sábado, 31 de agosto de 2013

Olga Savary

UMA CENA
Vês acordada como em sonho
o sonho mau tal fosse belo
- o belo horror do real
que nem consciência nítida
ou lúcida, clara, exata -,
não como é visto sol a pino
e sim através do fogo
ou através da água,
como quem vê dentro do mar
ou através de um vidro fosco,
mais, no fundo de um espelho,
não o que mostra a imagem
mas aquele que a deforma
inteiro fora de foco.

OUTRA CENA
Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que, acordada
e de frente, vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.

Rio de Janeiro, 6 maio 1978

 In Éden-HadesIn Repertório Selvagem, Obra Reunida, Rio de Janeiro: MultiMais editorial, 1998, p. 292-293.

Madame Brassai

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Herberto Helder

II
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada 
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas, 
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas 
e o mover dos dedos 
e a suspensão da boca sobre o gosto 
confuso. Também o amor se coloca às portas 
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu 
poder estrangeiro.

Aniquilar os frutos para saber, contra 
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua 
solidão — é devotar-se, 
esgotar a amada, para ver como o amor 
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites 
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima 
a eternidade, ou que o gosto 
revela os ritmos diuturnos, os segredos 
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo 
por uma ideia, onde um pensamento 
faz a vez da língua.
— É com as vozes que o silêncio ganha.

In Lugar, In Ofício Cantante, Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 171-172.

ELIZABETH BLAYLOCK


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mariana Ianelli

DESAFIO
Um último olhar para os canteiros repisados, 
Ainda isso te comove -

São coisas familiares que retornam,
Pequenas pedras, lâmpadas de um caminho, 
Uma trilha sob o arco da folhagem 
Como se apesar de tudo os mesmos passos,
A mesma ronda, o mesmo afogueado abrigo.

Provando o rumor dos interiores,
As cores sóbrias, o lado gótico da vida, 
Pouco a pouco perdendo o fogo e o viço,

O desafio é quanto pode durar o teu sorriso 
Contra toda a tua escória, as tuas derrotas, 
No fragor dos estilhaços, algum brilho.

In O amor e Depois, São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 59

Francisco de Goya
O cão


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Rainer Maria Rilke

Fim de Outono em Veneza
A cidade sem luz já não é mais o anzol
pescando à beira-mar o dia renascido.
Os palácios de vidro emitem um sonido
mais quebradiço aos olhos. Dos jardins, o sol,

penca de marionetes em um fim da festa,
pende, exaurido, morto, de ponta-cabeça.
Mas da raiz dos esqueletos da floresta
cresce um querer: assim, durante a noite espessa,

no arsenal em vigília ordena o comandante
redobrar as galés, para que a sua frota
possa cobrir de breu a brisa da alvorada

com os remos que vão abrindo a sua rota,
e súbito, as bandeiras todas em parada,
recebe o grande vento, lúgubre e radiante.

In Augusto de Campos, Coisas e Anjos de Rilke, São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 259


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Edmond Jabès,

PARA DENISE COLOMB, 1989

Isso sempre me pareceu evidente.

O deserto é, antes de tudo, a perda do rosto.

A imagem, em sua muda violência, é sonora.

Ela coage a perfeita escuta: a do infinito, da eternidade,
do Tudo tornado novamente o Nada;

pois é a partir desse Nada teimoso, envolto de silêncio que,
de ora em diante, veremos e ouviremos.

Um rosto emerso de sua ausência. Desenhado à medida que
esta o descreve.

Ousaremos fixá-lo? Não, jamais o poderíamos.

Todos esses rostos me falam. Eu os reconheço.

Vindos dos mais longínquos, como se o infinito se entrea-
brisse.

A solidão é povoada.

In DESEJO DE UM COMEÇO, ANGÚSTIA DE UM SÓ FIM, A MEMÓRIA E A MAO - UM OLHAR, São Paulo, Lumme Editor, trad. Armanda Mendes Casal & Eclair Antonio Almeida Filho, 2013, p. 148.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Isabel Mendes Ferreira

descobri que só somos importantes para a meia dúzia de almas que nos seguram os dias. todos os dias.o resto é mera passagem de interesses vários e alguns desconcertantes e deste inventário triste nem a morte é substância. a grande loba abre a boca do esquecimento.
______________________________________________obsessiva a carne que embrulha a mão que mata.


Isabel Mendes Ferreira (Inédito, com especial licença da autora)


 

domingo, 25 de agosto de 2013

Paul Verlaine

Meu sonho familiar
Muitas vezes, o sonho estranho me surpreende
de uma ignota mulher que eu amo e que me adora,
e que a mesma não é, certamente, a toda hora,
não sendo outra, porém, e me ama e me compreende.
Todo o meu coração deixo que ela o desvende.
Ela somente o faz transparente e o avigora,
E se eu sofro, se a dor minha fronte descora,
ela é o consolo ideal que sobre mim se estende.
É ela trigueira, ou loira, ou ruiva? – Eu o ignoro.
Seu nome? Apenas sei que ele é doce e sonoro
como o de quem se amou e da vida fugiu.
Seu olhar, como o olhar de uma estátua, é sem alma,
e tem na sua voz, grave, longínqua e calma,
a inflexão de uma voz cara que se extinguiu.
(Trad. de Onestaldo de Pennafort)

