domingo, 30 de setembro de 2012

Miodrag Pávlovitch

PACIFICAÇÃO
Nas trevas
uma abelha
perfura os olhos
do moribundo

O cego
ergue as mãos
o punho recende
a flor

Um sol miúdo
ingressa pela porta
Sangue escorre pelo vidro

Aviso
aos que enxergam longe

(Bosque da Maldição, 2003, trad. Aleksandar Jovanovic)

sábado, 29 de setembro de 2012

Cecília Meireles

EVELYN
Não te acabarás, Evelyn.

As rochas que te viram são negras, entre espumas finas;
sobre elas giram lisas gaivotas delicadas,
e ao longe as águas verdes revolvem seus jardins de vidro.

Não te acabarás, Evelyn.

Guardei o vento que tocava
a harpa dos teus cabelos verticais,
e teus olhos estão aqui, e são conchas brancas,
docemente fechados, como se vê nas estátuas.

Guardei teu lábio de coral róseo
e teus dedos de coral branco.
E estás para sempre, como naquele dia,
comendo, vagarosa, fibras elásticas de crustáceos,
mirando a tarde e o silêncio
e a espuma que te orvalhava os pés.

Não te acabarás, Evelyn.

Eu te farei aparecer entre as escarpas,
sereia serena,
e os que não te viram procurarão por ti
que eras tão bela e nem falaste.

Evelyn! — disseram-me, apontando-te entre as barcas.

E eras igual a meu destino:

Evelyn — entre a água e o céu.
Evelyn — entre a água e a terra.
Evelyn — sozinha — entre os homens e Deus.

In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 244-245

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Affonso Ávila

TRILEMAS DA MINEIRIDADE
eu em mim
eu em minas
eu em minas de mim

eu em outros
eu em óxido
eu em óxido de outros

eu em texto de minas
eu em templo de minas
eu em tempo de minas

eu em parnaso de outros
eu em partido de outros
eu em paródia de outros

eu em onírico de mim
eu em omisso de mim
eu em opaco de mim

eu em camada de óxido
eu em câmara de óxido
eu em câncer de óxido

eu em modorra de minas
eu em montanha de minas
eu em montagem de minas

eu em análogo de outros
eu em anódino de outros
eu em anônimo de outros

eu em inepto de mim
eu em insípido de mim
eu em inóspito de mim

eu em fossa de óxido
eu em fóssil de óxido
eu em in-fólio de óxido

Poema publicado no Jornal "Estado de Minas", dia 27 de setembro de 2012, quinta-feira, dia do falecimento do poeta, que foi sepultado às 13 horas do mesmo dia, no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte.

Sobre AFFONSO ÁVILA



quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Roberto Piva

OS ANJOS DE SODOMA
Eu vi os anjos de Sodoma
escalando um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos

Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
a loucura e o arrependimento de Deus

In Paranoia, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, pp. 105-106

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Adélia Prado


O PENITENTE
Nunca tive um rapto como Santa Teresa,
só um pequeno desmaio devido a dores agudas
e por três vezes seguidas
a sensação de estar fora do tempo.
Palavras são meu consolo.
Meu pai fez planos, morreu.
Minha mãe privou-se, morreu.
Provo grande vergonha
se o caminhão de São Paulo grita no alto-falante:
‘Alô, alô, dona Maria, vem pegar sua melancia.’
Carminha desenhava na terra
meio grão de café, forçando na rachadura:
‘Lá na gente é assim, sua boba!’
Não sentia vergonha, só um calor esquisito.
Sou ingrata?
Pergunto-Vos e já me sei perdoada,
como se Vos tivesse imolado pelos meus e por mim.
E só Vos dei palavras, ó Deus santo.
Quando achei que exigíeis
cabeças sanguinolentas,
um punhado de versos aplacou-nos.

In A DURAÇÃO DO DIA, São Paulo: Record, 2010, p. 65

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Carlos Pintado

NA BREVE QUIETUDE DOS ANOS
Let's seek out some desolate shade
Macbeth. Act IV. Sc. III 

Como vão fugindo os dias
no cego costume das horas
e apenas recordar deixa sempre
nossos passeios tão rápidos e solitários
pelas  ruas antigas e desertas
onde uma vez sonhamos em nos perder.
De que lugar tão estranho vemos
a morte surgir com suas vestes
seus olhos fulgurando na penumbra
sua voz nos chamando em delírio.
Como de repente, deixam-nos a sós,
sem casa, sem amigo e sem amante,
diante do espelho que castiga sozinho
a breve quietude que trazem os anos.



Mariana Ianelli

CERIMÔNIA
Agora saberás o vigor ignorado do tempo.
De uma vez serás efêmera e eterna
como o animal que anda sobre a campina.
Tua boca de amar,
mas amar com demorados intervalos ausentes,
se abrirá sem música, murcha e seca, pedindo água.
Então eu virei de outros mundos
em minha jornada violenta para te aliviar
e suportar o deserto contigo.
Virei de uma andança antiga te pertencer
e debaixo de um ramo de avenças
pentear teu cabelo com as unhas.
Serás a mulher dentro do meu abraço,
e, para quem eu terei vindo, serás mãe.
... A audácia fatigada do tempo
posta em ti, porque é agora.
Como o animal que caminha francamente
e amoroso sobre a grama, serás mãe.

Da obra Duas Chagas, São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 19

Site oficial de Mariana Ianelli

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Hilda Hilst

V
Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz, encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjetura.
Águas que não bebi. Crespusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo
Antíquissima, nova. Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.

VI
O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.

