A
Palavra
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não
imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de
conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício
é este, de viver em voz alta.
As vezes, também a gente tem o
consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se
reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a
sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse
uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido
alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti
no momento — e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez
ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o
canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao
piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura;
que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador;
até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de
futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava
sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven
— e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação
entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse
distraído — talvez palavras de algum poeta antigo — foi despertar melodias
esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de
repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E
isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres
choupanas e as suas remotas esperanças.
Novembro, 1959
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