Canção de outono
Estes lamentos
Dos violões lentos
     Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
     De sono.
E soluçando,
Pálido quando
     Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
     De outrora.
E vou à-toa
No ar mau que voa,
     Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
     E morta.  
(Trad. de Guilherme de Almeida)
             
O amor por terra
O vento da outra noite atirou em baixo o Amor
que num canto do parque, o mais misterioso,
brandindo o arco traidor, sorria, malicioso,
e que um dia nos fez sonhar com tanto ardor!
O vento da outra noite o derrubou! O mármore
à brisa matinal rola, esparso. E contrista
olhar-se o pedestal, onde o nome do artista
se lê dificilmente entre as sombras de uma árvore.
Oh! como é triste ver somente o pedestal
de pé! E, no meu pobre e atormentado sonho,
os pensamentos maus vão e vêm, no medonho
pressentimento de um futuro ermo e fatal.
Como é triste! E tu mesma estás enternecida
com esse quadro, se bem que te distraia o olhar
aquela borboleta, ouro e púrpura, a voar
sobre as ruínas do Amor que juncam a avenida.
(Trad. de Onestaldo de Pennafort)        
         
Em surdina
Calmos, na sombra incolor
Que dos galhos altos vem,
Impregnemos nosso amor
Deste silêncio de além.
Juntemos os corações
E as almas sentimentais
Entre as vagas lassidões
Das framboesas, dos pinhais.
Cerra um pouco o olhar, no teu
Seio pousa a tua mão,
E da alma que adormeceu
Afasta toda intenção.
Deixemo-nos persuadir
Pelo sopro embalador
Que vem a teus pés franzir
As ondas da relva em flor.
A noite solene, então,
Dos robles negros cairá,
E, voz da nossa aflição,
O rouxinol cantará.
(Trad. de Guilherme de Almeida)

Colóquio sentimental
No velho parque frio e abandonado
Duas formas passaram, lado a lado.
Olhos sem vida já, lábios tremendo,
Apenas se ouve o que elas vão dizendo.
No velho parque frio e abandonado,
Dois vultos evocaram o passado.
- Lembras-te bem do nosso amor de outrora?
- Por que é que hei de lembrar-me disso agora?
- Bate sempre por mim teu coração?
Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.
- Ah! aqueles dias de êxtase indizível
Em que as bocas se uniam! – É possível.
- Como era azul o céu, e grande, o sonho!
- Esse sonho sumiu no céu tristonho.
Assim por entre as moitas eles iam,
E só a noite escutou o que diziam.
(Trad. de Guilherme de Almeida)

O lar, o resplendor
O lar, o resplendor da lâmpada velada;
o divagar com a fronte entre as mãos apoiada
e os olhos se perdendo entre os olhos amados;
a hora do chá sutil e dos livros fechados;
o êxtase de sentir a tarde agonizante;
o lânguido cansaço; a espera inebriante
da sombra nupcial dentro da noite mansa…
Oh! atrás disso tudo o meu sonho se lança,
a contar, apesar de demoras insanas,
impacientemente, os meses e as semanas!
(Trad. de Onestaldo de Pennafort)

O ruído dos cafés
O ruído dos cafés; a lama das calçadas;
os plátanos pelo ar desfolhando as ramadas;
o ônibus, furacão de rodas e engrenagens,
enlameado, a ranger num rumor de ferragens
e girando o olho verde e rubro das lanternas;
os operários a caminho das tavernas,
com os cachimbos à boca a afrontarem os guardas;
paredes a ruir; telhados de mansardas;
sarjetas pelo chão resvaladiço e imundo, -
tal meu caminho, – mas com o paraíso ao fundo.
 (Trad. de Onestaldo de Pennafort)  

Arte poética
                         A Charles Morice
Antes de tudo, a Música. Preza
Portanto, o Ímpar. Só cabe usar
O que é mais vago e solúvel no ar
Sem nada em si que pousa ou que pesa.
Pesar palavras será preciso,
Mas com certo desdém pela pinça:
Nada melhor do que a canção cinza
Onde o Indeciso se une ao Preciso.
Uns belos olhos atrás do véu,
O lusco-fusco no meio-dia
A turba azul de estrelas que estria
O outono agônico pelo céu!
Pois a Nuance é que leva a palma,
Nada de Cor, somente a nuance!
nuance, só, que nos afiance
o sonho ao sonho e a flauta na alma!
Foge do Chiste, a Farpa mesquinha,
Frase de espírito, Riso alvar,
Que o olho do Azul faz lacrimejar,
Alho plebeu de baixa cozinha!
A eloquência? Torce-lhe o pescoço!
E convém empregar de uma vez
A rima com certa sensatez
Ou vamos todos parar no fosso!
Quem nos dirá dos males da rima!
Que surdo absurdo ou que negro louco
Forjou em joia este toco oco
Que soa falso e vil sob a lima?
Música ainda, e eternamente!
Que teu verso seja o voo alto
Que se desprende da alma no salto
Para outros céus e para outra mente.
Que teu verso seja a aventura
Esparsa ao árdego ar da manhã
Que enche de aroma ótimo e a hortelã…
E todo o resto é literatura.
(Trad.  de Augusto de Campos)

Fonte: escamandro.wordpress.com/

Sobre Paul Verlaine  



mary ann boysen
      

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sábado, 24 de agosto de 2013

Eugenio Montale

Tudo logo será mais rude no mar 
que florescerá com tons mais sombrios. 
Entretanto está assim, sob o dilúvio 
do sol por terminar.