In Obra Poética Reunida, Brasilia: Editora da UNB, 1998 pp. 28-29


domingo, 23 de setembro de 2012

Fernando Pessoa

(Athena)                        [dat. 1924?]
O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar. Mas a arte média, se tem por fim principal o elevar, tem também que agradar, tanto quanto possa; e a arte superior, se tem por fim libertar, tem também que agradar e que elevar, tanto quanto possa ser [...].
Elevar e libertar não são a mesma coisa. Elevando-nos, sentimo- nos superiores a nós mesmos, porém por afastamento de nós. Liber­tando-nos, sentimo-nos superiores em nós mesmos, senhores, e não emigrados, de nós. A libertação é uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos.

In Obras em Prosa, Volume Único, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, SA, 1993, p. 228

Antonio Moura

PAI
Desempregado há três anos
no país do futuro

Batendo perna nas ruas
com o mostruário de meias

Adivinhando
o signo da morena
o ascendente da loira

Jogando xadrez
assobiando um samba
colecionando borboletas
descobrindo a fórmula exata
da tinta para balão
(tinta que não racha
sobre a pele inflável)

Contra as determinações médicas
filando cigarro
fazendo piada com a perna
que pode ser amputada
louvando as próteses modernas
dizendo que morre antes disso
que não vai dar trabalho
que some de casa
vai pro asilo

Meu pai de novo ao volante
guiando o negro Landau

O velho e bom batmóvel
rodando sem freio ou cinto 
o vento de Gotham no rosto
minha cabeça no banco de couro

Meu pai cantando alto
limpo e bonito como só ele
numa estrada clara
sem pedágio ou limite
de felicidade

Novo endereço (2002)

BARRABÁS
Vocês não podem velar 
o corpo do meu marido 
Ao lado do desse aí 
que a polícia acertou

Vocês me desculpem 
imagino o sofrimento 
perder um filho assim moço

Meu Cícero 
morreu trabalhando 
Um tiro pelas costas à
s duas da manhã 
Ao lado do desse aí 
o corpo dele não vai gelar

Não adianta insistir 
ao lado de bandido 
meu marido não fica
Ibidem

Fonte: Roteiro da Poesia Brasileira anos 90, seleção e prefácio de Paulo Ferraz, São Paulo: Global, 2001, pp. 126-127




sábado, 22 de setembro de 2012

David Mourão-Ferreira

CANÇÃO DE MADRUGADA

à Cecília Meireles

Ecorrem de noite pelos prédios,
dissimuladas na umidade
— dissimulando elas o tédio
das longas noites da cidade —
deusas solícitas que vão,
com sua etérea assinatura,
quase propor a redenção,
— de rua em rua, dar a mão
a quem se arrasta e procura.

Pobre de quem vem perguntando
à pedra esquiva das esquinas
a voz e a face dessa amante
de que não restam senão cinzas!
Pobre do outro a quem o gelo
daquele encontro tão malsão
nem conseguiu arrefece-lo!
— Pobres de tantos, sem o selo
de garantia da ilusão!

Ó vidas presas por um fio,
junto ao abismo dos fracassos,
quem vos evita o fim sombrio
já desenhado em vossos passos?
— Com grandes túnicas violáceas,
as deusas erguem claras brisas:
nas avenidas e nas praças,
tremem as folhas das acácias,
vibram os peitos infelizes.

Até o frígido luar,
que de livor tingia as ruas,
se vai sumindo, devagar,
deixando as almas menos nuas...
Uma promessa de folhagem,
de vento e sol, as veste agora:
e, penetradas pela aragem,
as almas tímidas reagem
à madrugada que as enflora!

Súbito, a um gesto das deidades,
quebra-se o fúnebre luzeiro
das outras luas enforcadas
nos braços curvos dos candeeiros.
Já no crepúsculo se esfuma
a doentia sugestão,
— e as deusas tecem, com a bruma,
a nova luz que se avoluma
e é uma promessa ou uma canção.

Do sofrimento a noite cessa
na indecisa madrugada:
que ninguém peça a uma promessa
mais que a promessa que foi dada!
A quem sofreu, basta que a vida
levante um sol de entre as ruínas:
uma promessa doutra vida...
— Quanto aprendi!, nesta comprida
noite que tu, Canção, terminas.

Fonte: http://www.astormentas.com

sobre David Mourão-Ferreira

Konstantínos Kaváfis

ÍTACA
Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Poseidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercadorias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

[In: O Quarteto de Alexandria - tradução de  José Paulo Paes].

Sobre Konstantínos Kaváfis




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Domingos Pellegrini

SERVENTE

A tudo estarei atento
seja ao clamor das estrelas
seja ao silêncio mais reles
dentro desta noite imensa

Acenderei os incensos
e polirei os talheres
no banquete dos prazeres
ou no jejum dos conventos

Erguerei ao sol a luz
de fraternos pensamentos
e sentimentos em festa

Se me sentir incompleto
colocarei meu capuz de líquens
e ilusões secas

GEADA
Parece que foi pintado o céu 
por um pintor que só tivesse anil
e o verde do gramado neste frio 
branqueou e depois empalheceu

Faca de ar recorta nossa cara 
se troteamos até o riacho 
onde a água fala com voz clara 
e para um gole de gelo me agacho

No pomar as laranjas empedradas
 nos cochos água ainda endurecida 
a égua mais alegre aquietada

Porém olhando bem como por mágica 
a compensar os danos e perdidos 
sumiram moscas e cadê as pragas?

In: Gaiola Aberta 1964 - 2004, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004, pp. 106-107.


Sobre Domingos Pellegrini

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Daniel Lima

Nasce dos olhos o mundo
e completa-se nas mãos.

As mãos descobrem as coisas
mais que os olhos
e dão formas às formas, e vigor.

É pelas mãos que se confirmam os olhos.

E por elas que o universo
diz a sua palavra,
a  que revela o segredo
de seu silêncio essencial.

&&&

A mágoa que agora sentes
não é mágoa de agora. Vem de longe.
É dor acumulada.
Dor de tuas origens esquecidas,
de um remoto passado
em que nem existias ainda.
Essa dor que agora sentes
existiria em alguém, em algum lugar,
mesmo que não houvesses nascido.

