Bom Jesus do Norte, 9h35min
Carlos acende um
cigarro.
— Mãe, a senhora
lembra daquela torta de biscoito-maria?
— Lembro...
— Depois que o
Fernando morreu a senhora nunca mais fez...
— Desgostei...
— Mas, mãe, o
Fernando não era seu único filho...
— Mas é ele que se
lambuzava todo, de tanto que apreciava...
— A senhora ainda
sabe a receita?
— Não sei...
— Quando a gente
voltar, a senhora faz pra mim?
(uma vez papai bateu na porta da tulha porque
quando casei com o adalberto a gente não tinha nem onde morar então papai
falou que emprestava a tulha pra gente se esconder da chuva e do sol e foi lá
que nasceu o fernando no meio da palha seca de noite eu ficava vigiando pra
espantar os ratos os ratos podiam morder o coitadinho uma vez papai bateu na porta da tulha era de manhã cedinho o adalberto tinha acabado
de sair pra roçar o pasto o papai falou
naquele português esgrouvinhado filha vim aqui despedir de você que é a minha
filha adorada que me compreende despedir? é eu vou embora nica não agüento mais a rabugice da sua mãe brigou com a
mamãe de novo? é aquelas implicâncias dela vi o papai montar no cavalo os olhos vermelhos e sair a galope na direção de rodeiro comecei a chorar fui lá dentro
de casa a mamãe estava calmamente assando um bolo mamãe o papai foi embora? e ela em italiano foi na rua
fazer o armazém de tarde ele volta depois que os meninos comeram o
angu-com-leite papai chegou apeou do
cavalo cabeça baixa olhou pra mim envergonhado
e entrou na sala arrastando a botina papai gostava muito de mim era
severo não me deixou estudar você não vai precisar disso não nica pra lavourar
tem que saber é lidar com enxada não com lápis mas era eu que contava e
guardava o dinheiro dele era a mim que
ele recorria quando estava triste ou tinha que tomar uma decisão importante o
meu casamento foi o único em que ele soltou foguete)
— Sabe que eu
lembro direitinho da vovó, mãe?
— Lembra?
— Como se fosse
hoje.
— Mas você era tão
criança quando ela morreu...
— Nem tanto, mãe...
eu tinha uns dez, onze anos... Quando ela acordava, passava um tempão penteando
os cabelos pra fazer um coque...
— Você lembra
disso?
— E lembro também
que ela só usava vestido preto. Era luto?
— Não sei... Até
onde vejo, desde sempre ela só vestiu preto...
— Ela não falava
nada em português, mãe?
— Nada, coitada...
Nunca aprendeu... Nem uma palavra...
— A senhora sabe
italiano?
— Ih, já esqueci...
— Mas a senhora
sabia?
— Em criança...
— Não lembra mais
nada?
— Só a reza...
— A reza a senhora
lembra?
— Lembro... O Dio,
Padre Buono e misericordioso...
— Coitada da vovó...
Do quê que ela morreu?
— Solidão.
— Solidão? Ninguém
morre de solidão, mãe...
— Ela morreu. Depois
que venderam o resto da fazenda, ela ficou pulando de casa em casa. Até com a
gente ela passou um ano... Mas não conseguia conversar com ninguém. Ninguém
mais sabia italiano. Os filhos não tinham paciência de puxar pela memória... Os
netos remedavam ela... Passava tempos
sem abrir a boca. Até que começou a secar, secar... Um dia acharam ela
murchinha, de bruços, na cama...
[In Mamma, son tanto felice, São Paulo, Record, 2005, pp. 62-64]
Nenhum comentário:
Postar um comentário