Uma ondulação subverte
formas limites já agora abstratos:
toda força decidida diverge
do curso. A vida vai crescendo aos saltos.

E como fosse fogueira sem fogo 
que se preparava para claras senhas: 
nesse lume o nosso faz-se pouco, 
nessa chama ardem rostos e empenhos.

Desaperta teu coração repleto 
no abrir-se de uma vaga; 
afunda como pedra de lastro 
o teu nome com um baque na água!

Um delírio astral é desencadeado, 
um mal calmo e luzente.
Veremos a hora da serenidade 
vir-nos talvez pela esfera ardente.

Encostas sobre nós declinam 
de vinhas baixas, em planos. 
Respigadoras lá em cima cantam 
com vozes desumanas.

Oh a vindima estiva, 
a distorção no curso
das estrelas! — de onde em nós deriva
um estupor com laivos de remorso.

Falas e a própria voz não reconheces.
A memória parece-te apagada.
Com o que passaste ainda sentes 
a tua vida consumada.

Agora, o que há de ser? — teu peso provas 
de novo, inesperado assenta 
nos seus eixos tudo quanto oscilava, 
e o encanto não se sustenta.

Ah aqui hemos de estar, sem diferença. 
Imóveis assim. Nossa voz ninguém 
mais escuta. Submersos assim 
numa voragem de azul que se adensa.

In Ossos de Sépia, p. 179-181.


GUSTAVE COUBERT

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Pedro Paixão

Só uma vez

Coimbra é uma cidade perigosíssima. Nunca se sabe o que pode acontecer. O mais certo é não acontecer nada. E isso que faz aumentar o perigo. Quando as possibilidades se reduzem, a intensidade do que acontece aumenta exponencialmente. Isto é uma teoria que eu tenho e que por vezes se verifica.

Entrei no Captain e vi-o. O amor tinha menos quinze anos do que eu, um menino lindo. E tinha aquele ar escocês porque tinha estado dois anos em Inglaterra a tentar estudar Biologia, mas não tinha agüentado não sei o quê. Quando demos por isso eu já lhe estava a mexer e ele já me estava a mexer. Em Coimbra é perigosíssimo. As noites duram semanas, saltam-se as estações e os corações vêm à boca para se morder. Quando saímos atravessamos um jardim de árvores muito altas e copas muito escuras e levou-me para casa dele. Uma mansão abandonada, sem electricidade nem água canalizada. Tinha chegado há pouco tempo, disse-me ele. Eu não queria saber. Achei um luxo, vinte velas acesas e uma lareira frente à cama para onde me atirou ou onde tropeçamos e caímos. E claro que agora tudo é perigosíssimo e tive de o ir acalmando como pude, devagarinho. O meu menino, eu já gostava tanto dele. E fizemos o que foi possível fazer e é sempre tanto, sempre demais. Por fim adormeceu a falar-me na mãe dele. Depois saí para ir ao encontro do meu marido que me esperava impaciente no hotel, desejando que eu o satisfizesse, o que foi um duplo prazer porque trazia ainda comigo nos olhos fechados o meu lindo escocês. Em Coimbra é preciosíssimo. Tudo acaba sempre por acontecer. Mas só uma vez.

In ´Nos teus braços morreríamos", Rio de Janeiro, Gryphus, 2004, p. 93

Sobre o Autor


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Hermann Hesse

NOITE
Acabo de apagar a minha vela: 
pela janela aberta a noite vem, 
me abraça com doçura, e me permite
ser amigo e irmão dela.

Sofremos ambos da mesma saudade: 
cheio de augúrios nosso sonho vai, 
e cochichamos sobre velhos tempos 
em casa de nosso pai.

In Andares, Antologia Poética, tr. Geir Campos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 55



quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Edmond Jabès

ROSTOS PARA ANTONIO SAURA, 1987 (Excerto)

... esse mundo tem um rosto: o nosso.

Vira, para mim, teu rosto.
O universo é, de verdade, tão pequeno?

O rosto envelhece com o nome já velho.

Estrangeiro. E tanto tenho errado. E, quantas vezes, reedificado?

Que tenho eu, ah, dizei, vós que me conhecestes, que tenho eu guardado para mim?

Absolutidade do Nada.

Tivéramos nossos reis.
Mas esses reis estão mortos.
Tivéramos nossos príncipes.
Mas esses príncipes pereceram.
Tivéramos nossos sábios.
Mas, sábios, eles viraram a página de sua vida. 
Fôramos um povo.
Mas esse povo se dispersou.
Somos o livro, 
no coração do incêndio.

Com as chamas que, uma noite, lamberam nossos livros, pintaremos, sobre cada guarda-fogo, um rosto vivaz.

In DESEJO DE UM COMEÇO, ANGÚSTIA DE UM SÓ FIM, A MEMÓRIA E A MAO - UM OLHAR, São Paulo, Lumme Editor, trad. Armanda Mendes Casal & Eclair Antonio Almeida Filho, 2013, p. 138

ANTONIO SAURA




terça-feira, 20 de agosto de 2013

Arthur Rimbaud

Canção da Mais Alta Torre

Juventude ociosa
Escrava e submissa, 
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.

Disse a mim mesmo: abandona,
E que ninguém te veja:
Nem mesmo a promessa
De alegrias mais altas.
Que nada te prenda, ou pare
Sublime retirada.

Dei tantas mostras de paciência
Que tudo eu para sempre olvide;
Temores e dores
Volatizaram-se nos céus.
Mesmo se uma sede doentia
Me obscurece as veias.

