta;
perfumes ardentes e puros desciam já pelos cabelos
e dissolviam o frio entorpecedor na atmosfera gelada.
Doce como uma encarnação do Sol, quando a sua luz
se transforma em amor, essa Aparição
deslizou até à caverna onde eu repousava,
chamando a minha alma, e a argila dos sonhos
foi erguida pelo que na Terra sonhava,
como o fumo vindo do fogo, e entre o brilho da sua beleza
permaneci e senti que a aurora da minha longa noite
acabava por me inundar com uma viva luz:
sabia que era a Visão que procurara sempre
durante tantos anos—sim, que encontrara Emília...



Emília,
um barco flutua agora no porto,
o vento paira sobre o cume das montanhas;
fica um sulco sobre a superfície azul do mar,
mas nenhuma quilha o atravessou ainda;
imobilizam-se as alcíones à volta das ilhas sem espuma;
— o traiçoeiro oceano abandonou os seus ardis
e, alegres, os marinheiros sentem-se ousados e livres.
Diz-me, ó meu amor, se queres partir comigo?
É o nosso barco um albatroz, cujo ninho,
na púrpura do oriente, lembra um Éden longínquo;
permaneceremos entre as suas asas, enquanto a Noite
e o Dia, a Tempestade e a Calma, nossos servidores
despercebidos, não se cansam de perseguir o seu voo,
seguindo o mesmo trilho pelo mar infinito.
Sob os céus da Jónia, encontra-se uma ilha
tão bela como um dos destroços do Paraíso,
e, porque os seus portos não são seguros,
ficaria solitária se nesse lugar não vivessem,
simples e cheios de ânimo, inocentes e corajosos,
alguns pastores apenas, somente os que nasceram
ali, onde recebem do ar elísio claro e brilhante
o derradeiro espírito da idade de ouro.
Azul, cinge o Egeu este lugar eleito,
com um contínuo rumor, e luzes, e espumas,
beijando as areias finas, a brancura das cavernas;
e os ventos que vagueiam ao longo dessas margens
ondulam docemente, como as próprias ondas.
Aí existem densos bosques habitados por imagens silvestres
e fontes, pequenos lagos, arroios tão cristalinos
como um diamante elementar ou o ar sereno da manhã;
ao longe, as sendas musgosas de cabras e veados
(que o rústico pastor segue só uma vez por ano)
conduzem a clareiras, cavernas, átrios, retiros
cercados de hera e iluminados por cascatas,
cujo rumor, jamais interrompido,
acompanha em pleno dia o canto dos rouxinóis;
todos os lugares estão povoados por suaves ventos;
o halo leve e claro que cerca esta ilha
é penetrado pelo aroma dos limoeiros floridos
que flutua—névoa cheia de invisíveis chuvas—,
caindo sobre as pálpebras como um sonho ligeiro;
e através do musgo despontam violetas e junquilhos,
que trespassam o cérebro com as setas do seu aroma
até desfaleceres num sofrimento deleitoso.
E todo o movimento, aroma, frémitos, luz
reúnem-se a esta música profunda
que é uma alma no interior da alma — talvez
a ressonância dum sonho por nascer. — Ilha
entre o Firmamento, o Ar, a Terra e o Mar,
suspensa como um berço nesta tranquilidade luminosa;
radiosa como a errante estrela de Lúcifer,
no Éden, banhada pelo oceano azul do ar matinal.
É um lugar eleito. A fome e as pragas,
os terramotos, a peste ou a guerra não aparecem
no cume dos seus montes; abutres cegos
afastam-se dali, no seu fatal caminho:
tempestades aladas, entoando ao longe os seus salmos
de trovões, deixam abismos azuis de serenidade
sobre esta ilha, ou choram como o orvalho
que renova constantemente nestes campos e bosques
a sua imortalidade verdejante e dourada.
Erguem-se do mar e desprendem-se do céu
brumas transparentes, serenas, iluminadas;
e véu após véu, quantos prazeres ocultam,
devassados pelo Sol, a Lua, os ventos,
até que em sua formosura a ilha, como noiva
radiosa na nudez, amor e juventude,
se ruborize e vibre no excesso de si mesma.
Todavia, como uma lâmpada sepultada, arde
uma Alma no coração desta ilha deliciosa,
átomo de Eternidade, cujo sorriso desperta,
e, invisível, poderia ser apenas adivinhado
sobre negros rochedos, ondas azuis, florestas verdes,
por entre os seus espaços entreabertos e vazios.
Mas o mais maravilhoso, naquele lugar deserto,
é uma habitação isolada.