Na história geral das mágoas
a dor de cada um é um simples episódio. 


Daniel Lima, poemas, Cepe: Recife, 2011, p. 256

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Henriqueta Lisboa

PROMESSA
Não hoje, talvez amanhã.
Canto. Verdade. Amor. Sofrimento.
Sim, amanhã, por certo, amanhã.

Ainda não raiou o instante.
Ainda há restolhos no caminho. E demasia
de quimera a premir o mármore. E denodo
pronto a lançar o dardo. E soluços 
ao desmaio das brumas. Ainda escorre
dos alvéolos o doce mel.

Mais alguns lances pelo esboço.
Leves retoques no cenário.
Céu pouco a pouco aberto em perspectiva
por que o pássaro evoque
serenidade viva — o dom
e não o preço do equilíbrio.

Para o momento de exceção, válido acima
da contingência.
Momento que virá porventura amanhã.
Com a têmpera do azul no campo
lactescente de espigas.

Henriqueta Lisboa, Obras Completas, Vol. I, Poesia Geral,  Duas Cidades: São Paulo, 1985, pp. 336-337


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Paulo Leminski

ADMINIMISTÉRIO
Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do asfabeto?

Paulo Leminski, Col. Melhores Poemas, Sel. Fred Góes e Álvaro Martins, 6a. ed., São Paulo: Global, 2002, p. 107

domingo, 16 de setembro de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen

MANHÃ DE OUTONO NUM PALÁCIO DE SINTRA
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado

Ele não quis ouvir o alaúde dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas

Mas o pequeno palácio é nítido — sem nenhum fantasma
Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo


MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL
Minúcia é o labirinto: muro por muro
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia –
Itinerário é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável –
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio

[In OBRA POÉTICA,   AlfragideCaminho, 2011, pp. 560-561]


sábado, 15 de setembro de 2012

Mário Faustino


ONDE PAIRA A CANÇÃO RECOMEÇADA
Onde paira a canção recomeçada 
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada 
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia 
Conto os astros que faltam no horizonte 
Da praia soluçante onde passeia 
A espuma de teu fim, pranto sem fonte. 
Oh juventude, um pálio de inocência 
Jamais se estenderá sobre outra aurora 
Mais clara que esta clara adolescência 
Que o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia Sobre teu rosto, lúcida alegria?


EGO DE MONA KATEUDO
Dor, dor de minha alma, é madrugada 
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada 
Memória arfante donde alguém que chamo 
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega 
Noite ambulante. E escuto-te o mugido, 
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro, 
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro, 
Ouvindo as asas roucas de outro dia 
Cantar sem despertar minha alegria.

In O HOMEM E SUA HORA E OUTROS POEMAS, São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, pp. 88-89

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Jorge Luis Borges

Em memória de angélica
Quantas possíveis vidas terão ido 
Com esta pobre e diminuta morte,
Quantas possíveis vidas que a sorte 
Daria à memória ou ao olvido!
Quando eu morrer, morrerá um passado; 
Com esta flor um futuro está morto Nas águas que ignoram, um aberto 
Futuro pelos astros arrasado.
Eu, como ela, morro de infinitos 
Destinos que o acaso não me depara;
Busca minha sombra os desgastados mitos
De uma pátria que sempre mostrou a cara.
Um breve mármore vela sua memória;
Sobre nós vai crescendo, atroz, a história.

Meus livros
Meus livros (que não sabem que eu existo)
São tão parte de mim como este rosto
De fontes grises e de grises olhos 
Que inutilmente busco nos cristais 
E que com a mão côncava percorro.
Não sem alguma lógica amargura
Penso que as palavras essenciais
Que me expressam se encontram nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes dos mortos
Vão me dizer para sempre.

Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 190-191

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ximena Gómez

REVERIE
Sangue
Lixo
E migalhas
De uma noite
Orgiástica.
Na copa de uma árvore
Um corvo azul
Agita as asas
Relambendo-se.

ALUCINAÇÃO
Deambula pelos montes ao crepúsculo.
As noites reconhecem seu latido inaudível.
É visto a vadiar pelas portas do Hades.
Os pássaros riem de sua extravagância.
Criatura da sombra, errante e sem repouso.
A luz o vê esconder-se sob as pedras,
no buraco de uma árvore,
ou desaparecer nas montanhas.
Sente-se sua presença no canto da coruja.
Temido no grito da selva.
Sabe-se dele nos sonhos.
É filho da angústia.

CATÁSTROFE
Uma avalanche marrom
desmorona
sobre um ninho
de formigas.
Do alto
um cavalo risonho
defeca.

ESCARROS
Ladainha do pregão do outro lado da rua.
Latidos de um cão no cercado. Na janela,
um velho escarra e e cospe imprecações.
Um projétil cai no calçamento.
Abaixo,
algumas crianças, quais médicos legistas,
auscultam o mistério de um cadáver viscoso
colado às pedras.

EXTERMÍNIO, NASCIMENTO
1.   Os ritos infantis da morte,
      Lascas de madeira, escaravelhos.
      Faíscas e resplendores na gruta.
      Cremação de caídos na matança noturna.
2.    Enxames de tartarugas desovam na costa.

ÉDEN
Jardim gozoso
no quintal.
Uma velha latrina
como nicho,
sepultada na erva.
Lá dentro lagartas, percevejos,
um ninho de pombas;
Um galho de lilás
toca-lhe o ventre.
Uma mosca corteja
as fezes de um cavalo.
O sorriso de deus.

VIOLAÇÃO
Brincadeiras do gato na folhagem
com o sexo de pólen de uma rosa.
Alguém geme baixinho no talo.



Fonte: http://conexos.org/2012/08/25/poemas-de-ximena-gomez/

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Antonio Barreto

BAILARINOS MANCOS
É quando poemo o pó de outrora
que morto fico sessenta vezes
e sobretudo quando penso no sol e seus insones
salvo, com tiros de trabuco para o chão,
no mínimo o som dos telefones.