Assim o Prado
Deixado ao abandono,
Maturado e enflorido,
De cores-odores e ervas daninhas,
Entregue ao zumbido ensurdecedor
e cem moscas nojentas.

Ah! Mil vezes viúvo
Da trist’alma nua
Sem outra imagem
Que a da Senhora Mãe!
Será que se ora
À Virgem Maria?

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Em que os corações se apaixonam.

in O Rapaz Raro. Tradução:  Maria Gabriela Llansol




segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Attila József

3.
te amo como a mãe ama em silêncio seu menino, 
como as cavernas suas profundezas,
como os cômodos à luz, 
como o  espírito à chama e o corpo ama o repouso. 

Guardo teus sorrisos, tuas idas e vindas, tuas palavras
como a terra guarda os objetos que caem em seu seio.
Em meus instintos gravei
como  ácidos no metal,
tua doce imagem:
lá teu ser  preenche a tudo que é essencial.

Os instantes passam ruidosamente,
mas tu ficas, silenciosa,  em meus ouvidos.
As estrelas se acendem e se apagam, 
mas tu permaneces  em meus olhos.
Como o silêncio em uma gruta
teu gosto flutua cálido em minha boca,
erguem um vaso de água tuas mãos,
e nelas tua fina rede de veias,
recompõem a aurora por momentos. 

Ode - (fragmento)

Sobre o autor

Kazimir Malevich


domingo, 18 de agosto de 2013

Valery Larbaud

ALMA PERDIDA
A vós, aspirações vagas; entusiasmos;
cismas depois do almoço; impulsos do coração;
enternecimento que vem com a satisfação
das necessidades naturais; clarões de gênio; apaziguamento
da digestão bem feita; alegrias sem causa;
distúrbios da circulação do sangue; recordações de amor;
perfume de benjoim do banho matinal; sonhos de amor;
minha enorme molecagem castelhana, minha imensa
tristeza puritana, meus gostos especiais:
chocolate, bombons, doces de derreter, bebidas geladas;
charutos entorpecentes e vós, acalentadores cigarros;
alegrias da velocidade; doçura de ficar sentado; delícia
do sono na completa escuridão;
grande poesia das coisas; noticiário de polícia; viagens;
tziganos; passeios de trenó; chuva no mar;
loucura da noite febril, sozinho com alguns livros;
oscilações do temperamento e do tempo;
instantes de outra vida, reaparecidos; recordações, profecias;
ó esplendor da vida comum e do ramerrão quotidiano,
a vós esta alma perdida.

In Poesia Traduzida, Carlos Drummond de Andrade, São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 211


ODILON REDON

sábado, 17 de agosto de 2013

Hélia Correia

29.

«Que o meu corpo não seja», escreveu ele,
«Levado, entregue a túmulo inglês.»
Mas foi. Que pode um voto, que podia
Um último poema, dito a custo,
Por quem se ergueu do leito nessa casa
Que o fogo em breve iria destruir,
O que pode o desejo contra a ordem?
Que segurou nos braços essa Grécia
A quem ele deu tudo, quando as urnas,
A do corpo e a das vísceras embarcaram?
Ficou, pois já o tinham oferecido
Em pedaços, ao povo, o órgão duplo,
O da inspiração, esse em que o ar
Transportador da musa, se demora
No milagre da química, esse, sim,
Perdido para sempre, ali ficou.


In A Terceira miséria, Lisboa, Relógio d´água, 2012



rachelle

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Maria do Sameiro Barroso

ABÓBADAS IMPRECISAS

Sobre um leito de açucenas, as cicatrizes amontoam-se.
Nos fluidos imperceptíveis, a penumbra dispersa
os antigos turbilhões, cobertos de ramagens lúgubres,
e os ranúnculos sacodem o ar, a noite das avencas,
a boca toda sem pressa de concluir a palavra,
o limite, a suavidade;

o mar suspenso entre constelações preciosas,
as palavras crescendo,
a terra vibrando num ritual análogo de velas, redes,
sargaços, sulcando a luz, os sons do nevoeiro;

os cachos, as páginas, os frutos revolvidos
diante do maravilhoso enigma da relva que respira
e vive, no lacre silencioso, fechado numa garrafa de mar.

Nas antigas gretas da geada, há borboletas rosadas,
inesperadas lunações, cristais preciosos
e a vida pode ser o início, um princípio,
entre feridas sem regresso, abóbadas imprecisas,
guizos que chocalham

pássaros ungidos com água de chuva,
insectos sobre os nenúfares lavrando a caligrafia
ardente, sublime,

sob a lua abundante que segreda uniões.

