EXCERTO DE "DE VERDADE"
Eu sabia de algo sobre ele que o mundo não sabia:

o
homem brincava. Brincava com tudo, com as pessoas, com as situações, com
os livros, e também com o fenômeno misterioso que em geral chamamos de
literatura. Certa vez em que o acusei disso, ele respondeu, dando de
ombros, que a arte, em segredo e no fundo, na alma do artista, não era
mais que a manifestação do instinto de brincar. “E a literatura?”,
perguntei. Afinal a literatura é mais que a arte, a literatura é
resposta e postura ética … Ele me ouviu sério e educado, como sempre,
quando eu me propunha a falar de seu ofício, e depois disse que era
verdade, embora o instinto que alimentava a postura ética fosse um
instinto lúdico, e, além disso, a finalidade última da literatura, como
da religião, seria, a despeito de tudo, a forma, e a forma era também
arte. Ele fugiu da pergunta. O
grande público e os críticos naturalmente não podiam saber que o homem
era capaz de se entreter igualmente com um gatinho que perseguisse um
novelo de linha sob a luz do solou com um problema ético ou filosófico:
com a mesma seriedade, ou seja, no íntimo com o mesmo descompromisso,
com a atenção inteiramente voltada para o fenômeno ou para o pensamento,
sem entregar o coração a nenhum dos dois. Ele era o meu parceiro de
jogos. Disso os outros não sabiam … E era a testemunha da minha vida:
falávamos muito nisso, com total franqueza. Você sabe, todas as pessoas
têm alguém que é procurador, guardião, crítico e, ao mesmo tempo, um
tanto cúmplice no processo misterioso e assustador que é a vida. Essa
pessoa é a testemunha. Ela é quem nos vê e conhece por inteiro. Tudo o
que fazemos, nós fazemos também um pouco para ela; quando temos sucesso,
pensamos: “Será que ela vai acreditar?” … A testemunha fica atrás do
cenário durante a nossa vida toda. Trata-se de uma parceira de jogos
incômoda. Mas não conseguimos nos livrar dela, e talvez nem desejemos.
Na minha vida essa pessoa era Lázár, o escritor, com quem joguei os
jogos estranhos, para os outros incompreensíveis, da juventude e da
idade adulta. Ele era o único que sabia, e de quem eu também sabia,
somente eu, que era inútil aos olhos do mundo o fato de sermos adultos,
industrial sério e escritor famoso, e, aos olhos das mulheres, homens
excitados, magoados ou apaixonados … Na realidade, o máximo e o melhor
que tínhamos conseguido preservar na vida era o desejo caprichoso,
ousado e impiedoso de jogar, com que distorcíamos e, ao mesmo tempo,
embelezávamos um para o outro o drama falso e pomposo da vida.
In: DE VERDADE, Companhia das Letras: São Paulo, 2008, pp. 191-192
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