segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Marianne Moore

SILÊNCIO

Meu pai costumava dizer,
"Pessoas superiores nunca fazem longas visitas,
nem ter que ser apresentadas ao túmulo de Longfellow
ou às flores de vidro de Harvard.
Autoconfiantes como o gato —
que leva a presa à privacidade,
o rabo mole do rato pendurado como
um cadarço em sua boca —
elas às vezes gostam da solidão,
e podem ser privadas de fala
por uma fala que as encantou.
O sentimento mais profundo sempre
se manifesta no silêncio;
não em silêncio, mas em contenção."
Tampouco era insincero em dizer:
"Faça da minha casa sua pousada."
Pousadas não são residências.

(Tradução:  Mariana Basílio)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Nuno F. Silva

QUARTO MINGUANTE

A madrugada,
essa lembrança
brutal
de que sou
apenas um nome
Invertebrado
que transita
daqui para ali.


E estorva
nas outras
bocas


Tenho a certeza que
se ouviria o pulso
sanguíneo das coisas
cardeais,
se as cabeças
estivessem limpas
da caspa do dia
anterior.


Não te assustes,
cada nome amado
é desde o início
uma cicatriz feita à gadanha
no instinto reptil da língua.


Eu dou o meu corpo
como albergue
a quem tem medo da noite.


Sou com quem eles falam
sobre os estrangeirismos
da solidão,


antes que amanheça
e não lhes seja permitido
segredar mais nada.

(Inédito)



quarta-feira, 11 de setembro de 2019

José Agostinho Baptista

Já não sei de ti as teias do sono, as palmeiras
ao longo do coração.
Setembro leva-te à grande noite,
as tardes descem para o outono.

Das margens advém-nos a ausência:
mãos, afcctos, uma dança ao alvorecer das caravanas;
uvas, um vinho doce se fosses tu.

Não regressarás, eu sei.
Apagam-se as estrofes nas estradas de uns lábios,
apagam-se os candelabros.

Escrever é como um fio de punhais, uma dor que anoitece.

////

Deem-me uma tela onde escurecem os campos.
Trabalharei a cor,
lilás e púrpura que inunda as margens,
o coração que bate como um tumulto de pincéis.

Desfraldam-se as janelas onde se faz tarde.
Repousam as coisas:
giestas, a lira, uma rosa amarela.

Movem-se os remos.
Oiço-os que chamam, os marinheiros do tempo.
Eu lhes darei um porto com a nostalgia dos violinos;
tabernas onde se apagam os girassóis.

Enlouqueço com a voz dos búzios, essa nota marítima
que persigo,
equinócios,
guitarras do trópico ao fundo da noite.

Acende-se o farol nos promontórios.
É como uma rapidíssima estrela girando, um relance de
sóis,
altos poentes —
afiadas escarpas, em baixo.
se apagam os girassóis.

Busco esse destino de sons despenhados, ossos que
se entrechocam, desnudando-se;
uma vertigem de setas trespassa o peito,
as suas corolas frias.

Galopam os cavalos em demanda do sul,
as crinas recortadas pelo fim do dia, um brilho negro.
Ventos do norte crescem na direcção da planície e dos
livros,
enfurecendo as páginas —

timoneiro que fui, aí me escrevo, despeço-me, quebro os
espelhos no interior de uma beleza agreste,
regresso ao sono da terra —

Tudo dorme.

(Em Autoretrato, Assírio e Alvim, 1986)

Sobre José Agostinho Baptista




sábado, 7 de setembro de 2019

Vasco Gato

sei que nunca viste o oceano,
que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Leonardo Almeida Filho

TUTANO

Para Antônio Damásio

Há coisas que pedem silêncio
o mesmo silêncio das pedras no fundo do rio
dos peixes nos igarapés, da aranha no paiol vazio
a mudez das rochas e dos musgos

Há coisas que devem permanecer caladas, intocadas
Entaladas na garganta como o choro que se engole
Dissimulado, amargo

Há coisas que pedem para serem engasgadas
para ficarem dentro da gente como tutano
pulsando por se mostrarem vivas
estigmas
não mais que isso.

Há segredos que devem morrer sagrados
ocultos, enterrados, como fossem fósseis
no sítio arqueológico da alma
sob olhares quase-mortos
e cheios de tristeza e desencanto
sem dor, lamento ou pranto.

