O SOL O MURO O MAR
O olhar procura reunir um mundo que foi destroçado
pelas fúrias.
Pequenas cidades: muros caiados e recaiados
para manter intacto o alvoroço do início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento azul
sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência intensa
como o arfar de um toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos pátios
dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e atentos:
silêncio vigiando o clamor do sol sobre as pedras da
calçada.
Diz-se que para que um segredo não nos devore é
preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço ou de
um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para o
exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte, os
seus hábitos, o seu violento azul, o espesso amarelo, a
veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa — tinta que se
despinta — porta aberta para o pátio de chão verde:
soleira do quotidiano onde a roupa seca e espaço de teatro.
Mas também pórtico solene aberto para a vida
sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de manchas
nebulosas e sonhadoras.
A porta desenha sua forma perfeita à medida do homem: as
cores do cortinado de fitas contam a nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do homem.
No promontório o muro nada fecha ou cerca.
Longo muro branco entre a sombra e o rochedo e as
lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto de
escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica,
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do lugar
sagrado.
[In OBRA POÉTICA, Alfragide, Caminho, 2011, pp. 739-740].
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