In “Meandros Translúcidos"



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

José Jorge Letria

TEORIA GERAL DA CHUVA
A chuva não sabe enterrar os mortos
nem apagar a dor de quem os chora.
É torrencial e abrupta como a paixão
invernosa dos amantes sem remorso.
À noite oiço-a bater no telhado, sincopada,
com a sua presença felina e esquiva,
e cada gota é uma sílaba, um aviso,
um compasso triste de um alonga espera.
E a chuva vai e volta, herdeira
da pureza das fontes e da saudade das águas.
Vêm os mortos e lavam-se na chuva,
com os seus cântaros e as suas conchas,
com os seus crepes e com os seus murmúrios.
Por vezes, acende-se uma luz dentro da chuva
e a noite torna-se retangular e ostensiva,
sem nada que a comprometa com a ternura.
Escancara as portas e expulsa os intrusos.
Nunca procurei ninguém nos recantos da chuva,
nem nas folhas do chá, nem na insónia
das bebidas espessas e recônditas.
A chuva aprendeu a lavar as almas,
mas depressa se esqueceu do método e da hora,
porque é leviana e volátil como os corpos
que se entregam e se esgotam no furor da conquista.
Foi a chuva que me encheu a boca
de vocábulos lamacentos e brutais
que não são sequer dignos do leitor.


oo00oo

AS CIDADES CÚMPLICES
As cidades são a minha fuga, o meu refúgio,
o meu lugar de não ter nome, de não ter casa.
Fujo para as cidades para me perder de mim,
para só me encontrar nos livros que trago
dos esconderijos mais secretos das cidades.
As cidades são as minhas cúmplices. Elas sabem-no.
Tal como acontece com os livros,
sei que nem dez vidas me chegariam para as ler,
para as aprender, para me apaixonar por elas.
São amores fugazes, apressados, indolores.
Não deixam cicatrizes nem remorsos. Apagam-se devagar,
como os círculos ou as estrelas desenhadas a giz
no quadro mais negro do negrume da tristeza.
As cidades são o cálice minguado
em que entorno a luz em vez de vinho,
em que derramo a espuma em vez do néctar.
Retrato-as, retrato-me nelas vorazmente,
sempre a cores, junto das fontes, à porta das catedrais,
sobre as pontes, encostado às estátuas
que dão sombra à sonolência alada dos pombos doentes.
Eu nunca trago as cidades comigo.
Deixo nelas, como penhor da alma, o fio de uma saudade
que o tempo se encarrega de cortar
no ponto em que a ausência sabe a mágoa.

oo00oo

SOBRE OS POETAS QUE INVENTAM
Tenho na mesa uma estrela do mar
e na almofada uma rosa dos ventos.
Tudo me sabe a viagem, mesmo quando
permaneço imóvel, separando no cais
o centeio e o vinho, a pimenta e o ouro.
Não fui almirante de nenhuma armada
nem grumete de nenhum naufrágio;
fui a nau frágil da loucura das ondas,
o albatroz rendido ao chamamento do longe,
a sereia apodrecida nas redes da faina.
Nesse tempo em que eu era tudo e não era nada,
em que existia somente na perdição dos mapas,
vinham as viúvas chorar por mim
com lágrimas do tamanho de pérolas,
do tamanho de conchas no desespero das dunas.
Ai dos poetas que se alimentam apenas do vivido,
ai dos olhos vencidos pela evidência do real.
Eu sou dos que inventam, dos que sempre inventaram,
dos que não podem ser levados a sério,
mesmo quando vestem a roupagem da tristeza absoluta.
Um poeta não pode resumir-se ao que é tangível,
sob pena de ser pequeno de mais para caber num verso.

In Produto Interno Lírico, Lisboa: Visão-Frente e Verso, 2010, p.11-12, 24,33.

Sobre o Autor






quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Isabel Mendes Ferreira

tudo o que digo e escrevo não passa de falso adubo com que adubo a sigla do teu nome. terra íngreme e escarpada de pedras certeiras onde o eco é só sentimento e sedimento. instantes de pobres canteiros sem jardineiro nem plátanos para me resguardar do tempo. inteiras amarras que o grande nome amarra à urze e à saudade. tudo o que não digo é um louvor à voz do silêncio. a galgar os pinheiros bravios e a ser pálido reflexo do timbre asfaltado que a cidade sublima e o corpo amortece.
____________________________________________haja terra para me ser casa e crepúsculo. gravo nela o passo sem náusea.

oo00oo
há quanto tempo não te amava assim. lisboa. fragmentada de águas. memórias inchadas de prazer. assim caída nos meus ombros à deriva por outros mares outras marés outros cheiros mas sempre rente à música do teu ventre inclinado para o tejo. há quanto tempo não te fazia e dizia amor nos dentes. amor nas ancas dedilhadas por farpas e guitarras e vielas... assim te desdigo saudade. e volto aos teus flancos como gaivota em dezembros líquidos e densos. oleosos. florestais. lisboa de um piano que finalmente se cala. neste aqui. que já foi tanto. mesmo quando tocava sangue e silêncio. não é de adeus que te falo. é de mais longe. de mais logo. de outro lugar. as árvores dão ramos. que fazem de ninho. onde me aninho. e beijo-te lisboa. de teclas acesas. amanhã. outro rio. e voltar é o princípio.

oo00oo
e nesta longa noite insone que é o dia chega a galope a porta de ida. longos cabelos de vidro. longa a asa que esconde o sol. destapo e recorto cada hora como se última fosse nas tuas mãos. mártir e guerreiro escreves-me um hino de sílabas átonas para que a noite não volte a ser o soalho do medo. os teus versos são agora escamas. que injectas nas veias. relator de hinos incompletos mas sempre em declinação de salmos. um dia este outro dia será apenas relance.__________________________enquanto não há uma casa que bombardeio com pombas e algumas faces quentes.

oo00oo
sou de lugar nenhum.enquanto a palha arde. como fogo oficioso. diário de signos onde as navalhas se limpam ao sol para que este as molde em infaustas moedas falsas. sou de antes. de muito mais antigamente que a fala. o vento foi o cordel que desatei. e em cada sementeira fiz de conta que era ninho. sem árvore. sem dono. apenas o lugar de um instante. sem chão. breve visibilidade familiar onde cada aparição é silhueta sem sombra.
_____________________o tojo. os atalhos. o caos em sossego.


oo00oo
e pergunta-me um rio bastardo porque me não faço ao mar. respondo doce e ductilmente que há muito me encharco de pó nas margens das sete montanhas. sou sem ser o grito esgotado e os círios esquecidos ao canto dos amores. em ilha ergo o cadáver do corpo cego de ecos. e pergunta-me a geografia que abrigo é este onde imito um bosque para ser apenas mancha. nada. respondo. nenhum caminho me será próximo. antes travessia. estranha.______________________cama de negros cordeiros que em sendo ásperos lincham o medo. e tudo passa a sustento.

