O CORPO ESPACEJADO
Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aos
poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos
contornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que,
isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular.
Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de que
só por abstracção se chegava à noção de um todo come-
çavam a afastar-se umas das outras, de forma que entre
elas não tardou que espumejassem as marés e a própria
via-láctea principiasse a abrir caminho. A sua carne exer-
cia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que
em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de
quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo
brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Ele
mais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas
cinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entanto
detectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pe-
quena alteração na direcção do vento era capaz de pôr de
novo a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou
pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés,
mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intes-
nos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava
em celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído
aterrador.
A NOITE
A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.
Christine Fogg Horton |
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