segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sándor Márai

EXCERTO DE "DE VERDADE"
Eu sabia de algo sobre ele que o mundo não sabia:
o homem brincava. Brincava com tudo, com as pessoas, com as situações, com os livros, e também com o fenômeno misterioso que em geral chamamos de literatura. Certa vez em que o acusei disso, ele respondeu, dando de ombros, que a arte, em segredo e no fundo, na alma do artista, não era mais que a manifestação do instinto de brincar. “E a literatura?”, perguntei. Afinal a literatura é mais que a arte, a literatura é resposta e postura ética … Ele me ouviu sério e educado, como sempre, quando eu me propunha a falar de seu ofício, e depois disse que era verdade, embora o instinto que alimentava a postura ética fosse um instinto lúdico, e, além disso, a finalidade última da literatura, como da religião, seria, a despeito de tudo, a forma, e a forma era também arte. Ele fugiu da pergunta. O grande público e os críticos naturalmente não podiam saber que o homem era capaz de se entreter igualmente com um gatinho que perseguisse um novelo de linha sob a luz do solou com um problema ético ou filosófico: com a mesma seriedade, ou seja, no íntimo com o mesmo descompromisso, com a atenção inteiramente voltada para o fenômeno ou para o pensamento, sem entregar o coração a nenhum dos dois. Ele era o meu parceiro de jogos. Disso os outros não sabiam … E era a testemunha da minha vida: falávamos muito nisso, com total franqueza. Você sabe, todas as pessoas têm alguém que é procurador, guardião, crítico e, ao mesmo tempo, um tanto cúmplice no processo misterioso e assustador que é a vida. Essa pessoa é a testemunha. Ela é quem nos vê e conhece por inteiro. Tudo o que fazemos, nós fazemos também um pouco para ela; quando temos sucesso, pensamos: “Será que ela vai acreditar?” … A testemunha fica atrás do cenário durante a nossa vida toda. Trata-se de uma parceira de jogos incômoda. Mas não conseguimos nos livrar dela, e talvez  nem desejemos.

Na minha vida essa pessoa era Lázár, o escritor, com quem joguei os jogos estranhos, para os outros incompreensíveis, da juventude e da idade adulta. Ele era o único que sabia, e de quem eu também sabia, somente eu, que era inútil aos olhos do mundo o fato de sermos adultos, industrial sério e escritor famoso, e, aos olhos das mulheres, homens excitados, magoados ou apaixonados … Na realidade, o máximo e o melhor que tínhamos conseguido preservar na vida era o desejo caprichoso, ousado e impiedoso de jogar, com que distorcíamos e, ao mesmo tempo, embelezávamos um para o outro o drama falso e pomposo da vida.

In: DE VERDADE, Companhia das Letras: São Paulo, 2008, pp. 191-192

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