(Inéditos)




terça-feira, 13 de agosto de 2013

Maria Lúcia Dal Farra

RETRATO DE MULHER DE FRENTE

De tanto esperar pelo meu olhar,
enrubesceu. Aguardou-o
anos a fio
mas emana dela ainda
a mesma timidez
igual esperança. Há
(quem sabe)
uma indagação impossível
na boca rubra e natural.

A aura do objeto
mistura-se a seu cabelo
como se a existência
tivesse transcendido o momento
em que por certo nos encontraríamos.

Malgrado estar eu aqui -
tudo nela ainda espera por mim.

Maria Lúcia Dal Farra, Livro de Possuídos, São Paulo, Iluminuras, 2002, p. 133

CÍCERO DIAS

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Adriana Lisboa

Excerto de "Hanói"
A dor parecia mais forte do que nunca. Veio de madrugada, quando não havia mais do que uma mínima sugestão de luz no seu quarto. David estava sozinho, como queria. Certo? Não era o que ele queria?

Levantou-se para pegar o analgésico. Suava frio. A náusea agarrou seu estômago e ele vomitou ajoelhado diante do vaso, no banheiro do seu apartamento já quase vazio.

Alex não estava, nem Bruno, nem Trung ou Huong ou Linh. Seus amigos músicos não estavam. Lisa não estava. Bob e seus antigos colegas de trabalho não estavam. Os escritores famosos que haviam autografado livros para ele quando trabalhava na livraria em Gold Coast, a garota ra­diante da tribo indígena canadense. Luiz. Guada­lupe. Seus primos. Miles Davis, Louis Armstrong e Dizzie Gillespie não estavam. Christian Scott. Nem mesmo seu trompete estava ali com ele.

Era somente a dor vertiginosa, a vontade de descolar a cabeça do resto do corpo e atirá-la pela janela, como Lisa tinha feito com o trompete. A dor e a cerâmica do vaso sanitário e a água boiando ali, a água sempre voltando a boiar ali educadamente todas as vezes que ele dava descarga. Seu estômago cuspindo o que houvesse para cuspir e o que não houvesse. A nata de suor frio na testa, nas mãos.

Era extraordinário como a dor simplificava as coisas.

Ele tomou o analgésico quando conseguiu parar de vomitar, e foi se deitar de novo.

Pensou em conchas.

Pensou no que estariam fazendo todas aquelas pessoas em Capitão Andrade, as pessoas que tinham visto Luiz ir embora décadas antes, naquela leva contínua de romeiros escorrendo he­misfério acima.

Perguntou-se onde estaria o piano da avó de Guadalupe, em Hermosillo.

Pensou em Cuauhtémoc e seus pés quei­mando sob orientação de Hernán Cortés. E no coração dos espanhóis prisioneiros, arrancados de seus corpos em altares sacrificiais antes da queda da capital do império asteca.

Pensou no cachorro Oscar e no chocolate do seu último dia.

Deixou que os pensamentos fossem saindo uns de dentro dos outros como as salas de um imenso museu, até sobrar somente o cansaço.

[Lisboa, A. Hanói, Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, pp. 201-203].



domingo, 11 de agosto de 2013

Antonio Carlos Secchin

À NOITE,
A Waly Salomão

todas as palavras são pretas 
todos os gatos são tardos 
todos os sonhos são póstumos 
todos os barcos são gélidos
à noite são os passos todos trôpegos 
os músculos são sôfregos 
e as máscaras, anêmicas 
todos pálidos, os versos
todos os medos são pânicos 
todas as frutas são pêssegos 
e são pássaros todos os planos 
todos os ritmos são lúbricos 
são tônicos todos os gritos 
todos os gozos são santos

In Todos os ventos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 48

sábado, 10 de agosto de 2013

Dante Milano

SEPARAÇÃO
Onde andarás sem mim nessas ruas enormes?
Quem te acompanha? Quem contigo ri?
Sob as mesmas cobertas com quem dorme
Quem te ama senão eu? Quem pensa em ti?

Vagas sem ter aonde ir e sem saber
O que fazer, ou sem prazer nenhum
Em mãos alheias como um bem comum
A outro te entregas sem lhe pertencer.

Estou pensando em ti... Pensar é estar sozinho...

Sobre o Autor


Emad Rizk

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Rainer Maria Rilke

NASCIMENTO DE VÊNUS
Esta manhã, depois que a noite inquieta
esmoreceu entre urros, sustos, surtos, -
o mar ainda uma vez se abriu e uivou.
E quando o grito aos poucos foi cessando
e do alto o dia pálido emergente
caiu no vórtice dos peixes mudos -:
o mar pariu.


