OS RATOS NÃO ESCONDEM SEU OLHAR
Acordou e estava sozinho. Abriu a janela. A cidade também abandonada.
O lixo maior, invadindo as ruas. Não gostava de viver do lixo. Era pior
se sentir parte dele. No espelho parou pela primeira vez. Estático.
Onde estavam as palavras? Pouca coisa ele havia dito como se ainda
rastejasse. Nada ouviu de fato. Ele não conhecia o mundo por mais
terrível que ele fosse. Ele diria pra si mesmo. Desafiou-se e começou a
experimentá-las.
– Medalha! Medalha…
Não era uma palavra assim tão bonita. Nunca tinha visto uma medalha.
Nem um general. Conteve-se. Queria novas palavras. Refletida no espelho
uma barata olhava em sua direção. Adivinhou os olhos dela. Atentamente.
Ameaçada ela fugiu. Ele nem se mexeu.
– Uma barata nua voou desaparecendo…
Ele se perdeu. Não sabia como prosseguir. Não tinha tantas palavras
para sair emendando umas nas outras. Ademais não gostava de baratas. A
mãe orientava sobre a importância das baratas. As mais fortes. As
últimas. Sobrevivendo a todos. Multiplicando-se nos caos. Elas sim
veriam a queda dos edifícios suspensos. E mesmo depois elas estariam ali
como se não tivessem fim. O fim é banquete dos urubus, aprendeu com o
irmão.
– Urubu!
Disse com força. A própria palavra subia para as alturas. Aprendeu
também a admirá-los entre os catadores. Alimentando-se dos catadores
quando ao lixo se entregavam sem vida. Os urubus desafiam até mesmo o
sol. E todos temiam o sol. Aproximando-se gigantescamente sobre o que
sobrou da Terra. O urubu realmente tornava o céu mais bonito. O sol
embora pulasse sempre de um lado para outro dava a impressão de estar
sempre naquele mesmo lugar em que estava no exato momento.
– O urubu é lindo voando no céu!
Ficou triste de repente. O que seria do céu quando os urubus não
existissem mais. As baratas viveriam mais que os urubus. Elas com seu
vôo pequeno. De um ponto a outro sem nenhuma graça. Fugindo. Apenas
isso.
– As baratas fogem mesmo quando estão voando.
Então ele entendeu o segredo das baratas. Elas nos ensinam a fugir.
- Ratos…
Riu. Pensou plural. Um atrás do outro. Ligados pela mesma direção.
Sabiam aonde ir. Iam. Os ratos não voltavam. Viu que isso era seu e
estava feliz. As baratas da mãe, os urubus do irmão. Seriam dele os
ratos. Era.
- Os ratos são meus!
E ele possuiu o que lhe pertencia.
- Os ratos não escondem seu olhar.
Estava gostando do que estava dizendo. Bonito mesmo é quando tudo
parece novo. As palavras repetidas aqui e ali. As mesmas. O que agora
parecia tão novo! Até mesmo as ruas passaram a fazer sentido. Era
preciso ir. E voltar como se fosse. É uma questão de olhar. As palavras.
Então era isso. Estava descobrindo um mundo de coisas. E ele que
esperou tanto tempo pelo irmão sempre catando entre os urubus. Como um
urubu. Senhor da podridão. Altivo. Sagrado. E ele não era nada. Ele não
sabia. Como não. Agora essa palavra indo atrás dos ratos. Pois bem.
Seguiria os ratos pelas ruas. Riu de novo e mais forte. No silêncio
seguinte se deu conta de que possuía uma imagem. Quem era? Estaria
condenado a ser o irmão de alguém que já tinha partido?
Quando a mãe retornou, ele se voltou como quem queria saber. A
pequena Diana dormia agarrada às suas pernas. Ela estranhou a atitude.
Respondeu passando por ele como se pedisse silêncio. Ele esperaria. E
desta vez a mãe não teria como fugir. Esteve o dia inteiro diante do
espelho. Tinha palavras próprias. Ruas inteiras a sua espera. Seguiria
os ratos.
O toque de recolher soou. O sol se pondo. Nem baratas nem urubus.
Seguiria os ratos. Eles que vasculham as noites sem temer os caminhos
que devem seguir. Ele que sempre esperou agora iria. Nem tão grande nem
tão pequeno. Mas um piscar de olhos. Não enfrentaria gangues, mas jamais
seria pego por elas. Sem temer os esgotos com seus mortos. Sem precisar
de portas. A mãe que se demorasse. Ele agora já ia cheio de palavras
descobrindo ruas. Ele já tinha um olhar. Mesmo dentro da noite. Sem
medo. Iria. Estava decidido já existindo em si. Sozinho como a noite. E
para dentro dela ele foi como um rato…
Guerá Fernandes
Fragmento de “O POÇO”, 2010
In: guerafernandes.blogspot.com.br/
segunda-feira, 28 de maio de 2012
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