quarta-feira, 15 de julho de 2015

Armando Freitas Filho


42
Destrava o que o ar segura
e o chão clama.
Instante imprevisto do tempo
não sujeito à cronologia.
Transpira, transparece
se entretém — vide verso livre e único
que, do outro lado, ao revés, emite sua aura
de animal arisco à mão caçadora
e ilumina algumas linhas
dando vida, fibra, força
à trama do aramado inteiro.
11 III 2003

43
Seu gosto se aproxima da palavra almíscar.
Da palavra, não do odor da substância
que procuro no dicionário, pois nunca a testei.
No entanto, em você mastigo almíscar.
Mistura de dor e flor, rima óbvia, dueto vocabular
tantas vezes tentado, mas aqui o que molha minha boca
sabe a surpresa
13 IV 2003 

44
Parar de escrever pode ser morrer.
Mas se não for? Dias sem ruído.
O kastelo interior em ruínas acabadas.
A "tresnoitada luz", de Borges
batendo em cima do "sol aparafusado"
de Van Gogh, no texto de Artaud.
Não poder nem sonhar mais por escrito
debaixo da lua implacável, de Goeldi.
2 V 2003

45
A linha preta do pensamento
— trêmula, feita à mão —
pauta, de cima a baixo
o amarfanhado espaço
do amanhecer.

Não se escreve nada no campo
deste dia longo, parado
de raro mar, árvore estrita
de paisagem repetente, de palavras
despida.

Não se escreve nada na máquina
deste dia estatístico, indiferenciado
que se produz em série
embora o gráfico se sobressalte, aqui e ali.
2 VI 2003

(In Raro Mar, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 70-71)


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