É quando os camaradas tropeçam nos jornais
e machados retinem nos quintais do ouvido
que na floresta dos sexos nascem mais maridos.

Então fundo na mulher o que pulsa nas pedras:
no mínimo o compromisso de durar.

Mas durar é tomar o pulso do medo
quando a coragem consente.
Mora em mim, portanto, um batalhão de sustos convenientes.
Mora em nós, você e eu, uma procissão de bailarinos mancos
que deixam rastros no peito da noite, no mínimo
diariamente.

Publicado no "Minas Gerais" (Suplemento Literário), n. 942, 20 de outubro de 1984.
Fonte: Acervo digital da Faculdade de Letras da UFMG

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Afonso Henriques Neto

CÃO
não vou mais respirar
nunca mais ordenhar
para escrever um livro.
não vou às bacantes
ao verão de vidro sobre o mar
dos diamantes.
ficarei só com meu bulldog
(nunca tive um
apenas uma gargalhada)
só com minhas pulgas
minha pele de vulcões silenciosos
esta espécie de incêndio solitário
brilho agudo
animal titânico.
(o cão rosna
e quando todos adormecem
o licor do sonho adoça o nervo da noite
mantém o invisível).
agora só vou ao poema
pela paixão a ganir nas palavras
pelo gozo de chupá-las
corpo contra corpo
cuspo na realidade.
foda-se a musa
as cordilheiras de luz
coxas de outro verão.
o tempo sempre foi impaciência.
só agora que perdi os dentes
e o rugido
descubro a contragosto meu bulldog.
mesmos acordes aleatórios
músculos violentos sobre a presa
sais do amor
ácidos da fortuna
e estamos mortos, baby.
mas fodidos assim é que brilhamos.
não quero mais harmonia
para escrever o livro.
não vou escrevê-lo.

(Abismo com violinos - 1995)

[In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 70, seleção e prefácio Afonso Henriques Neto, São Paulo: Global, 2009, p. 114]

Afonso Henriques Neto

QUANDO O SOL
quando o sol tornar a colorir a figueira da montanha
aves iluminadas estarão cantando em teu silêncio.

escutarás então o inexistente tempo 
fluindo sob o peso morno das lágrimas 
sob sob.

quando o sol tocar o vento
e os longos dedos de gelo
coçarem a pele da manhã
incendiando os galos e os cabelos
das árvores e das montanhas
ninfas girando entre vertigens castanhas

quando o sol puxar entre os dentes 
o interno verbo de todas as galáxias 
altas redes de vento e luz e infinito

saberás que atrás de cada tortura 
de cada assassínio 
de toda a impostura

detrás de cada negação ou falsificação 
do humano manancial 
o olhar da vida

o permanente olhar da vida
sempre ardeu como um grito saltando do pó do avesso do ódio
dos ossos das sepulturas dos cárceres do rosto vazio e 
implacável
(Restos & estrelas & fraturas - 1975)

In: Roteiro da Poesia Brasileira - anos 70, seleção e prefácio Afonso Henriques Neto, São Paulo: Global, 2009, p. 114


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Giorgos Seféris

De cinco Poemas do Sr. Strátis Marinheiro
I. Hampstead
Como um pássaro de asa partida
que tivesse viajado no vento anos a fio
como um pássaro que não mais pudesse suportar
o vento e a tempestade
cai a tarde.
Sobre a erva verdejante
três mil anjos tinham dançado o dia inteiro
desnudos feito aço,
cai a tarde pálida;
os três mil anjos
juntaram suas asas e trouxeram à luz
um cão
esquecido
que late
solitário
e que busca o dono 
ou o segundo advento 
ou um osso.
Agora eu busco um pouquinho de paz 
me bastaria uma choça na colina ou numa praia
me bastaria em frente da janela
um lençol tinto de anil
estendido feito mar
bastaria no meu vaso de flores
até mesmo um cravo artificial
um pedaço de papel vermelho num arame
que o vento pudesse
o vento, dirigi-lo sem esforço
a seu talante.
Vai cair a tarde
os rebanhos descem balindo para seu aprisco
como um simples e ditoso pensamento
e vai cair para que eu durma
já que não teria
uma vela sequer para acender
nem luz
para ler.
1931

In Poemas Giorgos Seféris, São Paulo: Nova Alexandria, 1995, pp. 86-87, sel., trad. e notas de José Paulo Paes. 

Quem foi Giorgos Seféris

domingo, 9 de setembro de 2012

Machado de Assis


ERRO*
(1860)

Vous...
Qui des combats du coeur n'aimez que la victoire 
Et qui revêz d 'amour, comme on rêve de gloire, 
L 'oeilfier et non voilé des pleurs...
Georges Farcy

Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na phantasia
E não chega ao coração;
Nem foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indifferente,
Em tua presença vivo,
Nullo se estavas ausente.
E se ora me vês esquivo,
Se, como outr’ora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
E que, — como obra de um dia,
Passou-me essa phantasia.

Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frivolas chimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Sahio contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A gloria de me arrastar
Ao teu carro... Vãs chimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...


* Publicado originalmente no Jornal das Famílias, sob o título Amor passageiro. (NE)

Fonte: Chrysalidas,  Belo Horizonte: Ed. Crisálida:, 2000, pp. 48-49, ed. Oséias Silas Ferraz


Cecília Meireles

CANÇÃO
Se de novo passares, 
não procures por mim. 
Preservemos o fim 
dos saudosos olhares.

Bem sei que a noite e os rios 
engendram muita flor 
parecida com o amor,
em seus ermos sombrios.

Mas nem penso aonde vais. 
Adormeço nos prados 
com os lábios ocupados 
no néctar do jamais.

