quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Leonardo Fróes

PERNOITÓRIO
Cisco de carne. Pingo de noite. Metralha.
O olho serve para brilhar no escuro.
A cura não há.

Há o pé — que já vai havido —
a mão que pisa no palavreado
e outras coisas normais: ois, alôs, ais e esbarros.

Há o dente carnívoro da frente.
Rente a ele há um crime
e, no creme do crime, certo medo.

Cedo eu fui. Mas o ido degenera
e a terra, discretamente, agora brilha.
Há ilhas, baralhos, continentes, tinidos e plantas.

Há inclusive — a essa altura — uma esquisita cautela. Há a
pele. O pelo rapado por toda ela. Há o menino que eu invento
e pouco a pouco se inicia à morte. Há, principalmente, a sorte

de ser mesmo um pau torto, que jamais endireita. 

SE ME QUISER COMO EU SOU,
ESTOU ÀS ORDENS
Artesão do possível obreiro
numa colmeia de apressados
fazedores lento ledor de enigmas
e iridescências móveis
que atravessam o céu paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
indecifráveis do longe vítima
de mutações sentimentais
que desarrumam o mundo
e o recriam sócio de empreitadas
frustradas porém sentidas
como o transcurso da tarde
que se enrodilha em nuvens e langor doutor
em absurdas ciências
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro — ao urro
da aceitação animal.

(In Trilha Poemas 1968-2015, Azougue, 2015)

SOBRE LEONARDO FRÓES



domingo, 11 de dezembro de 2016

Mia Couto

DESENCONTRO (1)
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces 

DESENCONTRO (2)
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu impercetível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio

[In Poemas Escolhidos, Companhia das Letras, 2016]


Luís Henrique Pellanda

Balcão de desejos

Já escrevi, uma vez, que as padarias à noite são como balcões de desejos simples, iluminados. A ideia é romântica, mas me agrada. Me faz lembrar uma história que sempre conto a meus amigos, nem sei com que intenção, pois nunca soube o que significa. Talvez eu espere que eles próprios descubram um sentido para ela, e depois o revelem para mim. Vou contá-la aqui também, e se algum de vocês tiver um palpite, fique à vontade para se manifestar.

Há poucas semanas, vi uma mulher, grávida de seus sete, oito meses, entrar numa dessas padarias do Centro, de camisola e chinelos de pano, lá pelas quatro da manhã, horário em que o estabelecimento está lotado de trabalhadores da madrugada. E sua aparição, tão limpa e maternal, foi um choque. De banho tomado e cabelos úmidos, cheirando a baunilha, a mulher se dirigiu a outra, bem mais nova que ela, quase uma menina, que no balcão matava o seu X-salada, cuidando para não borrar o batom com a maionese.

Foi rápido demais, a recém-chegada não deu aviso nenhum. Apenas estalou um tapa violento na cara da moça que mastigava o sanduíche. Estranhamente, a ofendida não reagiu, ainda bem. Só varreu com os olhos o chão do lugar, em busca de alguma coisa perdida, um brinco talvez, ou uma piranha. Achou o que queria perto de mim, entre os meus pés: um naco de hambúrguer fugido de sua boca. E me olhou por um segundo, desolada, como se pedindo desculpas por aquele desperdício de carne.

A padaria, quieta. Na porta, o homem das fichas foi o único a se envolver, cobrando explicações da agressora, o que foi isso, minha senhora? Alisando a barriga, a gestante esclareceu, sorrindo:
Foi só um desejo que eu tive.

E caiu fora. Ninguém soube dizer quem era, e nunca mais foi vista.

Quando conto esse episódio a meus amigos, eles duvidam de mim. Acham improvável uma mulher entrar com chinelinhos de pano naquela padaria, àquela hora. Acham inacreditável que ela tenha dado o tapa na moça sem que a outra revidasse, ao menos verbalmente. Acham que inventei a lírica justificativa da agressora para a sua atitude descabida.

Concordo com eles, é absurdo, mas proponho uma saída: não foi exatamente a mulher quem entrou na padaria, e sim a projeção de um de seus sonhos. Eles riem da minha evasiva e perguntam como, nesse caso, eu teria visto a personagem. Me defendo com a única resposta possível: não sei, pois nunca estive naquela padaria de madrugada.

Pela manhã, sim, ou mesmo no começo da noite. Gosto de lá, porque sempre que me aproximo do balcão, a atendente quer saber:
O que o senhor deseja?

É uma abordagem rara e perigosa. Em geral não perguntamos uns aos outros os nossos desejos, isso bagunçaria demais o mundo. Assim, para manter um mínimo de ordem nesta cidade, me forço a responder, humilde:
— Eu desejo pães.

25 de setembro de 2014 

[In O detetive à deriva, 2016]

Luiza Neto Jorge

BANDA SONORA PARA CURTA-METRAGEM ERÓTICA 

Ó harmonioso
ó estigma
ó consciencioso
enigma

ó sal
ó sal
ó gume
ó ímpio
ó sumo
ó escasso
ó sal

ó harmonioso
enigma
ó dente
ó estigma
do gozo

ó vocábulo
ó peso a sós
ó ar
ó ar arável
ó fraternicida
ó voz

ó harmonioso
frio
ó cingido
negro estio

ó dor voraz
ó timbre
ó cristificado
ó cru

ó harmonioso
espaço alheio
ó príncipe
princípio
ó morte a meio

[In O seu a seu tempo, Lisboa, Ulisseia, 1966]



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...