A TERCEIRA MARGEM DE MIM

Quieto, à medida que escutava o rumor da vida vindo de suas narinas, revi cena por cena o enredo de nossas 1001 noites, cada uma com o seu aroma de perdas, cada uma com sua aura de conquistas, e os minutos todos que eram tão plenos quando a eles nos entregávamos, tangendo nossas diferenças, felizes por descobrir que aprender a viver é que era mesmo o viver.
Logo me lembrei, com o gosto de fome, dos tempos em que minha lenha acendia a sua fala, enquanto o linho de sua língua em meu falo me apagava os gritos de desejo – e refiz na memória a correnteza que eu era, me fluindo em sua boca, e a sede que você jorrava, me bebendo gota a gota, me sugando como o tempo suga um lenho ao relento, como a flor sorve o néctar da abelha, sem nenhum zumbido.
Aticei ainda mais as brasas da memória, remexendo os fatos que tínhamos provado juntos, as fagulhas de nossos vãos momentos, e então faiscaram os dias que vivemos no deserto de Atacama, o sol soldando nossos anseios, as pedras espetando nossos pés, a fina poeira de cobre maquiando nossa face em fogo, os entardeceres grandiosos vistos das montanhas, o luar queimando nossa solidão. Nesse revirar de centelhas, reluziram as nossas manhãs de dores e os nossos ardores, e, no ondular das chamas que eu recordava, surgiam e sumiam seus sorrisos, para depois surgirem de novo, e de novo sumirem.
Foi aí que, movendo-se na escuridão recém-nascida em meu olhar aberto, você se abeirou de novo em mim, como quem volta à cama, depois de fechar as janelas numa noite de temporal, e deslizou em minha pele, água com água, descendo o curso, eu rio espesso, você o sumo da viagem, a travessia, em suma.
In: Amores Mínimos, São Paulo: Record, 2011, p. 117-118
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