Um tempo sem fronteiras 
se abriu diante de nós.
Quando tiveram voz
as verdades inteiras?

Ai, talvez noutro instante 
chegue perto de ti, 
para ver que perdi 
minha alma antiga, — e cante.

Talvez chegue, talvez, 
mas que não seja agora,
quando quem foste chora 
aquilo que não vês.

Uma vaga canção 
cantarei com doçura,
e será morte escura 
sobre o meu coração.

DECLARAÇÃO DE AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Senhora, eu vos amarei numa alcova de seda, 
entre mármores claros e altos ramos de rosas,
e cantarei por vós árias serenas 
com luar e barcas, em finas águas melodiosas.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
andavam nos campos, agora.)

Para ver vossos olhos, acenderei as velas 
que tornam suaves as pestanas e os diamantes. 
Caminharão pelos meus dedos vossas pérolas,
— por minha alma, as areias destes límpidos instantes.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
começam a sofrer, agora.)

Estaremos tão sós, entre as compactas cortinas, 
e tão graves serão nossos profundos espelhos 
que poderei deixar as minhas lágrimas tranquilas 
pelas colinas de cristal de vossos joelhos.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
estão sendo mortos, agora.)

Vós sois o meu cipreste, e a janela e a coluna 
e a estátua que ficar, — com seu vestido de hera; 
o pássaro a que um romano faz a última pergunta, 
e a flor que vem na mão ressuscitada da primavera.

(Na minha terra, os homens, Senhora, 
apodrecem no campo, agora...)

In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 356-357


sábado, 8 de setembro de 2012

Carlos Pintado

Eu gostava quando lia
um poema de são João da Cruz,
e  pensava na noite
como a única porta para o possível,
quando falava de minha escuridão
ou do cadáver de minha escuridão,
arranhando no silêncio,
a pele do silêncio,
ou quando descansava à tarde,
olhando-me nos olhos,
dizendo-me: nada nos salva da noite,
nem a noite.

(El Unicornio e outros poemas)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Miodrag Pávlovitch

O PRINCÍPIO DO POEMA
Uma mulher atravessou o rio comigo
na névoa e sob o luar,
atravessou o rio ao meu lado
e nem sei mesmo de quem se trata.

Subimos para as montanhas.
Seus cabelos longos e dourados,
coxas próximas ao caminhar.

Abandonamos leis e parentes,
olvidamos o aroma da mesa paterna,
abraçamo-nos de repente
e nem sei mesmo de quem se trata.

Não retornaremos aos telhados da cidade,
vivemos entre estrelas na planície,
exércitos não nos encontrarão,
águias tampouco,
um gigante descerá entre nós
e deverá possui-la
enquanto eu estiver caçando javalis.

E nossos filhos entoarão o princípio
desta tribo em longas canções
festejando fugitivos e deuses
que cruzaram o rio.

Miodrag Pávlovitch, Poetas do Mundo, Bosque da Maldição, Brasília: Editora UNB, 2003, p. 27-29, trad. Aleksandar Jovanovic, p. 65


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Eduardo García

TINHA QUE ENCONTRÁ-LO NUM POEMA
Saiu não sei de onde. Ia descalço,
Com o rosto manchado como então,
O jeito de um pirata diminuto,
O sorriso torto, e nos olhos
A intacta malícia.
                           Conseguiu reconhecer-me
Apesar das rugas no meu rosto,
Apesar de meu aspecto improcedente,
Meu disfarce de adulto, e a voz grave.
“Onde estavas?  - indagou. Neste verão
Sentimos tua falta. Junto ao rio
Encontramos os restos de um naufrágio.
Vamos cavar juntos. Na outra margem
Cavaleiros vigiam na emboscada.”
Tive que convencê-lo que não,
Que estava ali só por casualidade.
- Como iria acompanhá-lo
Com este corpo enorme e preguiçoso? -.
Ali nos despedimos, não sem antes
Enviar lembranças para todos.
Deixei-o em seu verão inesgotável.

Eduardo García, Antologia Pessoal, Brasília: Ed. Thesaurus, 2011, p. 39, trad. Antonio Miranda

Nasceu em São Paulo em 1965, filho de espanhóis. Viveu a sua primeira infância entre duas línguas. Permanece no Brasil até os sete anos, idade em que sua família resolve voltar a Espanha. Passa a viver em Madrid, durante a adolescência e a primeira juventude. Estuda Filosofía, cursando a sua especialidade em Pensamento Estético. Professor de Filosofía, mora em Córdoba desde o ano 1991. Tem dupla nacionalidade: espanhola e brasileira. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Roberto Piva

VISÃO 1961
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
         invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma 
         flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido 
         maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume 
         das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de 
         chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
         cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro 
         da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis
a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
         lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas 
         tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários dos manequins
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria 
         plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes 
         de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um 
         Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu 
         que renascem nas caminhadas 
noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando 
         aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos 
         visionários da Beleza
já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias 
         vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação 
         gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela 
         Noite
os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos 
         secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias 
         de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar 
         asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
         em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu 
         e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas 
         engorduradas
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas 
         sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha 
         verteram monstros inconcebíveis 
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com 
         transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos 
         das Catedrais sem Deus
imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências 
         pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão 
         de novos idiotas
os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando 
         em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse 
afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore 
         branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos 
         até o século futuro 
meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho
         platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas
          irreais do meu Delírio
arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por 
         quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas 
         adolescentes numa Apoteose de intestinos 
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando 
         a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz 
         exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo 
         cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes 
minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana semi-aberta da
         Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras 
         cruzadas no olhar 
as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris
         de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das 
         portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam 
         acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno 
         da noite no coração seco do amor solar 
meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de almofadas 
         furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno 
         estende até o Mar no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória 
         atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores 
         pulam no Caos


In Paranoia, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, pp. 7-20

Saiba quem foi Roberto Piva

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Carlos Pintado


JOY ESLAVA

My "place of clear water,"
the first hill in the world
where springs washed into
the shiny grass
and darkened cobbles
in the bed of the lane.
- Seamus Heaney

"Esta história não aconteceu, ou está para acontecer, o que dá no mesmo".