Ao sol reluzem os pelos de espuma
do amplo ventre da onda, em cuja borda
surge a mulher, alva, trêmula e úmida.
E como a folha nova que estremece,
se estira e rompe aos poucos a clausura,
ela vai desvelando o corpo à brisa
e ao vento intacto da manhã.


Como luas erguem-se os joelhos claros,
réstias de nuvens soltam-se das coxas,
das pernas caem pequeninas sombras,
os pés se movem bêbados de luz,
vibram as juntas como gorgolhantes
gargantas.


Na taça da bacia jaz o corpo,
como um fruto na mão de uma criança,
o estreito cálice do umbigo encerra
tudo o que é escuro nessa clara vida.
Em baixo alteiam-se as pequenas ondas
que escorrem, incessantes, pelas ancas,
onde, de quando em quando, a espuma chove.
Porém, exposto, sem sombras, emerge,
como um maço de bétulas de abril,
quente, vazio e descoberto, o sexo.


A balança dos ombros paira, ágil,
em equilíbrio sobre o corpo ereto
que irrompe da bacia como fonte
vacilante entre os longos braços fluindo
veloz pela cascata dos cabelos.


Então bem lentamente vem o rosto:
da sombra estreita da reclinação
para a clara altitude horizontal.
Após o qual fecha-se, abrupto, o queixo.


Eis que o pescoço surge como um fluxo
de luz, ou talo, de onde a seiva sobe,
e se estiram o s braços como o colo
de um cisne quando busca a ribanceira.


Então, da obscura aurora desse corpo,
ar da manhã, vem o primeiro alento.
No fio mais tênue da árvore das veias
há como que um bulício e o sangue flui
a sussurrar nas fundas galerias,
e essa brisa se expande: agora cresce
com todo o hausto sobre os peitos novos
que se intumescem de ar e a impulsionam, _
e como velas côncavas de vento
levam a jovem para a praia.


Assim aportou a deusa.

Atrás dela, pisando a terra nova,
lépida, ergueram-se toda a manhã
flores e caules, quentes, perturbados,
como num beijo. E ela foi e correu.

Porém, ao meio dia, na hora mais intensa,
o mar se abriu de novo e arremessou
no mesmo ponto o corpo de um delfim.
Morto, roxo e oco.


In Coisas e anjos de Rilke, 130 poemas traduzidos, Augusto de Campos, 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, 193-199

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Alberto Pucheu

O MUNDO, A NANQUIM
Os traços já vão se apagando, mais de quinhentos
anos passados. Quando a tinta ainda era fresca,
os traços já iam se apagando. Os galhos retorcidos
estão aqui, os mesmos galhos com o frescor de sempre
atiçando os troncos no ar. Posso vê-los recortando
o espaço, prolongando a rocha, desenhando trilhas.
Subir pelo caminho deserto provocaria em mim
ora uma sensação de descanso, ora um cansaço
da solidão excessiva. Um pouco abaixo do centro,
à direita, uma moita de bambus curvados pelo tempo.
Deve haver alguém por perto para aprender a lição.
O solo branco, de neve. Não: não faz o frio
que ela causaria. Talvez, sejam apenas os traços
se apagando, o papel branco aparecendo com o gesto do
pincel. No bosque de bambu, algumas manchas se assemelham,
quem sabe, a uma casa camuflada com arbustos
e relevos do solo. Por toda montanha, pelas rochas
e pelos bambus, pelos troncos e pelos galhos, pela
espessura da tinta no alto da página e pelo capim delgado
na planície, pelas águas e pelos barcos pesqueiros,
mesmo pela casa escondida por toda a paisagem e pelos
ideogramas que por nada decifro, só não encontro aquilo
para que o título, com humor, aponta: um homem
lendo, numa cabana do ermo bosque de bambu.

In Ecometria do silêncio, in A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007), Rio de Janeiro, Azougue Editorial, p. 87


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Else Lasker-Schüler

Resignação
Maternal e suave, abraça-me,
e mostra-me o reino do céu,
noite sonhadora;
E descansa minhas dores
Escondidas em teu regaço
sobre rosas e folhas prateadas
no profundo pó da terra.

Na luz e no brilho crepuscular
teus sonhos se pulverizam
no azul suntuoso das nuvens.
Preparo-me para a batalha do dia.
Anseio pela noite eterna
para esvair-me em silêncio no vermelho da tarde,
em teu braço salvador, morte.

 
ODILON REDON

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Lélia Coelho Frota

FINESTRA DA ENCLAUSURADA
Claridade cobalto
de mar que se adianta
em máquinas de alto
azul, pura faiança

Partida no minuto
daquela intimidade
festiva e cariciosa
em que a praia se alcança.
O melhor do mar
é ser azular
o melhor do mar
é não ser tangível:
resistir ao olhar
e manter-se incrível.
O melhor do mar
é ser impossível:
permitir presença
de corpo sensível
sem jamais deter-se,
transparente veste
sobre a pele clara.
O melhor do mar é fluir
em nível
desapercebido
de incursão qualquer
no fluido tecido
de aéreos pavilhões
— água estremecida
pelos reinos do
coral devaneio.
Pela definida
moldura, pelos quatro
limites que o seccionam
no quadrado aberto
da extática janela
na prisão diária
e abrem
pela sombra adentro
radioso alarme
de alegria, ia
o coração num til
refletindo o inteiro
triunfo da espuma
pulsando, fugindo
da fria pupila
do relógio seu
piscar burocrata seu
rotulado zelo.
Até que em ampla parábola
de um consolo universal
eis que mesmo o pensamento
em meio a azul se desmancha
e o olhar, apenas liberto,
se evade, pequena mancha,
lá, no perfeito horizonte
que justo agora dissolve
discreta, ligeira lancha.