Há coisas que exigem silêncio
mas é sobre essas coisas que o poeta berra
que os poemas uivam
que os versos gritam
para quem as quiser ouvir
e se ensurdecer.

(Inédito)


OUTROS JARDINS

Flores iguais, embora diferentes
de mesmo pólen, viris
sementes
híbridas espécies, múltiplas, ardentes
a rude maciez do amor
valente

Brotam nos jardins de toda casa
entre ervas que as julgam
repelentes
Algumas se ocultam, outras se mostram
no orgulho da botânica
iridescente

Ah, como anseio a jardinagem
da rara orquídea azul entre
os teus dentes
tocar-te o caule, o talo, o grão, a vagem
sentir na pele-pétala a seiva
quente.

(Inédito)



terça-feira, 3 de setembro de 2019

Nuno F. Silva

Metamorphosis
Que seja alva a morte do poeta
como o silêncio da madrugada.
Mostrem-lhe a luz em graça
pois dedicou a vida
a estudar o relevo das sombras
e tacteou sempre as rosas
pelo lado soturno do deslumbramento

(Nuno F. Silva. In Lunescer. Ed. Lua de Marfim)

INCÊNDIO
E se me arderem todas as expressões
como arde o aconchego da casa?
O que será de mim?
O que será de nós,
que somos seres intravenosamente ligados pelas palavras?
(Pelo temor secreto do poema).
E se no leito de morte
me reacendesses a poesia
como se acendem os cigarros,
voltaria a viver?

(Nuno F. Silva. In. Cativeiro. Ed. Idioteque)

RESSURREIÇÃO
Já escavei as fundações da terra
com os dedos esquálidos,
desci às razões da minha melancolia
para me separar de mim,
assim:
átomo por átomo.
Quis praticar o desapego
do inalcançável e
escondi a fome do impossível
debaixo da sujidade das unhas.
Enterrei o corpo numa cova qualquer
na infertilidade árida das sombras.
E não me encontrei mais
no imaginário das coisas,
no veneno das sensações,
no prisma romântico
da servidão lírica das rosas.

Fui curar as feridas da alma
com o queimor do sol ao morrer do dia,
tornar-me a cicatriz de cinza.
Revelar no sossego
a nova odisseia.

(Nuno F. Silva. In. Cativeiro. Ed. Idioteque)

ELEGIA
Coitado!
Dizem que pariu uma elegia
debaixo do lodo da lâmpada,
na imensidão claustrofóbica do quarto.
A sombra do poema, examinada a raio X
confirmava-o:
Era um nervo soturno da cabeça aos pés.
Como quem se veste sempre de negro,
a fechar perpetuamente o corpo à luz.

(Nuno F. Silva. In. Cativeiro. Ed. Idioteque)


O ANJO EDIPIANO 
Mãe
eu sei
que ainda te doo
como um bicho esquisito
nalguma parte do corpo

Como se, em segredo
nunca me tivesses parido
completamente.

A minha rebeldia,
uma aflição opaca
na tua cabeça.


Em mim
translúcida
só a luz da manhã.


E por vezes
como sabes
nem isso sobra,
nem isso basta.

(Nuno F. Silva. In. Linguagem do Abandono. Ed. Idioteque)

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SOBRE O AUTOR

Nuno F. Silva é um poeta português nascido na maternidade Júlio Diniz, no Porto, em
19 de agosto de 1993. Vive em Paredes.  Completou o ensino secundário na
Escola Secundária de Baltar, que tem como padroeiro o poeta consagrado Daniel Faria, seu
primo. foi também nessa mesma escola que despertou a sua necessidade de criar. Começou por
escrever pequenos contos de fantasia, mas rapidamente sentiu a necessidade de escrever poesia.
Em 2011, então com 18 anos, publicou o seu primeiro conjunto de poemas: Flor de Espinhos.
(pela Corpos Editora). Em 2013 publicou Flor de Lótus (pela editora euedito). Em 2016 surgiram Frágil (pela editora euedito) e Lunescer (pela editora Lua de Marfim. em Março de 2017 surgiu Cativeiro e em Maio de 2018 publicou Linguagem do Abandono, ambos pela editora Idioteque. Em 2019 publicará um novo livro de poemas.









domingo, 1 de setembro de 2019

Álvaro de Campos


Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.

Alma abstracta e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

(Em Fernando Pessoa, Obra poética, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994)

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...