As palavras ecoaram, reverberando em sua cabeça como o som distante e impreciso das coisas que se ouvem nos sonhos. Mais tarde, procuraria algo sem saber o que  estava procurando.  O quarto parecia um deserto: uma pasta com papéis, alguns livros jogados ao chão e um espelho oval com manchas cinzentas  a ofuscar a limpidez dos reflexos. A máquina de escrever indicava que algo ficara inacabado. O barulho de uma torneira pingando abafava a música que vinha de algum lugar. O homem piscou várias vezes. Suava. Foi à torneira e a fechou abruptamente.

A música de Clannad voltou a reinar no quarto.

Perguntou-se sobre o que fora fazer em Joy Eslava  essa noite, e, na tentativa de encontrar uma resposta, lembrou-se da palavra  Anahorish, que o remetia a um poema de Heaney e às noites imaginadas num pub de Dublin.

Nesse ponto  eu entro na história.

A história que ia acontecer começou com minha ida a  Joy Eslava;  tento explicar-lhe algo desta conjunção casual, mas ele não entende; não quer entender. Tem a teimosia característica dos irlandeses. Eu tento explicar, filosofar, lembrar-lhe que num poema de Heaney existe essa palavra intraduzível. Repito Anahorish e suponho que nem ele saberá traduzi-la.  Limitou-se a sorrir e eu não sorri.  Vamos dançar,  disse. Não foi uma pergunta. Eu não queria dançar, mas não pude negar o convite; suas mãos (talvez tenha sido apenas uma mão) se entrelaçam às minhas. Procuro a confirmação desse toque  e não é possível: a penumbra imposta impede qualquer visão; as luzes explodem  nas paredes, brilham com força na fátua escuridão do bar; seus dedos se enroscam nos meus, persistentes. Anos depois eu escreveria,  numa história que nada tem a ver com esta, como um personagem lembra o outro:

 "Com teus dedos de sombra me tocaste". Eu disse algo assim, mas mal se podia ouvir. Eu não conseguiria lembrar precisamente agora. Suas palavras me levaram de volta àquele momento.

Clannad dá lugar aos  Cranberries. O teatro de teto circular ampara a noite. Viro a cabeça para olhar para algo no segundo andar e ele aproveita a oportunidade para beijar meu pescoço. Ia fazer-lhe uma pergunta, mas me calo.  Prefiro sair e inventar a história que poderia ter acontecido: sobre os dois na Joy Eslava, dançando, bêbados; eu seria o turista de passagem por Madri e ele a sombra de um sonho, uma invenção minha, embora certamente negaria isso. Não quer para si o destino que lhe dou; diz que, se existe, não é a sombra de ninguém. Ele me pegaria nos ombros e eu teria que lembrar - em outra história que escreverei - que na realidade alguém me segurou pelos ombos naquele lugar.  Em vão tentaria lembrar-me do momento em que  trocamos os agasalhos. "Então terás algo para se lembrar de mim", disse, entregando-me o casaco de peles que me fez lembrar um urso morto. Nesse momento penso que é melhor fechar os olhos; pensar nessa palavra que nunca pude traduzir e que ele não entende. A única coisa que não existe é essa palavra, ele diria.

Se eu lhe desse mais atenção, talvez escreveria melhor esta história. Escreveria: o cheiro de seu cigarro me lembra outras ervas. Admitiria, depois, que gostava de vê-lo fumar no meio da multidão colorida.  Fumaça de Dublin, penso. Como se lesse o pensamento,  pergunta-me se conheço a Irlanda. Fitamo-nos. A fumaça é uma nuvem azul em meus olhos; eu a inalo; o perfume do tabaco é diferente. Fumaça de Dublin, eu escreveria anos mais tarde, em outra história que nada tem a ver com esta. Eu explico - tento explicar -  que um dia escreveria esta história, mas ele não dá atenção. Jogamos o mesmo jogo de inventar-nos com  palavras ditas no escuro, naquele mar de beijos e cotovelos e música alta.

Acordei com um fogo ardendo em meu peito. Tentara traduzir Heaney antes de dormir. Acordei pensando nessa tradução. Sussurrei Anahorish como se eu não estivesse sozinho no quarto e alguém, nas sombras do sono, pudesse me ouvir. Esperei alguns segundos, mas nada aconteceu.  Esta história,  devo-a a ignorância daquela palavra. Levantei-me convicto  de que precisava ir a algum lugar. Pensei naquele que me lembrava uma "alegria eslava". Hesitei em ir ou ficar. Em algum lugar do meu pescoço eu  tinha a marca, ainda úmida, de um beijo.

Ao entrar, vê-lo-ia dançando. Exatamente assim: sorrindo sem olhar ninguém, com um boné inclinado para baixo,  quase tapando-lhe os olhos. Não sei se devo aproximar-me dele. Espanta-me sua pele pálida, como se há anos não tivesse visto sol. Minutos depois estávamos dançando. Fascina-me vê-lo envolvido pela luz dos holofotes.  Contra a luz seu corpo parece frágil, a ponto de perder-se na sombra.   Achego-me devagar. Como explicar-lhe que há algumas horas eu sonhara com ele? Pensaria que eu estava louco? Essa ideia me assusta. Não queria assustá-lo. Quem sabe o sonho se prolongara até aqui, até este momento em que, finalmente, estamos os dois: ele dançando, lentamente, sorrindo como um menino; eu, como uma estátua, observando a irrealidade da situação. Ainda estarei sonhando? pergunto-me, até que a voz de Dolores O´Riordan me acalma.