[In Caprichoso Desacerto, in Poesia Reunida 1956-2006, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2013, pp. 230-231].


ODILON REDON



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Mariana Ianelli

EM MEMÓRIA DE HILDA HILST
Pediste luz
Mas o que realmente
Te terá trazido esse dia?
O enigma ecoa numa voz antiga.

Existência monástica a tua,
De atirar-se ao sumo do mínimo.
Convicção de teu corpo
De que pela mente melhor se caminha.

(Houve luz nesse dia?)
As paredes, cansadas de estar sempre hirtas, ruíram 
Se querias abrigo, que tuas mãos te cobrissem.
(Mas na luz o que viste?)

De súbito mais nada era teu.
A selvageria das horas 
Arrebatou os teus poucos requintes,
Livrou-te dos desperdícios.

Os ponteiros retrocediam.
De vidas perfeitas, que te restava?
Das plantas, seu látego, dos porcos, sua pocilga. 
Uma peste de rosas, antúrios e orquídeas.

In Fazer Silêncio, São Paulo, Iluminuras, 2005, p. 31


Hilda Hilst, por Jotta Pinheiro


domingo, 4 de agosto de 2013

João Luís Barreto Guimarães

Outro dia
Deixo agora que o dia me torne
um pouco mais dele. Saio
até à varanda e as chaminés dos telhados
devolvem de todas as vezes seu
pretérito fascínio.
Os dias vão mais pequenos. As 
árvores por vezes cantam é 
a música das manhãs que se espraia 
como um cheiro a fuel vindo das docas. Porque 
(sem querer) é
outro dia. Certo como fosse meu. A 
mais simples distracção tomará 
alma por 
lama.

In Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2011, p. 227

Wu Guanzhong

sábado, 3 de agosto de 2013

Archibald MacLeish

Haverá pouca coisa a esquecer
Haverá pouca coisa a esquecer:
O voo dos corvos,
Uma rua molhada,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o por do Sol,
Três palavras que o mundo sabe,
Pouca coisa a esquecer.

Será bem fácil de esquecer.
A chuva pinga
Na argila rasa
E lava lábios,
Olhos e cérebro.
A chuva pinga na argila rasa.

A chuva mansa lavará tudo:
O voo dos corvos,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o pôr do Sol.
Lavará tudo, até chegar
Aos duros ossos desnudados,
E os ossos, os ossos esquecem.

Chartres
Pedras, o que me espanta
Não é que tenhais resistido
Por tanto tempo a tanto vento e a neve tanta:
Pois não tinham vos construído
Para arrostar nesta colina
O inverno e o vento desabrido?

Meu espanto é que suportais
Sem vos gastardes, nossos olhos,
Nossos olhos mortais.

Archibald MacLeish (Glencoe, 7 de maio de 1892 – Boston, 20 de abril de 1982), foi um poeta modernista e escritor norteamericano. Por três vezes recebeu o Prêmio Pulitzer.

In Bandeira, M.  Poemas Traduzidos, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976, pp. 89-90.

Caspar David Friedrich



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Emily Dickinson

NÃO ERA A MORTE, POIS EU ESTAVA DE PÉ
E todos os Mortos estão deitados —
Não era a Noite, pois todos os Sinos,
De Língua ao vento, tocavam ao Meio-Dia.
Não era a Geada, pois na minha Carne
Sentia Sirocos – rastejarem —
Nem Fogo — pois só por si os meus pés de Mármore
Podiam manter frio um Presbitério —
E contudo sabia a tudo isso ao mesmo tempo;
As Figuras que eu vi,
Preparadas para o Funeral,
Faziam-me lembrar a minha –
Como se me tivessem cortado a vida
E feito à medida de moldura,
E eu não pudesse respirar sem chave,
E foi um pouco como a Meia-Noite —
Quando todos os relógios — pararam —
E o Espaço olha à volta —
Ou Terríveis geadas — nas primeiras manhãs de Outono,
Revogam o Palpitante Solo —
Mas foi sobretudo com o Caos — frio — Sem-Fim —
Sem Ensejo nem Mastro —
Nem mesmo Novas de Terra —
A justificar — o Desespero.

oooOOOooo

Florescer — é Resultar — quem encontra uma flor
E a olha descuidadamente
Mal pode imaginar
O pequeno Pormenor

Que ajudou ao Incidente

Brilhante e complicado,
E depois oferecido, tal Borboleta,
Ao Meridiano —

Encher o Botão — opor-se ao Verme —

Obter o que de Orvalho tem direito —
Regular o Calor — escapar ao Vento —
Evitar a abelha que anda à espreita,

Não decepcionar a Grande Natureza

Que A espera nesse Dia —
Ser Flor é uma profunda
Responsabilidade —

oooOOOooo


Eu sou Ninguém! E tu quem és?

Também tu és — Ninguém?
Então somos dois? Não digas nada!
Haviam de apregoar — sabes!

Como é aborrecido — ser — Alguém!

Como é público — qual rã —
Dizer-se o nome — o interminável Junho —
A um Charco admirador!

"LEITURAS, poemas do inglês”, Relógio d´Água, 1993, tradução de João Ferreira Duarte.  

ALICE SOARES


Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...