Mas se pensam que me entrego de mãos atadas estão
enganados, nem atadas nem desatadas, e mesmo que me atassem como uma múmia eu
não me entregaria, nem que me pusessem de cabeça para baixo ou do avesso, as
entranhas à mostra, as minhas entranhas, onde está o meu pensamento, o
Pensamento: nem assim me entregaria. Que para isso sou eu e não Ele, mesmo que
sejam milhões de Eles, e vim para dar o meu testemunho e estou dando-o, a quem
não importa desde que o dê a mim mesmo, eu o sobrevivente dentro de mim, à
minha consciência ou mesmo à minha inconsciência, ou mesmo a Ele ou a Eles e à sua corja, assim tranquilos me
roubando o que ainda resta da minha consciência, tranquilos e ferozes como deuses, no seu anonimato e na sua covardia, eles sim os
covardes, manipulando e fazendo manipular toda uma hecatombe para acabar com um
simples homem, como fazem com os ratos, todo o peso do céu para
acabar com os ratos: a corja.
Podem me virar do avesso que não me viro, sou eu mesmo
do avesso como do direito, e
mesmo que me esquartejem e espalhem os pedaços continuarei sendo eu mesmo, como um caleidoscópio
é um caleidoscópio e não um
simples jogo de espelho, um caleidoscópio até que o matem por ter sido mais que um simples
joguete, mais capaz de beleza do que quem o fez ou
desfez. In A Chuva Imóvel, In Obra Reunida, Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2008, 5a. ed., p. 296.
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