Estamos em Joy Eslava. Esta historia é verdadeira.  Está acontecendo, digo a mim mesmo. A voz da cantora murmura em minha cabeça, zumbi, zumbi... Volto a pensar que tudo foi um sonho. É novembro:  Joy Eslava está repleta de gente linda, de turistas, de madrilenos  que, para escapar ao frio, vêm a lugares como este. As pessoas se movem ao ritmo de um transe inatingível.   Sei que estou numa dança estranha e isso me incomoda. Vou ao bar e peço uma bebida que me tire a timidez. Teria preferido fumar um pouco. Há anos não ponho um cigarro em meus lábios. Escuto: and the violence causes silence, who are we mistaken? Tudo gira sem um centro fixo, sem gravidade, repleto de sombras que trocam beijos e abraços. Penso no garoto do sonho, que pouco a pouco vai desaparecendo de minha memória; o sonho deixa tudo muito irreal, como o poema de Heaney, que fala de um lugar tranquilo, cercado de águas quentes, onde se pode estender-se e falar. Repito a palavra, como para lembrar um conjuro - a esta altura duvido se o fato de repeti-la é de  fato um conjuro ou um surto esquizofrênico - e nesse momento um casal se senta perto de mim; vejo-os de mãos dadas; ela me olha e me cumprimenta; ele faz o mesmo; ela para de me olhar e sussurra-lhe algo; o rapaz se demora fitando-me. Eu abaixo os olhos; as mãos se entrelaçam, persistentes. Anahorish, digo, ante o arranque estridente da música. Depois disso perco a noção de tudo.  Há um fio muito tênue entre a realidade e o sonho, quando a garota deixa o rapaz e vai dançar sozinha. Meus olhos e os olhos do rapaz se encontram naquele mar de sombras e contornos enfumaçados. Ele quer dançar e eu digo sim, é claro. Suas mãos - ou talvez fosse apenas uma mão - se prendem às minhas mãos. Lembro-me de uma carícia ou da imagem de uma carícia.  A pele arrepiada pelo tato. Olho para  seu rosto, ele estava sorrindo. Em outra história, ao tentar descrevê-lo, eu escreveria: "Eu vou ser capaz de esquecer tudo sobre ele, exceto seu sorriso, suave, sensual, como o de uma menina. Mais tarde eu saberia que sua pele, ou melhor, a brancura de sua pele, era inesquecível.

Sorriu pela última vez e nos beijamos.

Quando ela voltou, ele e eu estávamos dançando. Suas mãos - muito mais suaves do que as dele - me abraçaram por trás. Senti sua língua brincalhona fincada em minha nuca. Neste momento confundo as duas histórias; há anos pintei um bosque cheio de caminhos que se cruzavam sob a neblina inglesa. Esta imagem retorna à minha memória. Pela manhã os dois serão somente uma sombra. Estarei, lamentavelmente, à margem dessa sombra. Recordarei de suas palavras: "amanhã pensarás que tudo isto foi um sonho". Vi que a menina já não estava. Surpreso, pareceu-me vê-la fugindo para algum lugar. Quis gritar-lhe algo, mas  era inútil: a música se elevava como se fôssemos surdos. Ele e eu seguimos dançando grudados com as camisas abertas. De seu peito ressumavam gotas luminosas. Sorríamos e eu pensei que poderia morrer olhando aquele sorriso.

A noite nos deixou ali como náufragos. O ar se tornava menos ar. Sem deixar de abraçá-lo, busquei o rosto dela entre as centenas de rostos que nos olhavam.  Aqui me dou conta de que esta não é a história dele nem a minha, mas a história dela. Amanhã será ela quem  a escreverá: ele e eu dançando e beijando-nos na Joy Eslava. "Não te preocupes", me acalmaria, e as palavras ecoariam como saídas de dentro de um túnel, sobrepondo-se à música. "Ela saberá terminar esta história da melhor forma que lhe pareça".

À distância,  observei-a conversando com o barman: seu corpo parecia um arco; segundos depois ela estava terminando de tragar uma bebida azul, muito azul. Sob o cone de luz seu rosto  filtrava uma certa semelhança com o do rapaz que me abraçava. No vidro do bar sua silhueta se refletia imprecisa, deformada. Réstias de uma luz difusa mantinham seu reflexo no vidro. Temi que aquela imagem fosse mais que um sonho. Senti que ela nos olhou com inveja. "Não lhe dê atenção. Tu e eu estamos onde ela não pode ir, "Eu ouvi", é por isso que ela nos sonha. Pergunto, sem entender: “Ela nos sonha”? Quando ela saiu invadiu-me o desespero de não saber o que aconteceria.  Torno a perguntar "Ela nos sonha ou nos inventa?", mas ele não sabe a resposta ou preferiu não responder. Por fim, murmurou: "só ela o sabe. Nós estamos do lado de cá das coisas". E fez um gesto que não entendi. Dancei não pelo prazer de dançar mas pela distância que dá a dança  quando há pouca coisa a falar.  Eu precisava organizar meus pensamentos.