Dela, pouco parece pertencer à arte humana
mas ser antes obra de Titãs, porque recebeu
a sua forma no Coração da Terra, e assim surgiu
do seio das montanhas, das pedras viventes,
erguendo-se em cavernas luminosas e altas.
A ornamentação antiga e cheia de sabedoria,
que ficou apagada, é feita agora
de hera ou vinha-virgem, que entrelaçam
a profusão das suas hastes sinuosas;
flores de trepadeiras iluminam com suas gemas
de orvalho as salas obscuras e, ao morrerem,
o céu desponta através da fria teia do seu rendilhado
com o vestígio do luar, ou átomos de estrelas
ou fragmentos da intensa serenidade do dia,
desenhando mosaicos sobre o seu chão de Paros.
E, dia e noite, ao longe, vistos das altas torres
e terraços, o Oceano e a Terra parecem
dormir nos braços um do outro, e sonham
ondas, flores, nuvens, rochedos, bosques—tudo
o que lemos nos seus sorrisos, e é a realidade.

Possa esta casa pertencer-nos, e quando os anos,
como folhas, acumularem sobre nós o nosso declínio
sejamos ambos o próprio dia que paira,
a alma desperta desta ilha eleusina,
conscientes e inseparavelmente unidos. Entretanto,
ao despertar, erguer-nos-emos e iremos juntos
sob a abóbada do ar azul da Jónia,
e vaguearemos pelos prados; ou subiremos
às montanhas cobertas de musgo, onde o céu
com serenos ventos se inclina ao encontro da amada;
ou passearemos, onde o litoral coberto de seixos,
sob os beijos apressados e tímidos do mar,
se agita e brilha, como se fosse em êxtase,
— possuidores e sendo possuídos por tudo o que existe
no interior desse calmo círculo de felicidade,
e um pelo outro, até se transformar o amor e a vida
no mesmo ser; ou, ao meio-dia, iremos
onde a brancura de uma antiga caverna parece ainda conter
o luar, quando expirou a noite adormecida,
sem que aí o dia penetre e amanheça;
véu para o nosso isolamento, tão denso como o da noite,
onde possa um sono tranquilo apagar os teus olhos inocentes;
sono, fresco orvalho dum amor lânguido, chuva
que extingue os beijos e os faz renascer.
E nós conversaremos, até que a melodia do pensamento
seja suave para as nossas vozes, e morra
em palavras, para que reviva no olhar, como setas
a vibrarem no interior do nosso coração silencioso,
até se conjugar a sua harmonia com o silêncio total.

SOBRE PERCY SHELLEY

[In POESIA ROMÂNTICA INGLESA, prefácio e tradução de Fernando Guimarães, Lisboa, Relógio D´Água, 2010, p. 59-71]

by GUSTAVE COURBET



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Rainer Maria Rilke

Ah, havíamos acordado que o silêncio haveria de prevalecer entre nós: haveria de ser a lei deste inverno, uma lei dura e implacável. Agora, porém, principiava a nossa ternura; não apenas a nossa: a ternura do que fora realizado estaria em meu coração. Talvez — a necessidade era enorme — fôssemos fortes o suficiente para nos calarmos — não éramos nós que trazíamos as notícias; a boca do destino se abria e as despejava sobre nós, pois o amor é o verdadeiro clima do destino. Por mais que ele abra o seu caminho através do céu — a sua Via Láctea feita de milhões de estrelas de sangue —, o país que jaz sob o seu manto encontra-se prenhe de fatalidades. Nem mesmo os deuses, nas metamorfoses de sua paixão, eram poderosos o bastante para libertar a terrena, assustada e fugitiva amada das ciladas deste chão fecundo.

[In O TESTAMENTO, tradução e notas de Tercio Redondo, prefácio Helmut Galle, São Paulo, Globo, p. 51]

 
By Dale Knickerbocker



sábado, 3 de outubro de 2015

Zoran Milić

UM TRONCO DO NADA

Tronco a partir do nada na névoa te ergues
entre sombras e pessoas e assustados animais
Banhado pela raiva e pelos tremores de frios imemoriais

Ardes a lâmina de fios que se desatam
De chumbo e de sangue que se não deve esquecer
Das cobras do fogo e brotos de flor
Das cinzas e do deserto que nos espreita

Das destruições que até o mais valente teme
Do ferro forjado de que necessitamos
De furiosas noites em que nos tomam vulto os pais
Das lágrimas de moças amarradas pelas pernas
E cujos perfumes se erguem para o céu

Das neves que dia e noite sopram
Das cercas vivas que constroem o mundo e dos sanguinários cães
Dos trovões que assassinam flores
Dos céus e das águas que enlameiam

De nós próprios enquanto nos afastamos gradualmente
Daquilo que já fomos e não compreendemos
Dos pomares e das hortas no suave arco
Dos parvos que são obedientes ao sol

Das raízes que escavam e dos terrenos que se mudam
Dos animais dos viajantes que dançam descalços
No barro que se sedimenta interminável

[In Poesia Iugoslova Contemporânea, Prefácio, tradução e notas de Aleksander Jovanovic, São Paulo, Meca, 1987, p. 215]

Zoran Milić,
Nasceu em 1940, em Vrájogrntzi, próximo a Nich. Estudou nesta cidade,
depois em Belgrado e radicou-se, definitivamente, na capital iugoslava.
Publicou quatro coletâneas de poesias.  Poeta alegórico, economiza palavras e hoje flutua entro a tradição e a Imagétlca contemporânea da poesia.

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...