Suas últimas palavras deixaram-me com uma sensação estranha: "se ela deixar de sonhar-nos, nós deixaremos de existir". Ao levantar os olhos vi novamente seu sorriso. Contei-lhe meu sonho, falei sobre os poemas de Heaney e sobre aquela palavra que soava em meu sonho como um eco de címbalos,  que jamais poderei traduzir. "É uma ladainha insuportável", ele disse, enquanto tentava me explicar que no sonho as coisas se repetem incansavelmente; falou de uma eternidade no sonho que não entendi. "Esta história não aconteceu, ou está por acontecer, o que é a mesma coisa", disse ao ver meu rosto assombrado pela dúvida. Fechei os olhos. Lembrei-me dessas palavras. Uma multidão enfurecida e bêbada avançava sobre mim,  vinda de todos os lados. A lembrança da chegada a Madri foi um ardil a mais. Quis negar-me a ser sonhado, mas me faltava  o desespero inato a algumas pessoas em situações tão inusitadas. Uma das portas do bar se abriu e induzi que poderia escapar. Dei alguns passos, mas sua mão segurou a minha. “Não sejas louco, ninguém escapa de um sonho. Se ela te sonha aqui é porque aqui deves ficar". Eu o escuto e fecho os olhos. O rosto dela me vem à memória. Ao abri-los estamos os três dançando. Não sei como isso aconteceu.  As mãos dela serpenteavam em meu peito, sua língua fincou-se em minha nuca. Eu descansei minha mão em seu torso nu e o afastei um pouco; ao virar, percebi que ela olhava para mim; quis mostrar-se surpreendida.  "Por que  o afastaste", ela perguntou. Sua voz soava como metal. Dei de ombros. "Foi um instinto", disse. Segurei-a pela cintura. Dançamos agarrados. A música era quase inaudível. O ar era mais fumaça  que  ar: uma névoa espessa - acumulada por tantos cigarros acesos - flutuava sobre dezenas de corpos. Dançamos como se não estivéssemos tocando o chão. Perguntei-lhe qual era seu nome, mas ela não respondeu, "Eu quero ver-te de novo", pedi, e ela sorriu. Senti o peso do silêncio. Com o canto do meu olho eu podia ver que o espelho nos duplicava. Minha mão acariciou a pele de suas costas, como se pressentisse que ela estava prestes a escapar.

“Não vou escapar; também estou presa a um sonho", respondeu-me. Enquanto nos fitávamos,  ele chegou e firmou meu ombro. Senti seus dentes lúdicos mordendo o lóbulo de minha orelha. Ela nos olhava e ria sem motivo. Ele disse:  "Eu sou o reflexo dela em teu mundo; ela não pode vir até aqui,  por isso  inventou-me ..." Tentei responder, mas ela continuou: "... e ele te inventa", eu pedi que se calasse e, como se não estivesse me ouvindo, concluiu: "... e tu também o inventas. Os três somos a matéria de teus sonhos. Nada disso existirá amanhã". Ia dizer-lhe que não era verdade, mas preferi sair.

 Comecei a andar no meio da multidão. Imaginava que a porta do bar se abria e fechava constantemente. Fui até ela. Ao empurrá-la, transportei-me ao quarto do hotel. Havia ainda o som abafado de outro lugar. Eu fecho a porta e olho para o livro de Seamus Heaney em minhas mãos. Eu acho que dormi lendo os poemas.  Repito Anahorish entendiado, com a impressão de que eu imaginara uma história na qual alguém conjectura o significado da palavra. Eu vou escrever esse conto amanhã,  digo a mim mesmo e caio no sofá. À minha direita há uma cesta cheia de papéis, um espelho oval cheio de nuvens cinzentas. O som da água vem da cozinha. Eu mal posso ouvir o disco de Clannad. Penso: "Esta história não aconteceu, ou ainda está para acontecer, o que dá no mesmo."

Eu me levanto e vou desligar a torneira.

Madri, 2 de dezembro de 1998

Fonte: http://zafralitenespanol.blogspot.com.br/2009/12/joy-eslava-de-carlos-pintado.html

Tradução livre: Antonio Damásio Rêgo Filho

Cecília Meireles

O RAMO DE FLORES DO MUSEU
1
Ó cinérea princesa, as vossas flores
ficarão para sempre mais perfeitas,
já que o tempo extinguiu brilhos e cores;
já que o tempo extinguiu a habilidosa
mão que levou, serenas e direitas,
a tulipa sucinta e a ardente rosa.

Não há mais ilusão de outra presença
que a do Amor, que inspirou graças tão finas
— que ninguém viu e em que ninguém mais pensa
porque os homens e o mundo são de ruínas.

E este ramo de pétalas franzinas,
leve, liberto da mortal sentença,
tinha, ó Princesa, fábulas divinas
em cada flor, sobre o nada suspensa.

2
Que fantasmas lerão, nas incolores
pétalas, as mensagens não aceitas
em nítidos momentos anteriores?

Que fantasmas verão a vossa airosa
figura erguendo as claras mãos desfeitas,
noutro império, a uma luz mais gloriosa?

Ó cinérea Princesa, é muito densa
no mundo humano a trama das neblinas. . .
A floresta do absurdo é negra, é imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.

Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferença.
Mas, entre vãs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vença.


OS GATOS DA TINTURARIA
Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram polícromos vestidos.

Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos, 
onde apagado cada um jazia, 
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria, 
xadrez sem fim, por onde os ruídos 
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos 
bocejos, na dispersão vazia 
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia 
da renúncia, e, tranquilos vencidos, 
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos, 
mas baixam a pálpebra fria.

BALADA DE OURO PRETO
Parei a uma porta aberta 
para mirar um ladrilho.
Veio de dentro o leproso 
como quem sai de um jazigo. 
Caminhava ao meu encontro, 
sinistramente sorrindo.

Mas vi-lhe os braços de líquen, 
e as duas mãos desfolhadas, 
que cauteloso escondia 
nos fundos bolsos das calças. 
Chamas de um secreto inferno 
em seu sorriso oscilavam.

Fora menos triste a lepra 
do que o fogo do sorriso.
E era linda aquela casa 
com o vestíbulo vazio; 
e era alegre aquela porta 
de claro azulejo antigo.

Ó santos da Idade Média, 
descei por esta ladeira, 
parai a esta porta suave, 
que de azul toda se enfeita, 
tocai estes braços fluidos 
que vão sendo rosa e areia,
tornai-os firmes e pulcros,
com mãos lisas, dedos novos,
para que este homem não fite
ninguém mais com os mesmos olhos,
e seja outro o seu sorriso
per saecula saeculorum.

[In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 341-344]



Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...